quarta-feira, abril 23, 2014

IMAGINE QUE VOLTAVAMOS PARA TRÁS 40 ANOS



Imagine que a qualquer altura, e sem justificação, o podem despedir.
Imagine ficar sem o subsídio de férias e sem o 13º mês.
Imagine ficar desempregado e não ter qualquer ajuda do Estado.
Imagine ficar sem a casa que paga ao banco (e não ter onde viver).
Imagine ficar sem uma parte da reforma que lhe prometeram.
Imagine viver sob um governo que obedece cegamente a interesses estrangeiros. Imagine que o Estado fica com o “lixo” dos bancos.
Imagine viver num país cujo primeiro-ministro faz tudo para que os cidadãos empobreçam.
Imagine ser governado por alguém que faz exactamente o contrário do que prometeu na campanha eleitoral.
Imagine ter de emigrar porque não consegue arranjar emprego.
Imagine não poder estudar porque não tem dinheiro para pagar as propinas, e o Estado não lhe dá uma bolsa de estudo.
Imagine que o serviço nacional de saúde começa a ser desmantelado.
Imagine que fecham as escolas e as repartições públicas na zona onde vive. Imagine que querem baixar ainda mais os salários.
Não precisa de imaginar mais. Abra os olhos para a realidade. Esta é a realidade a que chegamos em três anos de governo PSD/PP.

segunda-feira, abril 21, 2014

DULCE MARIA CARDOSO

[...] As crianças pintaram ainda mais as caras com um toco de madeira ardida, fizeram bigodes e barbas a carvão na pele, tudo isso se passou na terça-feira gorda, um dia frio e chuvoso, um dia feio e tão diferente do dia luminoso do mês de Maio em que nos apareceu um anjo com uma cesta de cerejas para nos oferecer.
    As crianças foram as primeiras a reagir. A sua pouca sabedoria não lhes permitia completo entendimento do milagre. Rodearam Dóris e a cesta das cerejas com saltinhos de animais domésticos que também eram. Trincaram a medo a primeira cereja, a segunda, e perdido o medo começaram a devorá-las. O sumo vermelho escorria-lhes pelos queixos e pelas mãos, e as crianças não paravam de sorrir. As mães receosas pelos filhos logo os imitaram, como é instinto de qualquer fêmea. Se as crias se perderem, perca-se também quem as pariu que, em caso de perda daquelas, estas cá não ficam a fazer nada para além de sofrer. Começaram então as mães a comer cerejas e a cuspir os caroços, que se enterravam na areia ao lado dos pés de Dóris. Chegou a vez de os homens se baixarem e, com as mãos em concha, servirem-se das cerejas. Devoraram-nas com gula e com o mesmo sorriso das crianças. À nossa frente, ao nosso lado, no meio de nós, o anjo vestido de branco continuava a sorrir com os pés enterrados na areia, decerto para não fugir da terra a que não pertencia.
   O sumo das cerejas escorria nas mãos das crianças, das mulheres, dos homens, nas minhas mãos, que fui o último a provar do pecado da gula, tão perdido estava a desrespeitar o mandamento que proíbe a cobiça da mulher alheia, ainda que, em vez de mulher, visse um anjo. Não me lembro se o Matias comeu cerejas mas deve ter comido, naquele sítio a comunhão dos gestos era obrigatória. E da comunhão dos gestos à dos pensamentos, palavras, actos e omissões vai menos que um passo. Nem sempre por nossa culpa, tentávamos convencer-nos"

Dulce Maria Cardoso, Tudo são Histórias de Amor, Tinta-da-China, Lisboa, 2014, pp. 16-17.

sexta-feira, abril 18, 2014

GABRIEL GARCIA MARQUEZ (1927-2014)



Gabriel Garcia Marquez não nasceu em Macondo, lugar imaginário onde se passa a acção do seu mais conhecido livro de ficção – Cien Años de Soledad (1967). Gabo, como era afectuosamente tratado, nasceu em Aracataca, na Colômbia, a 6 de Março de 1927. Morreu ontem na cidade do México, onde vivia há vários anos. Tinha 87 anos.
Antes de ser o consagrado autor que cunhou a expressão realismo mágico – que tantos escritores viria a influenciar –, o Prémio Nobel da Literatura em 1982, foi repórter. Mas o escritor que considerava o jornalismo “o melhor ofício do mundo” tornou-se crítico da forma como nas últimas décadas o jornalismo era praticado. Por exemplo, criticava o uso de gravadores e recusava dar entrevistas.
O ofício da escrita onde criou um mundo imaginário repleto de maravilhoso, o realismo mágico, terá sido bebido nas histórias que a sua avó Tranquilina e o avô, coronel Nicolás Marquez lhe contaram na infância. Se um contava o real da guerra civil, o outro contava o imaginoso mundo cheio de superstições. Desta mistura terá nascido o realismo mágico que em Cem Anos de Solidão atinge o seu cume. Esse realismo mágico que foi, entre outros, também praticado pelo escritor mexicano Juan Rulfo, e por muitos outros – entre os quais se poderiam referir alguns escritores portugueses.  
Em 1947 estreia-se na literatura com um conto publicado no jornal El Espectador, de Bogotá. Abandona o curso de direito para ser jornalista (a Obra Periodista de Gabriel Garcia Marquez está publicada em vários volumes). Em 1955 publica o romance La hojarasca (1955) e o livro de contos Olhos de Cão Azul. Ao todo são cerca de uma vintena de títulos, de entre os quais se destaca Cem Anos de Solidão, lido por cerca de 30 milhões de pessoas, mas também Amor nos Tempos de Cólera (1985).
A obra de Gabriel Garcia Marquez não beneficiou, junto de certa intelectualidade, de ser um best-seller. Muito pelo contrário, como é natural nestes casos, onde um certo preconceito se estende sobre tudo o que obtém sucesso. No entanto, o estilo de Garcia Marquez marcou leitores e criou epígonos. E nem sempre foi um fogo-de-artifício de realismo mágico – leia-se a pequena novela Ninguém Escreve ao Coronel (1957), perfeita na sua secura.   

sábado, abril 05, 2014

JORGE FALLORCA (1949-2014)

Percorro a praia dividido entre a memória e a ausência. Todos
os sentidos me contrariam as pegadas na areia molhada.
As bibliotecas.

Sento-me de frente para o mar, com um saco de laranjas ao
lado. A loucura é uma arte menor.

(Longe do Mundo, p. 76)