segunda-feira, outubro 30, 2023

HELGA MORREIRA



Uma enorme perdição essa noite depondo rosas no teu peito.
Com mel me cobres, infindável.
Chegas do lado onde os pássaros rasgam
posturas irrecuperáveis, a boca quase chuva,
secretos instantes de muita brandura.

Deitas-te a meu lado, recolho-te num abraço,
és como uma anémona, tão de leve adormeces.

De claridade semeio esse perfil.
Uma folha, um gladíolo, sempre cobertos do teu nome

*

Era uma vagueza a sombra e um retalho no pôr-de-sol;
talvez não valha a espera essa espécie de música mulher
servidão ou rede de átomos;
será uma vantagem conhecer as perversões lunares, festividades
de orvalho, traições de inocentes lábios, o mistério álgido do mármore,
metonímicas seduções, outros lazeres.

Era um retrato pelo sol de rostos e sombra, lenta alquimia;
espreitas pelo óculo arestas de gaivotas, remotos signos,
devagar te acercas da luz.

A manhã que no rosto dispersa brevíssimos pássaros
havemos de encontrar.

in A Jovem Poesia Portuguesa/2, Limiar, Porto, 1985, pp. 45 e 49.
Helga Moreira nasceu em 1950, em Quadrazais, Sabugal (Guarda), Em 1978 publicou o seu primeiro livro de poemas, Cantos do Silêncio (edição de autor), a que se seguiram Fogo Suspenso (1980), Quem Vier do Sul (1983), Aromas (1985), Desrazões (2002) e Tumulto (2003), entre outros. Este ano, publicou na Tinta da China o volume A Arte de Perder, que reúne quase toda a sua poesia edita, acrescentada de alguns inéditos.






sábado, setembro 30, 2023

ESOPO

 

O VENTO E O SOL

    Uma vez o Vento e o Sol puseram-se a discutir sobre qual dos dois era mais forte. Como não chegavam a um consenso e vendo passar um viajante envolto num capote, ambos concordaram que o mais forte seria aquele que conseguisse fazer o homem despir o capote.
    O Vento foi o primeiro a testar a sua força. Começou a soprar com todo o vigor e lançou sobre o homem uma rajada de vento frio. Mas, quanto mais soprava, mais o viajante se embrulhava no seu capote.
    - Desisto! - disse o Vento. - Não há maneira de fazer este homem tirar o capote!
    - Não sei se será bem assim! - replicou o Sol. 
    Então, o Sol começou a brilhar com todo o seu esplendor e, aos poucos, foi aquecendo o viajante de tal forma que ele se viu obrigado a tirar o capote e o resto da roupa para se refrescar num riacho que passava por ali.

Mais vale engenho que força.

A GALINHA DOS OVOS DE OURO

    Numa manhã como tantas outras, um aldeão e a sua esposa descobriram que tinham um ovo de ouro no ninho onde as galinhas punham os ovos. A partir desse dia, sempre que iam recolher os ovos encontravam um de puro ouro! Trataram logo de descobrir qual era a galinha que lhes dava tanta alegria.
    - Esta galinha deve ter uma grande pepita de ouro dentro dela! - exclamou a mulher do aldeão.
    - Vamos matá-la para lhe podermos deitar a mão - sugeriu o aldeão.
    E assim fizeram. Mas, para surpresa de ambos, descobriram que a galinha era igual a todas as outras.
    Esperando tornar-se rico de uma só vez, o tolo casal de aldeões privou-se do lucro diário que tinha assegurado.

Quem tudo quer tudo perde.

A RAPOSA E O LEOPARDO

    Uma raposa e um leopardo estavam a discutir sobre qual dos dois era o mais bonito. O leopardo apressou-se a exibir orgulhosamente as várias pintas que lhe adornavam o corpo, mas a raposa interrompeu-o e disse:
    - Eu sou muito mais bonita do que tu porque a minha beleza não está no corpo, mas na mente.

