sábado, junho 09, 2007

Contracapa


Tais pessoas eram capazes de sonhar, mas incapazes de governar. Destruíam as suas vidas e as dos outros. Eram tolas, fracas, fúteis, histéricas; mas por trás de tudo isto, ouve-se a voz de Tchékov: abençoado o país que soube gerar este tipo humano. Eles deixavam escapar as ocasiões, evitavam agir, não dormiam à noite evitando mundos que não sabiam construir; mas a própria existência destas pessoas, cheias de uma abnegação apaixonada e fervorosa, de pureza espiritual, de elevação moral, o simples facto de estas pessoas terem vivido e talvez ainda viverem hoje, algures, na implacável e reles Rússia actual é uma promessa de futuro melhor, para todo o mundo, porque de todas as leis da natureza, a mais maravilhosa é talvez a da sobrevivência dos mais fracos.


Vladimir Nabokov, texto de contracapa de Contos VI de Anton Tchékov, ed. Relógio d' Água

terça-feira, junho 05, 2007

Charles Baudelaire


O ESTRANGEIRO


- De quem gostas mais, diz lá, homem enigmático? de teu pai, da tua mãe, da tua irmã, ou de teu irmão?

- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

- Dos teus amigos?

- Eis uma expressão cujo sentido até hoje ignorei.

- Da tua pátria?

- Não sei a latitude em que está situada.

- Da beleza?

- Amá-la-ia de boa vontade, divina e imortal.

- Do oiro?

- Odeio-o tanto como a vós Deus.

- Então que amas tu, singular estrangeiro?

- Amo as nuvens... as nuvens que passam... lá longe... as maravilhosas nuvens!


Charles Baudelaire, O Spleen de Paris -- pequenos poemas em prosa, Relógio d' Água, 1991

sexta-feira, junho 01, 2007


O Noddy está chocado. Viu ontem, na RTP-2, um filme pornográfico com Fernanda Freitas e Daniel Sampaio.

segunda-feira, maio 28, 2007

NA INTIMIDADE DA RÁDIO HÁ 23 ANOS


Pouco para dizer, muito para escutar, tudo para sentir. Tem sido fiel a este lema que Francisco Amaral realiza, desde há 23 anos um dos melhores e mais persistentes projectos radiofónicos em Portugal: Íntima Fracção. O programa terá começado na Antena 1, e passou depois pela TSF. Agora, depois de alguns anos fora de uma rádio com cobertura nacional, remetido para a RUC e a internet, a Íntima Fracção pode ser ouvida no novo Rádio Clube Português, de domingo para segunda entre a meia-noite e a uma da manhã. Mas também pode ser ouvida em podcast e mp3. Na intimidade da rádio, pouco para dizer, muito para escutar, tudo para sentir.

quinta-feira, maio 24, 2007

A MENTIRA (POR ALEXANDRE KOYRÉ)


Nunca se mentiu tanto... Com efeito, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, rios de mentiras são vertidos sobre o mundo. A palavra, a escrita, o jornal, a rádio... todo o progresso técnico está ao serviço da mentira. O homem moderno (...) banha-se na mentira, respira a mentira, está exposto à mentira a todo o instante da vida.


Alexandre Koyré, Reflexões Sobre a Mentira, Frenesi, 1996.

quinta-feira, maio 17, 2007

IAN CURTIS: PREPARA-SE O REGRESSO DO MITO



O mito urbano-depressivo de Ian Curtis, músico e poeta suicida, lider dos Joy Division - a banda de rock mais importante da década de oitenta -, perpetua-se, transmite-se desde o fundo do tempo, onde estão as estátuas de pedra. Agora, prepara-se um filme sobre Ian e os Joy Divison, um biopic anunciado para setembro próximo com realização de Anton Corbijn - e é de esperar o pior, ou talvez não. Mas enquanto houver coisas parecidas com rádios, em cidades tristes de cimento e néon, haverá alguém a dançar, em transe, muito perto do espasmo epiléptico, como ele fazia. Ou, ou a olhar a cerimonia dos dias.

sexta-feira, abril 27, 2007

RUY BELO


LITERATURA EXPLICATIVA


O pôr do sol em espinho não é o pôr do sol
nem mesmo o pôr do sol é bem o pôr do sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medicis
onze quilometros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr do sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr do sol apenas pôr do sol

.
(in Homem de Palavra[s])

quarta-feira, abril 25, 2007

MANUEL ANTÓNIO PINA


[4 DE JULHO DE 1965]


segundo fontes geralmente bem

os altos interesses nacionais

foi recebido carinhisamen-

pretende para fins matrimoniais


entre os países menbros da otan

as suas provas de doutoramento

sua excelência o presidente da

a conferência do desarmamento


excelentíssimo senhor director

ardilosos amigos do alheio

nosso prezado colaborador

atrasos na entrega do correio


não perca esta excelente ocasião

da santa madre igreja faleceu

resposta em carta à administração

de casa dos seus pais desapareceu


(in Ainda Não é o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma é Apenas Um Pouco Tarde, 1974)

***


O livro


E quando chegares à dura

pedra de mármore não digas: «Água, água»,

porque se encontraste o que procuravas

perdeste-o e não começou ainda a tua procura;

e se tiveres sede, insensato, bebe as tuas palavras

pois é tudo o que tens: literatura,

nem sequer mistério, nem sequer sentido,

apenas uma coisa hipócrita e escura, o livro.


Não tenhas contra ele o coração endurecido,

aquilo que podes saber está noutro sítio.

O que o livro diz é não dito,


como uma paisagem entrando pela janela de um quarto vazio.



(in Os Livros, Assírio & Alvim, 2003)