quinta-feira, novembro 19, 2009

POESIA COM VIDA


O nome de Gastão Cruz (GC), quer como poeta quer como crítico, está associado à poesia e poética dos anos 60. De facto, Gastão Cruz foi um dos poetas que participou na publicação colectiva Poesia 61 que em Maio de 1961 agrupou cinco poetas dos quais para além de GC se destacam Luiza Neto Jorge e Fiama Hasse Pais Brandão. Gastão Cruz tornou-se de certa forma no teórico e defensor de uma determinada poética dos anos 60, assim como Joaquim Manuel Magalhães aparece como o teórico de uma poética que emerge nos anos 70 em conflito com a poética de 60. Deste conflito, que hoje ainda perdura e se renova (veja-se por exemplo o papel desempenhado nesta década por Manuel de Freitas), dá eco este A Vida da Poesia, reunião dos textos críticos do autor de Rua de Portugal, publicados em jornais e revistas entre 1964 e 2008.
Depois das edições de A Poesia Portuguesa Hoje de 1973, a primeira, e de 1999, a segunda, este A Vida da Poesia (que vai buscar o título a um poema de Campânula, livro de 1978) funciona como uma terceira edição, bastante aumentada – em cerca de uma trintena de textos –, dos livros de 73 e 99. Ao longo das quatrocentas páginas deste volume Gastão Cruz insiste em poetas que considera fundamentais para o período pós-pessoano da poesia portuguesa. Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andersen, António Ramos Rosa, Ruy Belo, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão e Luís Miguel Nava figuram como os poetas a que Gastão Cruz dá mais atenção com vários ensaios sobre cada um deles. Mas também por aqui andam António Nobre, José Gomes Ferreira, Adolfo Casais Monteiro, Camões, Pessoa, Edmundo de Bettencourt, João José Cochofel, Sena, Cesariny, O’ Neil, David Mourão-Ferreira, Camilo Pessanha, Fernando Echevarría, João Rui de Sousa, Armando Silva Carvalho, Nuno Guimarães, Nuno Júdice, António Franco Alexandre, Luís Quintais ou ainda dois poetas brasileiros: Carlos Drummond de Andrade e Eucanaã Ferraz. Longa lista, por certo, mas que traça um mapa das influências e preferências de Gastão Cruz.
Esta Vida da Poesia dá-nos um panorama da poesia portuguesa desde os anos 40 até hoje (deixando de lado alguns importantes poetas dos anos 70), elogiando os poetas já citados mas também desferindo críticas na presença, no “voltar ao real” de Joaquim Manuel Magalhães ou nos “poetas sem qualidade” de Manuel de Freitas, ou ainda no jornalismo literário. Ao longo do livro encontramos citações quase obsessivas dos mesmos poemas, livros ou ensaios. E encontramos uma poética alicerçada fundamentalmente na palavra e na imagem. Alguns dos melhores textos deste livro, mais que ensaios são crónicas de encontros, como sucede com um texto sobre Luís Miguel Nava. Não se trata de um livro de ensaios com toda a ganga académica de citações e bibliografia, pelo contrário: na linha de outros livros de poetas sobre poesia, Gastão Cruz despoja-se de qualquer teoria. Aqui só têm lugar os poetas: os seus poemas e as suas leituras. Ou como escreve o autor: “Tentei, nestes textos, dizer alguma coisa sobre poetas que, com a sua auréola, iluminaram a minha existência. Não a tinham perdido, nem creio que a venham a perder: alguns leram-me a sua poesia, ou mostraram-ma, acabada de ser escrita – e, lembro-me bem, uma forte luz irradiava deles” (p. 12). Talvez nos tempos que vivemos, por várias razões, essa luz, essa auréola, se tenha apagado. Mas é a partir dessa luz que o lugar de Gastão Cruz na poesia portuguesa contemporânea, como crítico e poeta, assume um plano ético – quer se concorde ou não com a defesa que faz da sua poética.

Título: A Vida da Poesia – textos críticos reunidos (1964-2008)
Autor: Gastão Cruz
Editor: Assírio & Alvim
Data: Dezembro de 2008 (distribuído em Janeiro de 2009)
Páginas: 400

segunda-feira, novembro 09, 2009

O MURO


O espírito das putas que mandaram construir o muro, dessas bestas comunistas, ou social-fascistas, não terá encarnado nos que comemoram hoje a queda do muro? Como escapar, dizer que não se aprendeu a lição, acreditar que o homem não é o lobo do homem? Vinte anos depois, onde está a capacidade de revolta contra os novos muros in-visíveis? Onde está o puro desejo de liberdade, o acto político fundamental?