Quem vê caras não vê corações.

(Esopo, Fábulas de Esopo (Uma Seleção), adaptação para a língua portuguesa de Alexandra Guimarães, Porto Editora, 2016/2021)


    

quinta-feira, agosto 31, 2023

NATÁLIA CORREIA

 


REBIS

Oh a mulher como é cõncava
de teclas ter no abdómen
de sua porção de seda
ser o curso do rio homem

como é mina espadanar de água
na cama abobadada de homem
gargalhada de lustre se sentada
dique de nuvens estar de dólmen!

Oh o homem como é ângulo
aberto de procurar
o sítio onde nasce o ouro
na salmoura da mulher mar

como é cúpula de copular
nadador de braçadas de mirto
como é nado de a nado formar
o quadrado da mulher círculo!

Oh os dois como se fundem
na praia-mar dos lençóis 
despidos como fogo e água
deus de dois ventres ferozes
e quatro anos de fava!

In Edoi Lelia Doura - Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, org. por Herberto Helder, Assírio & Alvim, 1985, p. 190.

Natália Correia nasceu em S. Miguel, Açores, há 100 anos (13.9.1923- 16.3.1993). Para além de poetisa de cariz surrealista, e também ficcionista, ficou conhecida pela sua actividade política, como deputada do PSD e, também, do PRD; pelo resistência boémia à ditadura do Estado Novo a partir do seu bar "Botequim", lugar de encontro de intelectuais, que manteve depois do 25 de Abril. Foi autora de um programa televisivo (Mátria), onde explanou as suas ideias de Pátria, Mátria e Fátria. Em 1966 foi condenada a 3 anos de prisão, com pena suspensa, pela organização de uma Antologia da Poesia Erótica e Satírica. Em 1973 organizou uma singular antologia sobre O Surrealismo na Poesia Portuguesa (2ª edição, frenesi, 2002), com comentários teóricos. Há, em Natália Correia, uma pensadora - do surrealismo, da mulher - que tem sido esquecida.  

segunda-feira, julho 31, 2023

ESTUPIDEZ NATURAL

 


1, Em fevereiro de 2020 a peste sob a forma de um vírus a que chamaram covid, aparece na Europa; em fevereiro de 2022 a Rússia invade a Ucrânia, é o início de uma guerra que na realidade opõe o ocidente à Rússia, mas de certa forma, também à China, numa nova ordem mundial cuja natureza última estamos longe de vislumbrar; em fevereiro deste ano os meios de comunicação social começam a falar de uma nova forma de inteligência artificial (IA), criada pela empresa Openai, que interage com qualquer utilizador que aceda a este serviço que numa primeira fase foi gratuito. É o famoso Chat GPT (na versão 3.5 de acesso livre, a versão 4 tem que ser paga). O mundo já muitas vezes passou por pestes seguidas de guerras e vice-versa, mas nunca por uma máquina que simule (?) a inteligência, a fala humana. A IA, para uns um perigo para a humanidade, para outros uma oportunidade na resolução de problemas que afectam os humanos, desde a solução para algumas doenças até problemas como as alterações climáticas, era como um gato escondido com o rabo de fora. Na realidade pouco ou quase nada se falava dela, mas dos algoritmos existentes nos smartphones, que partem do princípio de que se  a pessoa A gosta da música X também vai gostar de Z e W (este princípio usado pelo Spotify ou YouTube é também válido para muitas outras aplicações). 

2, O mundo de cada humano passou para um pequeno smartphone (literalmente telefone inteligente) que nos acompanha para todo o lado e onde temos todos os nossos contactos, cada vez mais virtuais, bem como fotografias e outros documentos. E estamos presos e enredados nesse micro-computador de bolso sem o qual a vida hoje é difícil de ser vivida. É uma vida cada vez mais virtual, mas também é a forma como, cada vez mais interagimos com o outro, com a possibilidade de uma alteridade. Torna-se assim num paradoxo: agimos com mais pessoas e de forma mais fácil, mas essa acção já não é uma presença, é mediada por uma tecnologia que nos representa. A internet transformou-se de uma utopia comunicacional em algo que deu um enorme poder a quatro ou cinco empresas que podem ameaçar a nossa liberdade. A inteligência artificial é um dos mecanismos que mal-usados nos pode tornar escravos numa distopia.

