segunda-feira, agosto 23, 2010

dixit: Fernando Sobral sobre a desertificação do interior do país


701 não é o novo número de emergência nacional. É o número que decreta a desertificação do País.
O ministério que defende esta chacina em nome da modernidade e da eficiência pensa que as escolas são "call centers". O fim das escolas cumpre o que os fogos iniciaram: asfixia económica e socialmente os que ainda vivem no interior. O que se pretende é o fim do interior. Desde há anos que se quer transformar Portugal num País de litoral onde o resto é paisagem. Esta decisão do Ministério da Educação é um decreto de suicídio assistido de muitas aldeias deste pobre território. Como é possível decretar, de Lisboa, que crianças vão começar a fazer 50 quilómetros por dia para ir para escolas melhor equipadas? É a mesma política que decreta a morte da floresta nacional. Nenhuma explicação é suficiente para aquilo que se está a fazer perante o silêncio da sociedade que, mais uma vez, encolhe os ombros. Maria de Lurdes Rodrigues iniciou esta política com a pose de Madame Min. Isabel Alçada cumpre-a com sorriso de Cinderella. Esta última forma dói mais, porque parece que a ministra troça do País e que isso lhe dá um secreto gozo. Quando se fala da revisão constitucional esta decisão ministerial mostra como o Estado deixou de cumprir a sua função de ser garante da educação de todos os portugueses. Sobretudo daqueles que não garantem maiorias parlamentares. É espantoso como não se escutam os deputados eleitos por Viseu (o mais atingido), unidos no interesses dos seus, a clamar contra este atentado. Não admira: quem os elege são as direcções nacionais...



Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 23. 08. 2010, última página.

domingo, agosto 15, 2010

Margarida Ferra


Flores nocturnas

Ouviste ontem à noite
a cadência misteriosa,
outra vez o trabalho
daquela costureira sem idade.
Os pés descalços sobre o pedal,
os braços colados ao pano, frios
e brancos, não têm carne
que possa ferir-se por
acaso ou falta de vista.
Mora dentro das paredes,
edifícios com mais de quinze anos,
e escolheu aqueles
a quem embala e atormenta o sono.

Os pontos regulares, na tua cabeça,
fixam sardinheiras frescas sobre
chitas desmaiadas pela luz do dia
que chagará daqui a nada.

***

Morada

Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.

Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, 2010, pp. 11 e 51.

Margarida Ferra estreia-se na poesia com a publicação deste Curso Intensivo de Jardinagem. Neste livro a autora explora o espaço da casa, de que é exemplo o poema "Morada" aqui publicado, mas sobretudo a segunda secção do livro - "Quatro Divisões". A terceira secção do livro, "Playlist", destoa das outras partes por um certo hermetismo, onde os poemas aparecem como menos conseguidos, o que não impede que este conjunto de poemas tenha excelentes momentos.

quarta-feira, agosto 04, 2010

RUI PIRES CABRAL


SHIRLEY ANN EALES


Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que tu? Não sei quem és
nem onde estas agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.

Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005, pp. 21-22