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Anónimo entre tantos, tão diferentes, tão
iguais, apareceste, suponho, sem o quereres na película. Rosto jovem,
precocemente envelhecido, lábios roxos de sangue sufocado nas artérias, defendias
a revolução com o ardor de quem por tão fundo acreditar, mais fundo havia já
perdido. Camisa aberta, gestos largos, mãos nervosas sempre a acender outro
cigarro, olhar límpido a idear outro futuro, eras a imagem da derrota e não
sabias. Todavia, repetias em cada frase da tua retórica revolucionária. Todavia,
reafirmavas, contra cada sombra que avançava, o sol que em ti era verdade, a
luz que haveria que vencer por mais que a marcha dos homens a esmagasse. Todavia,
camarada, que bem podias ser eu a gritar a céus inúteis, tudo estava condenado
desde o começo, nem tu nem eu o podíamos evitar. Todavia, camarada, esta a
natureza humana que nem deus nem homens podem alterar. Mas não te esqueças, por
pouco que durasse tivemos a nossa Torre Bela, erguemo-la com os braços da nossa
crença plena, vimo-la ruir sob o peso dos gestos tão humanos. Não me olhes com
esse desalento, Torre Bela que foi no pensamento, somente nele poderá
sobreviver. Tinha de ruir, põem isso na cabeça, mas foi nosso cada gesto
obstinado de a erguer. E nada foi em vão, camarada. Foi precisa a tua força. Foi
precisa a força de cada um de nós. Até dos que, como eu, só viriam a vivê-lo
uma década mais tarde. Até dos que não nasceram e nessa luta e nessa força se
hão-de reconhecer. E mesmo derrocada, a Torre Bela apenas ruiu na circunstância
que a sustentava. E das ruínas há-de erguer-se uma vez mais, muitas vezes mais
ainda, para outras tantas derrocar indiferente ao nosso empenho. Assim é,
camarada, esta a vida e a sua beleza difícil de entender. Não cismes, o que
podia ter sido é uma porta fechada, mas o caminho segue para lá dos nossos
passos. Aceita-te no rosto de quanto lutaste e falhaste. Aceita que morres e
não é o fim. Então sorri a tua vida derrotada e cumprida.
Jorge Roque, “Evocação e epitáfio”, in País
Rato, ed. Maldoror, 2023, pp. 34-35