3, Se durante quase duas décadas o Google foi o principal motor de busca de conteúdos na internet, com o Chat GPT isso pareceu alterar-se (a propósito recomendo o Duck Duck Go ao google). Já não se tratava de apresentar sites (a maioria pagos) mas de fazer uma pergunta a um sistema de IA. Ora, na versão 3.5, o chat GPT revelou-se pouco fidedigno. Quanto não tinha uma resposta inventava, o que os especialistas em IA chamaram, muito humanamente "alucinar". Isso quer dizer que, pelo menos na versão 3.5, o chat GPT mostrou-se menos fiável do que a Wikipédia, cujos artigos estão cheios de erros - humanos. E, de facto, a internet é uma rede cheia de informações falsas, duvidosas, inexactas, que as redes sociais expuseram ao limite. Ora, o chat GPT pretende ter toda a informação que circula online (além de uma montanha de livros que "leu"), o que equivale a ter bastante informação falsa. Então como vamos confiar na informação que nos é "dada" por uma inteligência artificial?

4, Outro problema que o aparecimento destes sistemas de IA coloca, é a criação artística. Para já a actual IA parece estar na sua infância, mas isso não impede alguma criatividade, precisamente uma criatividade ao nível infantil. O Chat GPT é bom a criar histórias para crianças, porque razão uma editora de livros infantis não poderá substituir os seus escritores de livros infantis pela inteligência artificial? E quando o a IA for capaz de escrever romances? Será que um dia um programa de IA irá escrever algo superior à capacidade criativa de um Joyce, um Proust, um Kafka, um Pessoa? E na pintura, na música, no cinema, na fotografia. Para já há experiências de jornais feitos por IA. A Inteligência artificial não é só uma ameaça a tarefas rotineiras, é uma ameaça também à Arte, aos artistas, e portanto aos humanos.

5, Numa carta aberta subscrita entre outros pelo criador da Openai e do Chat GPT, Sam Altman, e por um engenheiro da Google, percursor dos sistemas de IA apelava-se para uma regulamentação a nível governamental da IA. Caso isso não fosse feito poderíamos estar perante algo, tão catastrófico como a extinção da humanidade. A carta não foi tomada em conta pelos governos, e note-se que foi escrita e subscrita pelos criadores da IA. Antes, governos como o português, no âmbito do que chama "transição digital", já anunciou que as chamadas para o 112, a partir de 2025, serão atendidas por um sistema de IA.

6, Vivemos um tempo de ameaças e de aceleração técnica como nunca antes a humanidade tinha vivido. A IA é mais uma dessas ameaças, mas também nos pode ajudar a resolver vários problemas. Em rigor, não se sabe até que ponto a IA está desenvolvida, mas não é difícil imaginar até onde ela se pode desenvolver: até governar ou escravizar os humanos. Ou então, até uma fusão com os humanos (transhumanismo, cyborgs). Por isso é necessário tornar esta uma questão política premente. Mas os partidos políticos, os governos, a UE, parecem quererem ignorar o que se passa. A ameaça – mas também as suas possibilidades – ficam a pairar perante uma classe política e uma humanidade estúpida.