segunda-feira, novembro 02, 2009

ANTÓNIO SÉRGIO, MUTE


A voz forte e rouca entre as músicas calou-se. António Sérgio era um resistente da rádio, da rádio que tinha gente por trás, a rádio que escolhia o melhor para transmitir. Com António Sérgio ouvimos o luxo sonoro. Nos últimos tempos, depois de ser despedido da Rádio Comercial, tinha sido remetido para Radar, uma rádio que praticamente só transmite on-line. A rádio, "transmissão ao vivo", mergulha cada vez mais no lixo, na mediocridade de estúpidas playlists. Sérgio esteve sempre nos antipodas desta atitude, a divulgar o melhor da música alternativa.

sábado, outubro 31, 2009

DEMOCRACIA E ABSTENÇÃO


De um artigo publicado na edição portuguesa da revista Foreign Policy (nº 11, Agosto / Setembro 2009, pp. 76-78) assinado por Paulo Saragoça da Matta, intítulado "O significado da abstenção nas eleições europeias", reproduzo aqui alguns excertos.
(...)
Tal como o Estado moderno ocidental, também a Europa vive uma ficção de democracia. A Europa não teve uma origem democrática, não terá um porvir democrático e, mesmo no seu quotidiano, são mais aparentes do que reais as características daquilo que nos ensinaram ultimamente que deve ser uma democracia. Sim, que a Democracia que hoje nos vendem (e vendem porque a pagamos cara), nada tem que ver com o conceito técnico originário de democracia.
(...)
Será (...) de estranhar que os cidadãos se abstenham nas eleições europeias? Será de causar espanto que os cidadãos, mesmo em eleições nacionais da maioria dos estados menbros se abstenham? Não se vê como. Ninguém sente verdadeira pertença a algo que não escolheu. Por que artes mágicas deveriam os europeus votar para o Parlamento Europeu, se, no quotidiano, nem o parlamento, nem a Comissão, nem o Conselho, se preocupam minimamente com as legitimas aspirações, anseios e desejos dos europeus?
E esse fenómeno nem sequer é típico das instituições europeias. É algo que hoje caracteriza a esmagadora maioria das democracias, sejam elas verdadeiras, ou mais aparentes. O famigerado divórcio entre cidadãos e classe política não é nenhum divórcio. É uma separação de facto, porque a política partidária (no seu mais baixo valor e pior sentido), nem sequer nos permite divorciar-nos dela. Estamos compulsoriamente em comunhão de mesa, leito e habitação com estas "democracias", sem direito ao divórcio.
De que me serve ser um cidadão de um País da União, com os impostos em dia, com capacidade eleitoral activa e passiva, se, no momento em que pretendo exercer os meus direitos, só me posso acercar das instituições arrebanhado numa manada paridariamente disciplinada e ajeazada? Porque razão tenho que votar em listas de partidos se apenas um dos candidatos de uma lista me merece confiança? Porque razão não posso candidatar-me fora das máquinas partidárias, se nenhum partido me dá as garantias de seriedade e probidade de que necessito?
Assim o que me sobra? Abster-me! Dizer "não" aos tais Senhores dos Gabinetes, que sempre continuarão a decidir, comigo ou sem mim, com o meu voto ou sem ele, como lhes aprouver (...).
Restam dois caminhos para fazer cessar esta separação de facto: terminar com o arrebanhamento compulsivo de cidadãos eleitores e elegíveis através de máquinas partidárias - responsáveis pelo grosso dos desmandos que se vivem em quase todos os sistemas políticos de matriz "democrática" -; ou dar uma efectiva representatividade à abstenção. Nem mais, nem menos. Se não é possível no sistema haver uma democracia mais directa (ainda que representativa), então permitam, a todos os Europeus, eleger uma cadeira vazia que os represente.
Aliás, seria um sistema fundamental em todo o lado, Portugal incluído. Que gratificante seria saber que 60% das cadeiras do Parlamento Europeu, e de S. Bento, estavam vazias, não porque os Deputados se encontram a trabalhar fora do plenário, mas porque os abstinentesassim o desejaram. Quanto se pouparia aos erários públicos! Quanto reduziria o défice.
(...)
Haverá então alguma dúvida sobre a razão da abstenção? Nenhuma! A abstenção é a mais pura e simples reacção dos mansos, dos que nada podem fazer contra a maquiavélica simulação democrática em que o sistema aprisiona os cidadãos. A Europa nasceu nos Gabinetes, faz-se nos Gabinetes, e perder-se-á nesses mesmos Gabinetes. É uma questão de tempo, se não houver um afinamento verdadeiraqmente democrático da representatividade do Povo.

