segunda-feira, junho 30, 2025

A guerra, entre o inominável e o patético

 


1, Na faixa de Gaza vive-se o inominável. Todos os dias dezenas de palestinianos são mortos quando vão buscar comida. São já cerca de 56 mil os mortos na faixa de Gaza, desde o 7 de Outubro de 2023, altura em que o Hamas atacou e fez reféns colonos israelitas. A ira bíblica de Israel abateu-se sobre os palestinianos, entrincheirados na estreita faixa de Gaza, entre o mar e o estado de Israel. Dois milhões de pessoas vivendo numa prisão a céu aberto. O Hamas agora, como outrora a OLP, surge como resposta a essa situação infra-humana. A criação do estado de Israel deu-se depois do fim da II Guerra Mundial, ou seja, depois do fim do Holocausto em que os nazis exterminaram cerca de seis milhões de judeus. A solução final nazi, foi naquela altura o inominável que palavras como Holocausto pretenderam traduzir. Mas agora é Israel – melhor dizendo o primeiro-ministro Benjamin Natanyahu – que se comporta como os nazis. Trata-se de um lento genocídio, pela fome como arma de guerra, pela falsa ajuda humanitária de uma alegada fundação privada norte-americana, que é um bando de mercenários pronto a disparar com o exército israelita sobre os famintos palestinianos. E tudo isto é uma criação da aliança entre Trump e Natanyahu.

 2, Natanyahu bombardeou o Irão (com a ajuda da sua tenebrosa Mossad, pretendia decapitar o regime dos aiatolas), e o Irão bombardeou Israel. Andaram nisto 12 dias, até que Donald Trump, o palhaço rico, usou os seus “fantásticos” aviões B-2 para bombardear locais onde, alegadamente, se desenvolve o programa nuclear do Irão. Uma bomba “incrível” que só os EUA têm. Resta saber se os bombardeamentos foram eficazes para acabar com o programa nuclear de Irão. Mas para Israel de Natanyahu – acossado com acusações por corrupção – nada é suficiente. Israel está quase sempre em guerra desde a sua fundação, em 1948.

 3, Donald Trump, que queria que os EUA saíssem da NATO, acabou a exigir dos membros do clube fundado entre outros por Portugal de Salazar, que cada país pague cinco por cento do seu PIB anualmente para a defesa e segurança. É muito dinheiro para a indústria do armamento – principalmente norte-americana – que está extremamente grata ao homem cor de laranja. E Luís Montenegro, no beija-mão a Donald, como os seus homólogos europeus e não só, concordou. Deste coro destoou a voz de Pedro Sanchez, o presidente do governo espanhol, que vive cercado de acusados de corrupção por todo o lado (mulher, irmão, melhores amigos dentro do PSOE). Neste lodaçal de corrupção, o líder do PSOE aguenta-se e recusa a chantagem do bonecreiro Donald.

 (imagem do The New Yorker)

 


sábado, maio 31, 2025

Sophia de Mello Breyner Andresen

 


A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa forma terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner Andressen do livro O Nome das Coisas (1977), in Obra Poética II, Circulo de Leitores, Lisboa, 1992, p. 238

terça-feira, abril 29, 2025

JORGE LUIS BORGES

 


                                              O PRINCÍPIO

 

Dois gregos conversam: Sócrates, talvez, e Parménides.

Convém que nunca saibamos os seus nomes; assim, a história será mais misteriosa e tranquila.

O tema do diálogo é abstracto. Às vezes, aludem a mitos, dos quais ambos descrêem. As razões que alegam podem abundar em falácias e nunca intentam um fim.

Não polemicam. Já não querem persuadir, nem ser persuadidos, não pensam em ganhar ou perder.

Numa só coisa estão de acordo: sabem que o diálogo é o não impossível caminho para chegar a uma verdade.

Livres do mito e da metáfora, pensam, ou procuram pensar.

Nunca saberemos os seus nomes.

Esta conversa de dois desconhecidos, num lugar da Grécia, é o facto capital da História.

Pois já olvidaram a prece e a magia.