 


sexta-feira, junho 30, 2023

FRANZ KAFKA



 REFEEIÇÃO

    Quando eu encontro uma rapariga bonita e lhe rogo: «Tenha a gentileza de me acompanhar» e ela passa por mim sem uma palavra, é isto que ela me quer dizer:
    «Você não é nenhum Duque famoso, nenhum americano com perfil e pose de índio, de olhos fundos e misteriosos e uma pele temperada pelo ar das planícies e dos rios que nelas passam, não chegou aos sete mares nem nunca por eles navegou, onde quer que eles se encontrem, que eu não sei. Diga-me lá então porque é que uma rapariga bonita como eu haveria de ir com o senhor?»
    «Parece esquecer que nenhum automóvel a passeia em grandes voltas pela cidade; não vejo nenhum cavalheiro a rodar à sua volta, comprimindo por detrás a sua saia e murmurando-lhe benções ao ouvido; tem os seios bem seguros no corpete, mas suas coxas e ancas parecem compensar este aperto; tráz um vestido de tafetá, com uma saia plissada, que causou grande furor no Outono passado, e todavia ri-se - de tempos a tempos - atraindo o olhar do mundo.
    «Sim, temos ambos razão, mas para não sermos forçados a reconhecer o facto, não seria melhor seguirmos cada um para sua casa?»

in Contos de Franz Kafka, Cavalo de Ferro / Grande Reportagem, col. Nova Europa, Trad, de Nuno Batalha e Hugo Gomes, Lisboa, 2004, p. 147

quarta-feira, maio 31, 2023

FERNANDA BOTELHO

 


AS COORDENADAS LÍRICAS 

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.

A geométrica forma dos meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
- as minhas coordenadas.   

domingo, abril 30, 2023

Fernando Esquio

 


Vaiamos, irmana, vaiamos dormir
nas ribas do lago u eu andar vi
    a las aves meu amigo.

Vaiamos, irmana, vaiamos folgar
nas ribas do lago u eu vi andar
    a las aves meu amigo.

En nas ribas do lago u eu andar vi
seu arco nas maão as aves ferir
    a las aves meu amigo.

En nas ribas do lago u eu vi andar
seu arco na mano a las aves tirar
    a las aves meu amigo.

Seu arco na mano as aves ferir
e las que cantavam leixá-las guarir,
    a las aves, meu amigo.

Seu arco na mano a las aves tirar
e las que cantavam nom nas quer matar,
    a las aves, meu amigo.

In Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim/ Porto 2001, p. 735
Fernando Esquio foi um trovador galego, de quem se conservam nove composições: quatro cantigas de amigo, duas cantigas de amor e 3 cantigas de escárnio e mal-dizer. Terá vivido entre finais do século XIII e inícios do século XIV. 


sexta-feira, março 31, 2023

A NOVA CENSURA LITERÁRIA

 


1, O jornal Público tem nos últimos meses apresentado à venda, em algumas bancas, um livro por mês que foi objecto da censura do Estado Novo. A acompanhar o livro, em edição fac-simile, está um relatório do censor que apresenta as razões por que o livro deve ser censurado. Há quem pense que depois do 25 de Abril, a censura acabou. Na verdade, existem várias formas de censura, a começar pela auto-censura. Mas, nos tempos do PREC, terá vigorado uma espécie de censura com a nacionalização de quase toda a Imprensa, com o saneamento de jornalistas – como aconteceu no Diário de Notícias de que era director-adjunto José Saramago. No entanto, nesse período conturbado, não existiu um mecanismo oficial de censura, como aquele que foi um dos sustentáculos da ditadura. Além de existir liberdade em jornais como o Expresso ou o então criado, e depois desaparecido Jornal Novo, não consta que existisse uma censura editorial no que aos livros diz respeito. Esse terá sido, pelo contrário, um período de anti-censura na exibição cinematográfica, com filmes eróticos ou pornográficos, e provavelmente também nos costumes, no levantar de certas questões, desde formas de vida até às inevitáveis questões políticas. Depois do 25 de Novembro de 1975, algumas figuras que fizeram parte do Estado Novo regressaram à televisão, como o popular historiador José Hermano Saraiva. Ou seja, o que terá existido de censura, partiu de um “ar do tempo”, do espírito de uma época efervescente.

