Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida
Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
António Ramos Rosa, "Estou vivo e escrevo sol", poema publicado pela primeira vez no livro com o mesmo título de 1966.
AS PALAVRAS VITAIS PULSANDO NO POEMA
António
Ramos Rosa era um dos últimos grandes poetas portugueses. Esta afirmação
aparentemente banal numa altura como esta tem a sua justificação. Embora sendo
um poeta maior, pela sua necessidade de uma respiração poética que o parecia
alimentar como o ar, como a “facilidade do ar” – título de um dos seus livros –,
Ramos Rosa tornou-se em certo sentido um poeta “marginal”. Marginal porque
editou cerca de 100 livros, a maioria dos quais em pequenas editoras, mas
também porque a sua pulsão poética, marcada pelo desejo – desejo do poema e no
poema em primeiro lugar, como acto de afirmação, acolhimento e plenitude – não seria
bem vista a partir de um momento em que a poesia portuguesa começa a ser
marcada por um tom narrativo, pela melancolia e posteriormente por um niilismo
de pulsão tanática. É certo que a poesia – portuguesa e não só, sempre foi
marcada por pulsões de morte. No entanto, António Ramos Rosa, embora só
iniciando a publicação em livro em 1958, com o livro O Grito Claro (título que encerra todo um programa), pertence a uma
geração de grandes poetas portugueses que iniciaram o seu percurso ainda
durante a II grande guerra: Sophia, Eugénio de Andrade ou Jorge de Sena.
É fundamentalmente a forma como é editado e a
sua pulsão poética, que o leva a escrever milhares de poemas, que o tornam um
poeta que pode parecer repetitivo ao leitor desatento da sua obra. E no entanto,
a obra poética de Ramos Rosa está à altura da de Sophia, Sena, Eugénio ou
Herberto.
Essa obra é marcada por uma extrema modernidade, uma alta
modernidade – e repare-se na influência que Ramos Rosa exerceu sobre os poetas
de Poesia 61 de que é testemunho
Gastão Cruz. O autor de Acordes (1989)
foi desde cedo um teórico do poema. Daí resultaram alguns dos principais
livros de ensaio da poesia portuguesa: Poesia,
Liberdade Livre (1962), Incisões
Oblíquas (1987) ou A Parede Azul (1991). Nestes livros, a respiração
poética fazia-se quer através de uma teorização do poema, quer através do diálogo
com a obra de outros poetas – e esse diálogo, já sob a forma de poema, foi
particularmente fecundo em livros como A
Imobilidade Fulminante (1998) em diálogo com Rosa Alice Branco. Mas a
teorização da poesia, de que os textos iniciais de A Parede Azul são um dos pontos mais altos, bem como as múltiplas artes
poéticas espalhadas pela sua vasta obra, falam-nos de uma poesia autotélica e
de uma insurreição: “a poesia é uma invenção livre e aberta mas é ao mesmo
tempo uma insurreição vital”, lemos na página 15 de A Parede Azul. Assim se compreende que os primeiros poemas, como “O
boi da paciência”, que fizeram Eduardo Lourenço classificar a poesia de António
Ramos Rosa como realista, até livros finais como Génese Seguido de Constelações (2005) mantenham ainda que de forma diferente essa linha de resistência, que é ao mesmo tempo uma forma de
insurreição contra “os discursos que a sociedade produz […] os seus estereótipos,
as suas normas e conceitos”. É contra este mundo desvitalizado que Ramos Rosa
escreve. Mas estar contra essa desvitalização implica que o poema é também um
lugar de pensamento – e nesse sentido há uma ligação em Ramos Rosa entre poesia
e filosofia.
De António Ramos Rosa, ficam as palavras, as palavras vitais
pulsando nos seus poemas. E enquanto existir uma civilização, essas palavras
ecoam como um desejo eterno de vida: “Estou vivo e escrevo sol”.
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