 

Jorge Luis Borges, A Memória de Shakespeare, trad. Luís Alves da Costa, Vega, 2002, p. 7

Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires (Argentina) em 1899. Foi dos maiores criadores da literatura mundial do século XX. Não recebeu o Nobel nem precisava; o Nobel é que precisava dele. A sua criação de mundos atinge o auge em dois volumes de contos: Ficções e O Aleph. 


segunda-feira, março 31, 2025

Beatriz Hierro Lopes



OLHOS

Falar tão baixo que ninguém ouça, escrever tão pequeno que ninguém leia, esvaziar tanto os ouvidos e os olhos que me achem sumida no chão que piso. Meu eu ausente, comprando casas de porcelana para minha mãe. Coleccionamos casas, pássaros nas molduras e budas mendicantes, que nos olham além da ternura bojuda de um candeeiro em latão dourado a que a mãe passa o lustre todas as segundas. Não temos casas nem asas. Cristo menino é perneta e dorme na almofadinha de veludo rosado que lhe deram para fazer conjunto na vez das palhas. Não repousa, olha-nos de olhos bem abertos de vidro pintado; nunca pude ter berlindes, pois os adultos tinham medo que os engolisse; mas eu não engoliria os olhos do menino magoado. Embate na noite a minha alma e é possível que a tenha trocado por olhos vidrados a um cristo de duas pernas. Gemer tão baixo que todos ouçam, falar tão silenciosamente que ninguém possa dormir, respirar tão pausadamente que até santos acordem e anjos se evadam dos céus. Que outra forma tenho eu de recriar a tua solidão na minha? 

Beatriz Hierro Lopes, É Quase Noite, Averno, Lisboa, 2013.


sexta-feira, fevereiro 28, 2025

Gouveia e Melo, o candidato a PR que quer "colonizar" o mar

 


O almirante (ou ex-almirante) Henrique Gouveia e Melo, depois de ter organizado a vacinação de milhões de portugueses contra a covid, num cenário de ficção científica, tornou-se num mito sebastianista. Esse mito foi alimentado pelos meios de comunicação social como candidato às eleições presidenciais de 2026. E eis que o militar submarinista, já no ano passado, aparecia em primeiro lugar nas sondagens. O próprio Gouveia e Melo, em entrevistas, não descartou a hipótese de uma candidatura. Agora, depois do artigo publicado pelo almirante no Expresso de 21 de Fevereiro, não restam dúvidas que Gouveia e Melo será candidato às próximas eleições presidenciais. Só falta oficializar a candidatura, como já fez Marques Mendes e Mariana Leitão (candidata apresentada pela IL).

               A grande questão que se colocava aos comentadores políticos sobre a candidatura do militar submarinista, era saber quais as suas ideias políticas, como se posicionava no espectro político: é de esquerda? De direita? Um populista? Ninguém sabia. Afinal ficamos a saber que o submarinista pesca eleitorado entre o socialismo e a social-democracia, portanto ao centro que é onde há mais peixes. Mas porque se interrogavam, antes deste artigo tão minuciosamente analisado, os comentadores políticos? Será que não sabem o que é o you tube? É que por lá andam vídeos com as ideias de Gouveia e Melo. As ideias do submarinista candidato a candidato a presidente da República Portuguesa, enfim a grande ideia, que poderá fazer de Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo o novo Infante D. Henrique, é colonizar o mar. Colonizar talvez não seja bem a palavra certa, mas os peixes não vão gostar. Diz Gouveia e Melo num TEDx  que o “ser humano, antes de ir para o espaço, vai habitar o mar” e isto antes de 2050, pelos cálculos do militar agora na reserva. No mesmo TEDx Gouveia e Melo fala de “cidades flutuantes”. Mais, “vamos passar de um mundo terreno para um mundo oceanocêntrico”. Para o ex-almirante “não devemos chamar a este planeta Terra, mas Água” porque 2/3 do planeta é constituído por água. Nesse TEDx, realizado no Porto, Henrique Gouveia e Melo faz o elogio do Infante D. Henrique, nascido na cidade do Porto.

               Este homem andou durante mais de 40 anos debaixo de água, em submarinos. Em criança certamente leu as 20 Mil Léguas Submarinas de Jules Verne.  Chegou à mais alta patente das forças armadas, foi empurrado por um vírus para a ribalta mediática, e agora, quer ser presidente da República. Mais, numa atitude megalómana, quer ser um novo Infante D. Henrique. Isto é política, ou ficção científica? As duas coisas. Mas os comentadores políticos só percebem de política em terra. Não são capazes de ver que temos aqui um Elon Musk (sem saudação nazi) português. O submarinista mete água? Claro, é uma espécie de Homem da Atlântida (série que passou na tv portuguesa nos anos 80). Henrique Passaláqua (repare-se neste nome, que contém áqua = água) é água por todos os lados. Com as sondagens que tem, a simpatia do eleitorado feminino, já foi eleito presidente, 11 meses antes das eleições. Mas o que fará um homem da água no palácio de Belém? Será que vai atirar com 10 milhões de portugueses borda fora para ocupar as cidades marítimas ou flutuantes? Teremos presidências não abertas, mas fechadas dentro do exíguo espaço de um submarino?