2, Recordo um diálogo, numa livraria, entre uma cliente e um livreiro, em volta de um livro de Mário Zambujal. A cliente pretendia que o livreiro assegurasse que aquele livro não continha passagens tristes ou que a incomodassem, ou seja, pretendia ler um livro sem o pathos que afecta a grande literatura, e mesmo géneros menores como o policial. Creio que Mário Zambujal será uma boa escolha para quem quer fugir aos vários pathos da literatura. Mas também o pode ser Eça de Queiroz. Tudo depende da sensibilidade do leitor. E o acto de leitura, pode ser interpretado como o espreitar um mundo muito próprio de uma outra sensibilidade: a do autor. Muitas vezes o autor escreve como se estivesse no divã de um psicanalista, dando azo às suas pulsões, ainda que expressas com uma linguagem que tenta ser inovadora. Nisto o leitor, que não é psicanalista, ressente-se daquilo que lê, a sua sensibilidade é afectada. É talvez por isso que existem poucos leitores, e os que existem lêm na sua maioria best-sellers de José Rodrigues dos Santos ou Dan Brown ou outro autor que estiver na moda. A leitura de determinadas obras exige um esforço, e uma dureza, que não se coaduna com a vida que as pessoas levam. Por isso, a um livro preferem ver uma telenovela, uma série, ou um blockbuster como a saga de 007. Algo que as entretenha da dureza da realidade (“Go, go, go, said the bird: human kind Cannot bear very much reality”. escreveu T. S. Eliot num dos versos de Quatro Quartetos). A literatura é por vezes cruel para com o leitor, para com a sua sensibilidade, que o autor na sua grandiloquência admite desprezar.

3, Já aqui referi alguns autores que terão a capacidade de escrever pensando num determinado – e alargado – público, ou se quisermos, terão uma literatura com menos pathos (Mário Zambujal, J. Rodrigues dos Santos, Dan Brown). A estes gostaria de acrescentar outros: Roald Dahl, Ian Fleming, Enid Blayton, Agatha Christie. Roald Dahl, foi um escritor britânico, autor de livros para crianças (e também para adultos). Ian Fleming foi um militar, jornalista e escritor britânico que escreveu romances de espionagem, tendo sido o criador do famoso agente James Bond, o 007. Os seus livros, escritos entre os anos 1950 e 1960 deram origem aos famosos filmes de James Bond. Quanto a Enid Blayton, ficou celebre pela série de livros de aventuras para um público juvenil, Os Cinco. Também estes tiveram adaptações audiovisuais. Agatha Christie, foi um dos grandes nomes do policial, criadora das personagens Hercule Poirot e Miss Marple. O que têm em comum estes quatro escritores para além do seu grande sucesso junto do público? Foram todos, nos últimos tempos, alvo de censura por parte das suas editoras. Essa censura foi feita com a ajuda de um grupo de pessoas, chamado “leitores de sensibilidade” (“sensitivity readers”). Sendo estes autores Best-Sellers, quer para um público infanto-juvenil, quer para um público interessado no romance policial e de espionagem, ou seja, para um público que prefere uma literatura mais ligeira, longe da grandiloquência literária, torna-se um pouco difícil perceber em quê estas obras feriram a sensibilidade destes leitores. A resposta estará num revisionismo woke, que chega agora à literatura. A questão que se coloca, depois da obra destes autores ter sido tocada pelos “leitores de sensibilidade” é saber até onde irá esse revisionismo completamente intolerável. Será que chegarão às grandes obras da literatura mundial? E mesmo que não cheguem, o facto de terem reescrito obras de 4 autores – que para muitos leitores estão entre os seus preferidos – é já demasiado grave.

terça-feira, fevereiro 28, 2023

O ESPESSO EXPRESSO

 