sexta-feira, outubro 02, 2009

ÉTICA A VIEGAS


Em Portugal não existem mais de uma dúzia de pessoas, que com o dom da ubiquidade, ocupam todos os lugares que não pertencem ao "povo". São gestores que têm cargos em dezenas de empresas, especialistas em comentário político que estão nos três canais televisivos ao mesmo tempo - e ainda preparam, ou alguém prepara para eles, um comentário para sair na edição de um diário no dia seguinte. Somos uma aldeia bastante pequena, apesar de termos 10 milhões. E temos esses que demasiado obesos ocupam muitas cadeiras. Por exemplo Francisco José Viegas. Actualmente é director da revista Ler e editor da Quetzal, além de escritor premiado. E também blogger (?). Imagino que dorme pouco, e se dormisse menos continuaria com os seus programas televisivos e radiofónicos sobre livros. Ora, nesta promiscuidade, Viegas utilizou o último número da revista Ler (o de Outubro) para promover o tão promovido 2666 de Roberto Bolaño, que o mesmo Viegas editou na Quetzal. Não é caso único - veja-se a promiscuidade que grassa na secção de Livros do Expresso -, mas é caso para pensar sobre o estado do meio literário português.
Note-se que o calhamaço (mais de 1000 páginas) que Bolaño deixou é o grande tema da actualidade literária. Mas é precisamente por sê-lo que se dá a ver a incompativblidade de funções que FJ Viegas ocupa. Imagine-se o que seria, agora, Paulo Portas ser ao mesmo tempo que é presidente do CDS director de um jornal.

quinta-feira, outubro 01, 2009

PASCAL QUIGNARD


O aparelho de televisão que prescreve as modas e as sujeições era o seu inimigo pessoal. Aquele fundo sonoro divertia o sofrimento, adormecia a rebelião, desligava para sempre os que trabalhavam dos que governavam. O lugar medíocre dessa desconexão era o ecrã acinzentado rodeado de madeira de acaju: os políticos refractavam-se naquele pequeno espelho abaulado onde as massas procuravam seduzir-se. A sociedade expirava sobre aquele vidro leitoso. A vida social tornara-se uma abstracção sem lastro, sem corda de recurso para chamar, sem fim, onde o ideal já não era mais que um corante sarapintado na baixeza, onde a generosidade já não passava de um golpe publicitário de meio minuto.

Pascal Quignard, A Ocupação Americana, Quetzal, 1995, p. 69

quarta-feira, setembro 09, 2009

Filipa Leal


O HOMEM QUE EXISTIU

I.

Havia uma íntima surpresa na palavra
do início. Por exemplo: a primeira palavra
mar. Quem a teria escrito?

E a primeira
palavra palavra. Quem teria escrito
palavra pela primeira vez?

Eu buscava nas palavras já escritas a surpresa
do início do poema, e isso era triste
como brincar com coisas mortas.

II.

A melancolia é uma questão do tempo,
disse-me o homem. Era um homem que existia,
normal como os que existem.
Daqueles que não
costumam vir nos poemas
porque não
são centros de metáfora ou de revolução.
Porque não
gritam nunca.
Porque não
dizem não.

Hoje sei.
A melancolia é uma questão de falta
de tempo.

Filipa Leal, O Problema de Ser Norte, Deriva, 2008, pp. 18-19.

Filipa leal nasceu em 1979, no Porto. Estudou jornalismo em Londres (Universidade de Westminster)e literatura na na FLUP, onde obteve o grau de mestre com uma dissertação sobre os Aspectos do Cómico na Poesia de Alexandre O' Neill, Adília Lopes e Jorge de Sousa Braga. Foi jornalista de O Primeiro de Janeiro, onde editou o suplemento "das artes, das letras". A sua obra como poeta inícia-se em 2004 com Talvez os Lírios Compreedam (ed. Cadernos do Campo Alegre), seguido de A Cidade Líquida e Outras Texturas (Deriva, 2006; 2ª edição: 2007), O Problema de Ser Norte (Deriva, 2008) e A Inexistência de Eva (Deriva, 2009) - para além do livro de ficção Lua-Polaroid (Corpos editora, 2003). A sua poesia mereceu a atenção de uma das últimas crónicas de Eduardo Prado Coelho, mas também de António Mega Ferreira ou Francisco José Viegas. Uma das caracteristicas mais evidentes na poesia de Filipa Leal é o uso certeiro do enjambement.

segunda-feira, agosto 24, 2009

JORGE LUIS BORGES (nascido há 110 anos)


BORGES E EU

Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essa páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo que é do esquecimento ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página.

