quinta-feira, dezembro 25, 2008

Daniel Jonas


O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.

O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali destendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo

quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.

Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica ali a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.

Daniel Jonas nasceu no Porto em 1973. Publicou quatro livros de poesia: O Corpo está com o Rei (AEFLUP, 1997), Moça Formosa, Lençois de Veludo (Cadernos do Campo Alegre, 2002), Os Fantasmas Inquilinos (Cotovia, 2005, do qual se retirou o poema aqui publicado) e Sonótono (Cotovia, 2007, com o qual recebeu o Prémio Pen Clube de Poesia em ex-aequeo com Helder Moura Pereira). Como dramaturgo é autor da peça Nenhures (Cotovia, 2008). Na função de tradutor verteu para português, entre outros, O Paraíso Perdido de Milton e recentemente Ao Arrepio de Joris-Karl Huysmans, ambas as traduções para a Livros Cotovia.

sábado, dezembro 20, 2008

António Carlos Cortez


PINTURA

Monet tens a impressão da realidade
e ela não pode ser de outro modo
Misturas na tela as cores primárias
como hoje a pintora no seu atelier
traçando a negro a figura humana

A poesia é talvez o momento
em que a pintura é exercida
de outra forma Um défice de realidade
nos olhos Nesse tempo o poema
surge para um dizer novo

António Carlos Cortez nasceu em Lisboa em 1976. Escreve sobre poesia no Jornal de Letras e tem artigos publicados nas revistas Relâmpago e O Escritor. Como poeta estreou-se em 1999 com Ritos de Passagem a que se seguiram Um Barco no Rio (2002), A Sombra no Limite (2004) e À Flor da Pele (2007) do qual se retirou o poema que aqui apresentamos. É ainda autor de um livro de crítica de poesia: Nos Passos da Poesia (2005).

quarta-feira, dezembro 10, 2008

MANOEL DE OLIVEIRA: 100 ANOS


O que espanta em Manoel de Oliveira, para além da obra cinemetográfica, são os 100 anos. Em plena actividade, Oliveira permanece como se o tempo não tivesse passado por ele; como se a sua vida fosse um filme realizado por ele: planos longos, fixos, personangens entre Camilo e Agustina que não são do nosso tempo. Em Manoel de Oliveira encontramos vida e obra cristalizadas num fotograma, como se o tempo não existisse, como se a água do rio deixasse de correr. Talvez seja isso a juventude.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

EMILY DICKINSON (3 POEMAS)


Como se o mar apartando-se
Mostrasse um outro mar -
E esse - um outro - e dos Três
Apenas se pudesse suspeitar -

De Sucessões de Mares -
Adversos à Costa -
Eles próprios a Margem de Mares por ser -
A eternidade - é Isso -

*

Esta é a minha carta ao Mundo
Que nunca Me escreveu -
As Notícias simples que a Natureza contou -
Com branda Majestade

A sua Mensagem está destinada
A mãos que não consigo ver -
Pelo Seu amor - Afáveis - camponesas -
Julguem-me brandamente - a Mim

*

O Cérebro - é mais amplo do que o Céu -
Pois - colocai-os lado a lado -
Um o outro irá conter
Facilmente - e a Vós - também -

O Cérebro é mais fundo do que o mar -
Pois - considerai-os - Azul e Azul -
Um o outro irá absorver -
Como as esponjas - à Água - fazem -

O Cérebro é apenas o peso de Deus -
Pois - Pesai-os - Grama a Grama -
E eles só irão diferir - se tal acontecer -
Como a Sílaba do Som -

Emily Dickinson, Esta é a minha carta ao mundo e outros poemas, Trad. Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, col. Gato Maltês, 1997, pp. 33, 53 e 61.

sexta-feira, novembro 28, 2008

CLAUDE LÉVI-STRAUSS: 100 ANOS

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss faz hoje 100 anos. E está vivo para assistir ao seu centenário. Talvez mais vivo que a sua teoria estruturalista, mas isso é outra questão.

quinta-feira, novembro 20, 2008

DAVID LYNCH



BOB'S BIG BOY

Costumava ir ao restaurante Bob's Big Boy praticamente todos os dias desde a metade dos anos setenta até ao início dos oitenta. Pedia um batido, sentava-me e pensava.
Existe uma certa segurança em refletir num restaurante. Podemos tomar o nosso café ou batido e partir para zonas estranhas e obscuras e regressar sempre à segurança do restaurante.