1, O semanário Expresso fez 50 anos. Número redondo como se gosta nos meios jornalísticos, portanto ocasião para comemorar: uma edição especial com o formato e o grafismo originais, um pequeno caderno com as primeiras páginas e uma conferência em participou, entre outros o presidente Marcelo Rebelo de Sousa – que foi director do Expresso –, e ainda um livro do seu fundador e primeiro director, Francisco Pinto Balsemão, dividido em três volumes. Na verdade, o livro, cujo título é Memórias. Expresso 50, não é um livro original, mas o que alguém aproveitou e adaptou de um calhamaço de mil páginas em que Balsemão escreve as suas Memórias (Porto Editora, 4ª edição 2021). Estes 3 volumes perfazem 237 páginas, pelo que, não tendo lido esse recordatório, talvez podemos supor que cerca de 20 por cento do livro de memórias de Balsemão é dedicado ao Expresso, e também ao Diário Popular, jornal vespertino, já extinto como muitos outros, e de que um tio de Pinto Balsemão – “o tio Xico” – era accionista e gestor.

2, Se escrevi acima que Francisco Pinto Balsemão foi o fundador e primeiro director do Expresso, sendo essa a verdade oficial, pela leitura das Memórias do Expresso facilmente se fica a perceber que, ressalvando o período em que Balsemão foi ministro do governo AD, e depois, Primeiro-Ministro, ou seja, entre 1980 e 1983. Balsemão assumiu sempre um papel de liderança dentro do jornal, embora não voltasse ao cargo de director. Uma espécie de director não executivo, ao mesmo tempo que era o gestor do jornal, papel que continua a desempenhar.  

3, O que essencialmente estas Memórias oferecidas aos leitores do Expresso revelam é o espirito medíocre de Francisco Pinto Balsemão, o seu egocentrismo, os seus tiques de uma alta burguesia preocupada essencialmente com a rentabilidade, com os aspectos económicos. Balsemão acha-se o pai do Expresso, o que na realidade é, mas não percebe que o bom pai é aquele que quer que os filhos cresçam. Por isso acha-se acossado quando pessoas que pertenceram ao jornal o abandonaram para criar outros projectos. E refere-se a isso “numa interpretação freudiana” como “matar o pai”. E quem quis matar o pai? Desde logo Marcelo Rebelo de Sousa, “um dos fundadores do ‘Semanário’, em 1983”, mas também Augusto de Carvalho que fundou o diário Europeu, em 1988, Miguel Esteves Cardoso, que com Paulo Portas vai fundar nesse mesmo ano o Independente, e que Balsemão admite que “nos anos áureos, foi um perigoso e válido concorrente do Expresso”. Mas também José António Saraiva, que depois de 21 anos como director do Expresso funda o Sol, ou ainda jornalistas como Maria João Avillez, ou o administrador Henrique Granadeiro. Mas o grande “golpe” para o Expresso terá sido a saída de Vicente Jorge Silva acompanhado de um grupo de 20 jornalistas que faziam a Revista, para fundar o diário Público, cujo accionista era Belmiro de Azevedo, à altura o homem mais rico de Portugal. O que Balsemão na sua cultura contabilística não consegue perceber é que o Expresso é, apesar de tudo, um jornal muito maior do que a estreita mente do seu fundador. É certo que foi ele que escolheu algumas das pessoas para redactores ou para a direcção editorial, mas o Expresso terá ganho uma outra dimensão com a contribuição de Vicente Jorge Silva, que nos finais da década de 60 tinha fundado na Madeira o Comércio do Funchal. Vicente Jorge Silva, quer com o Comércio do Funchal, quer com a Revista do Expresso, quer com o Público, foi um grande criador de jornais, jornais de qualidade, de referência, com um sentido cultural, político, de visão da sociedade e do seu tempo. Jornais que talvez fossem um pouco megalómanos para o estreito espaço português, mas fizeram com que Portugal tivesse produtos jornalísticos que podiam colocar-se lado a lado com os grandes jornais europeus. E, para além de saber rodear-se dos melhores colaboradores e jornalistas, Vicente Jorge Silva era alguém cujos editoriais, assinados no Público, tinham um peso na sociedade portuguesa.