Jorge Luis Borges, Obras Completas, vol. II, O Fazedor, tradução de Fernando Pinto do Amaral, Lisboa, Editoral Teorema, 1998, p. 181. (Via Bomba Inteligente)

sexta-feira, agosto 07, 2009

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


Uma notícia do Público de hoje (p. 7) dá conta de que a Associação Américana de Psicologia aprovou orientações para que “perante pedidos de clientes que lhes peçam ajuda, os psicólogos devem apostar noutras abordagens que não visem a mudança de orientação sexual (..)”. Ora, se alguém devidamente informado, sobre as formas como se processa a tentativa de mudança de orientação sexual (o dever de esclarecimento a que devem estar sujeitos psicólogos, psiquiatras, médicos, psicoterapeutas) quiser, ainda assim, submeter-se a um tratamento para mudar de orientação sexual, porque razão não deverá de existir algum profissional “psi” que o faça? A questão não me parece estar relacionada com os direitos dos homossexuais ou com conceitos como o de homofobia, mas com a transparência e a forma como os “psis” exercem a sua profissão. Ou seja, os “psis” são prestadores de serviços, como os advogados, solicitadores ou outros profissionais liberais. É evidente que como qualquer prestador de serviços há pedidos que não podem ser satisfeitos, quer porque estes não estão dentro das competências do psi, quer porque razões éticas, legais ou pessoais levam a que o psi não aceite o pedido que lhe é feito. Tudo deve ser feito, no entanto, com a maior transparência, verdade e respeito pelo cliente.

domingo, agosto 02, 2009

Miguel-Manso


«ONDE A NOITE CAI SOBRE ANTUÉRPIA»

há uma tal ventoinha no tecto soprando
um possível começo um hotel um homem
bebendo whisky no balcão do bar

o gelo roça no vidro do copo
o calor atrasa as pás da ventoinha
uma mulher lê uma carta junto à janela sentada
num esquecido cadeirão de vime

é meio -

-dia ouve-se lá fora a claridade de um motor
de automóvel europeu fazendo fazendo a curva de uma rua inquieta
um pouco de cinema algum pó

tem o longínquo nome de Kikwit esta cidade
o nome do hotel não sei - Congo Belga anos cinquenta
a pelicula retrata um tempo colonial

não conheço esta história
sei apenas que a mulher tem um vestido azul
que a carta foi tecida na distância de Antuérpia ao pôr do sol
junto ao porto por um homem que a já não quer

a mulher tem um cigarro ao fim dos dedos a cinza cai
a perna cruzada

o joelho branco apontado ao janelão
que dá para a rua

o homem no balcão é o dono do hotel
é português usa fato gravata impecável no pescoço suado
tem um livro dentro do bolso do casaco e espera alguém
olha a mulher sem olhar a mulher
dentro dela cai a noite sobre Antuérpia
relê sempre a primeira frase que diz

esteve um dia lindo no teu sorriso

das histórias que desconheço gosto muito desta
um lóbi de hotel uma cidade chamada Kikwit nos anos cinquenta
um homem uma mulher ele impaciente em whisky ela
triste em tabaco

não se conhecem nem se vão conhecer
o homem tem um livro no bolso a mulher o coração partido

entre o bar e o cadeirão de vime há um verso impossível

depois alguém entra a porta abre fecha
nesse intervalo um ruído de vozes calor poeira e comércio
invadem a placitude do lugar

o homem pousa enfim o copo no tampo do balcão
a mulher nem repara (esteve um dia lindo no sorriso dela
há muito tempo)

o português dirige a maior simpatia à
personagem que acaba de entrar - é Jacques-Yves Cousteau
o conhecido oceanógrafo francês

trocam cortesias
o gesto do português convida-o a sentar-se
apontando uma das cadeiras
o livro sai do bolso e vai estender-se na mesinha onde
acabam por deter-se

Cousteau aceita a caneta do português
abre na folha de rosto escreve o seu nome
debaixo do nome desenha um peixe

a mulher amachuca um pouco mais a carta
no gesto de a guardar na mala
levanta-se sai do hotel

consigo vê-la dobrando o edifício à direita
não sei para onde levou o começo de um choro
não sei onde leva aquela rua
desconheço toda a geografia da cidade africana

bem como o fim desta história
apenas que Cousteau subiu para um dos quartos
que o português sentado sorriu na direcção do tecto
com o livro encostado ao peito
desapertou um pouco a gravata
soube-lhe bem o inexistente sopro da ventoinha

**

JAPÃO Nº4

usou as mãos como contraponto luminoso da face
centenas de anos antes e depois de no Japão
chamarem a isso Reiki

Miguel-Manso, Contra a Manhã Burra, Mariposa Azual, 2ª ed., pp. 19-21 e 50, 2009.

Miguel-Manso nasceu em 1979. Em 2008 publicou dois livros em edição de autor - Contra a Manhã Burra e Quando Escreve Descalça-se -, que não passaram despercebidos à crítica atenta de poesia que o consagrou (justamente) como revelação de 2008 (António Guerreiro no Expresso). Mercê do título, os seus dois livros foram reeditados pela Mariposa Azual e Trama. A poesia de Miguel-Manso convoca uma pluralidade de "formas", do poema narrativo ao poema culturalista, do poema longo ao poema de um só verso, que acabam por se tornar numa lufada de ar fresco (podendo evoluir para uma corrente de ar) na poesia portuguesa desta década.