TERAPIA

Fui a um psiquiatra uma vez. Estava a fazer uma coisa que se tinha tornado um padrão na minha vida e pensei: Bem, devia ir falar com um psiquiatra. Quando entrei na sala, perguntei-lhe: «Acha que este processo poderia, de alguma maneira, danificar a minha criatividade?» E ele respondeu: «Bem, David, tenho que ser sincero: acho que sim.» Apertei-lhe a mão e fui-me embora.

David Lynch, Em Busca do Grande Peixe, Estrela Polar, 2008

domingo, novembro 02, 2008

O GOVERNO DO CAMARADA SÓCRATES NACIONALIZOU O BPN

Os trabalhadores do sector bancário, e outros populares, manifestaram hoje, nas ruas de Lisboa, o seu regozijo pelo reinicio das nacionalizações da banca, depois do camarada ministro das finanças, Teixeira dos Santos, ter anunciado a nacionalização do BPN.

segunda-feira, outubro 20, 2008

O EFEITO HERBERTO HELDER


A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita vem interromper cerca de catorze anos de silêncio, no que diz respeito a inéditos, por parte de Herberto Helder. O último livro de originais do poeta foi publicado em 1994, Do Mundo, na Assírio & Alvim. Ora esta quebra do silêncio num dos poetas mais fortes da poesia portuguesa contemporânea originou um efeito paradoxal e estranho no que diz respeito à relação do poeta e da poesia com o mundo da comunicação social.
Sabe-se o quanto Herberto Helder é um poeta secreto, recusando entrevistas ou prémios literários. O autor de A Colher na Boca foge da fama e numa conhecida invocação escreve: “meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”. Ora, paradoxalmente, e suponho, contra o desejo do poeta, o lançamento do seu livro A Faca Não Corta o Fogo tomou aspectos pouco usuais num livro de poesia. Primeiro foi o anúncio da saída do livro, principalmente em alguns blogues que avançaram com poemas inéditos que não eram inéditos; depois, a atenção dada pelos poucos jornais que ainda escrevem sobre poesia (JL, Público e Expresso). Com a distribuição dos três mil exemplares do livro, constatou-se que estes eram insuficientes para a procura e o livro rapidamente esgotou. Este facto originou notícias nos jornais e televisões. Ou seja: a poesia que só tem lugar nos telejornais aquando da morte de algum poeta significativo (Cesariny, Fiama, Eugénio de Andrade) era agora, paradoxalmente, tema pelo facto do mais “obscuro” dos poetas portugueses vivos ter publicado um livro. Curiosamente, o último livro de António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, lançado ao mesmo tempo, e esse sim com pretenções a best-seller, era relegado para um lugar secundário.
Talvez Herberto Helder não consiga ser um poeta assim tão obscuro. Ou o desejo de se manter nessa obscuridade e silêncio o torne uma presa fácil da lógica mediática que procura tudo o que foge à norma. E nessa lógica mediática a norma é querer aparecer a todo o custo.

sexta-feira, outubro 17, 2008

HERBERTO HELDER - A FACA NÃO CORTA O FOGO (DOIS POEMAS)


Aparas gregas de mármore em redor da cabeça,
torso, ilhargas, membros e nos membros,
rótulas, unhas,
irrompem da água escarpada,
o vídeo funciona,
água para trás, crua, das minas,
tu próprio crias pêso e leveza,
luz própria,
levanta-os com o corpo,
cria com o corpo a tua própria gramática,
o mundo nasce do vídeo, o caos do mundo, beltà, jubilação, abalo,
que Deus funciona na sua glória electrónica

*
a acerba, funda língua portuguesa,
língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
escorchá-la viva, a cabra!
transá-la?
nenhum autor, nunca mais, nada,
se a mão termica, se a técnica dessa mão,
que violência, que mansuetude!
que é que se apura da língua múltipla:
paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
que se foda a língua, esta ou outra,
porque o errado é sempre o certo disso

Herberto Helder, A faca não corta o fogo, Assírio & Alvim, 2008, págs. 159 e 170