4, E hoje, o que é o Expresso? Com uma ou outra excepção é um jornal medíocre, com a direcção editorial a obedecer ao “pai” e “fundador” Balsemão, à sua estreiteza mental de quem é sobretudo um empresário e ex-político. É certo que os jornais, no seu estertor, perderam qualidade. Mais: perderam-se e continuam-se a perder jornais, e é de temer o que pode acontecer à Imprensa escrita portuguesa – e não só – na era do digital, das redes sociais. Mas a perda de qualidade também atinge o Público, e talvez jornais internacionais como o El País, o Le Monde, o Libération ou mesmo o tão seguido pelos jornalistas The Guardian (será o único “grande” jornal em regime totalmente aberto na sua edição on-line). O Expresso ainda mantém nomes como Gonçalo M. Tavares (sem dúvida o melhor escritor português actual), Miguel Sousa Tavares, Clara Ferreira Alves (que resvala muito nas suas longas crónicas para um certo pedantismo), Pedro Mexia (que está muito longe de ocupar o lugar de um Eduardo Prado Coelho na Imprensa portuguesa). Refira-se ainda correspondentes em vários pontos do globo, mas não em regime de exclusividade.

5, O Expresso é um dos jornais que mais vende em Portugal, quer no on-line, quer na sua edição em papel, vendido num saco que outrora foi de plástico e agora – por razões ecológicas – é de papel. Já pesou quase 2 kg, mas agora está mais magro: primeiro caderno, revista E, e caderno de economia. O público a que se destina são classes A e B, ou seja, doutores & engenheiros, profissões liberais e posicionamento político. Aliás o preço do jornal em papel, quase cinco euros, assim o justifica. E quem pensa que tem leitura para toda a semana é porque lê pouco, ou aguenta com prosas chatas de especialistas nisto ou naquilo – algo visível na actual edição da revista E, onde existe uma pomposidade no título com que alguns articulistas escrevem quatro ou cinco páginas, como se vê nestes exemplos: "Nuno Galopim / Diretor de programas da Antena 1 e curador musical do Festival da Canção" (Revista E, 24 de fev. 2023) ou este: "Henrique Raposo / Licenciado em História, mestre em Ciência Política e cronista do Expresso"; de facto Raposo é cronista semanal na edição em papel do primeiro caderno e ainda cronista da edição diária digital, mas só mais risível que toda esta pompa de apresentar o CV dos articulistas ao lado da sua fotografia em caracteres maiúsculos, é mesmo este Henrique Raposo, e o artigo que assina na edição de 20.01.2023 intitulado "A cura dos pobres". Vale a pena transcrever a entrada: "Através da revolução da epigenética, uma nova neurociência da pobreza mostra-nos que a miséria extrema é sobretudo a manifestação de um grupo de doenças mentais. Aquilo que sempre foi visto como o 'comportamento à pobre' é, na verdade, um conjunto de sintomas do campo da saúde mental. Ou seja, a pobreza pode ter um tratamento ou mesmo cura". Fantástico este Raposo, cujas prosas tanto devem agradar ao pretenso citizen Kane Francisco Pinto Balsemão. 

(Nota: na imagem, parte da capa do 1º número do Expresso, saído a 6 de Janeiro de 1973)


terça-feira, janeiro 31, 2023

A POLÍTICA DOS TOTÓS





1, Há um ano, O PS, inesperadamente, conseguia uma maioria absoluta com cerca de 41 por cento dos votos, numas eleições legislativas desnecessárias, provocadas pelo chumbo do Orçamento de Estado, em que os partidos da antiga geringonça tiveram um papel preponderante. Este ano de governo, ou melhor estes 10 meses do novo governo de António Costa foram dos mais desastrosos da democracia portuguesa, especialmente o último mês. A sucessão de "casos & casinhos" foi avassaladora e provocou a demissão de secretárias de Estado e de um Ministro. Por várias razões este governo já tinha um número anormal de demissões, cerca de dez, quando toda esta avalanche se deu. O caso da secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, que recebeu uma indemnização de meio milhão de euros para sair da TAP foi o despoletar de toda uma bola de neve, que chegou à demissão do ministro responsável pela pasta da TAP,  Pedro Nuno Santos, apontado como possível sucessor de António Costa. Numa tentativa de pequena remodelação governamental, António Costa foi arranjar um outro sarilho: a nova secretária de Estado da Agricultura, uma aparente impoluta senhora, não chegou a estar 24 horas no governo. Afinal parecia que o marido tinha um caso com a justiça... mas na realidade a história era mais complicada. Demitiu-se depois de um comentário em directo de Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente-jornalista-comentador mor, que demite governantes em directos para as televisões. Como consequência disto tudo, outro erro de António Costa: uma lista de 36 perguntas a apresentar a quem for chamado para funções governativas. Carla Alves demitiu-se a 5 de janeiro, e a secretaria de Estado da Agricultura parece que foi extinta, sem que alguém a quisesse ocupar. Ou seja, toda esta crise com múltiplos escândalos, levou a uma fragilização do governo, que apesar de ser de maioria absoluta é um governo a prazo. A lista das 36 perguntas e os "casos & casinhos" afastam qualquer pessoa com competência (ou mesmo sem ela) de um lugar no governo. Se ninguém quer ocupar um lugar no governo, é lógico que o mesmo esteja a prazo, dependente da próxima demissão, do próximo caso.

2, O que muda agora? Naturalmente, espera-se, e as sondagens já vão nesse sentido, que das próximas legislativas saia uma maioria de direita, ou pelo menos o partido que lidera a direita - que ao longo da democracia representativa portuguesa tem sido o PSD - ganhe as eleições. Só que nos últimos anos houve uma reconfiguração da direita. A direita portuguesa perdeu o CDS, ganhou um partido de extrema-direita, que já é o terceiro maior partido português,  e um outro de direita liberal - o Iniciativa Liberal. Para além disso, o PSD parece estar a perder força, o que só reforça os outros dois partidos de direita. Esta é a realidade: uma nova maioria de direita vai contar com a extrema-direita, e tanto PSD como IL não marcaram uma linha vermelha em relação ao Ch. Isto que pode acontecer em Portugal, e que parece ser inevitável, também pode acontecer em Espanha com o Vox, e já aconteceu em Itália com os Frateli d' Italia de Georgia Meloni. 

3, Ora parece que a esquerda quer que a direita (com a extrema-direita) governe. E, na verdade, isso já aconteceu aquando da rejeição do PEC IV, o que levou à demissão de Sócrates, e consequente governo PSD/CDS com Passos Coelho a ir além da troika. Os portugueses, e principalmente os políticos portugueses parece que já se esqueceram do que se passava há 10 anos. Neste caso, e perante este descrédito do governo de António Costa, creio que a tentativa para uma solução passava por um congresso extraordinário onde fosse eleito um sucessor de Costa, continuando este no governo mas abrindo a possibilidade de ser substituído como primeiro-ministro. Para além disso, se já existisse um sucessor de Costa, seria mais fácil o PS apresentar-se a eleições. Mas nada parece mover-se no PS ou sequer na esquerda portuguesa. No fundo, e isto de certa forma é dramático, a classe política portuguesa tem perdido capacidade. Ou seja, ser dupla o triplamente escrutinado é coisa que certamente ninguém quer para a sua vida, por isso pessoas que podiam estar na política não estão. E este escrutínio não é já só mediático, é também o escrutínio que António Costa criou, agora, com as 36 perguntas, e é o escrutínio que o Ministério Público gosta de andar a fazer a políticos (repare-se que foi com a prisão de Lula da Silva que Bolsonaro chegou ao poder no Brasil). Este triplo escrutínio deixa a política para os totós, ou dito de outra forma, são os totós que se fecham num círculo político-mediático. que no caso português parece querer dar cabo do regime que nasceu com o 25 de Abril de 1974.