               Na verdade – ou na mentira – o ex-almirante é uma fabricação mediática resultante, como já foi dito, da vacinação contra a covid. Como tal foi possível? Não é uma atitude de total irresponsabilidade por parte dos meios de comunicação social atirar para a corrida presidencial um militar sobre o qual eram – e continuam a ser – desconhecidas as ideias políticas. Porque Gouveia e Melo atira para um eleitorado do centro, um espaço muito amplo; porque Gouveia e Melo com a sua atitude autoritária chegou a ser pensado pelo Chega para ser o candidato apoiado pelo partido de André Ventura (que também foi uma criação mediática até se tornar um elefante no meio do parlamento).

               No artigo publicado no Expresso aparece uma ideia nova: a de demitir o governo quando este não cumprir com as promessas eleitorais, algo que foi bastante evidente com o governo de Passos Coelho/Paulo Portas, mas também com governos anteriores. Aqui é o governo que mete água, e de forma significativa nos últimos 50 anos de democracia. Confesso que esta ideia me agrada, um candidato a primeiro-ministro não pode dizer que vai baixar os impostos na campanha eleitoral e, quando alcançar o poder subir a carga fiscal. Ou seja, não pode mentir ao seu eleitorado, tem que ser fiel às suas promessas eleitorais.

               Mas no geral, e faltando ainda muito tempo para as eleições presidenciais, mas tendo em conta as declarações que se podem encontrar no you tube por Gouveia e Melo, quer pelo facto deste pertencer a uma cultura militar, marcada pela disciplina, não parece trazer nada de bom para a democracia portuguesa (bastante fragilizada no mundo de Trump & Musk). Já tivemos a experiência de um militar na presidência da república, Ramalho Eanes eleito para o primeiro mandato em 1976, mas esses eram tempos diferentes, e Eanes tinha sido um dos vencedores do 25 de Novembro de 1975, contra um golpe da extrema-esquerda – portanto era conhecida a sua posição política. De Gouveia e Melo sabemos que é um submarinista, e talvez aproveite o cargo de presidente da República – se lá chegar – para usar a sua “magistratura de influência” no sentido de construir as “cidades flutuantes”. Uma ideia mirabolante de ficção científica. Uma ficção científica que estará sempre ao serviço do capitalismo, como o almirante Gouveia e Melo.


sexta-feira, janeiro 31, 2025

Rubem Fonseca

 


TELEVISÃO

 

Eu gostava de desenhar. Estava sempre desenhando. Isso antigamente. Agora perdi a vontade de desenhar, ou melhor, não sei o que desenhar. Eu desenho tudo, mulheres nuas, homem morto, flor – flor eu não gostava muito, só do cheiro –, desenhava ruas, letreiros luminosos, pessoas em volta de uma mesa jantando (ou almoçando), dois sujeitos jogando sinuca aleijadinho – aleijadinho eu gostava de desenhar, vários tipos de aleijadinho, sem perna, em cadeira de rodas, sem braço, mas o que eu gostava mesmo era do aleijadinho com duas muletas e sem as duas pernas. Eu desenhava a cara desse aleijadinho como a de um homem feliz, feliz porque podia passear pelas ruas, ainda que fosse de muletas.

Havia uma coisa que eu detestava: desenho abstrato. «Abstração: uma coisa de difícil compreensão, obscura», diz o dicionário. Novamente o dicionário: «Abstrato: que não é claro para o espírito, que é difícil de compreender, de explicar.»

Você desenha uma porcaria que não quer dizer nada e diz «é uma abstração», e os bestalhões dizem «muito interessante». Será que essa gente não sabe que arte tem que ter um significado? Tem que exprimir algo?

Voltando ao meu problema. Eu sento à mesa, o papel e os crayons na frente, e não consigo desenhar. Na verdade, nem sento mais à mesa. Vou direto pra televisão ver uma das porcarias que exibem.

Falta inspiração? Isso parece coisa religiosa e eu sou ateu. Falta motivação? O artista precisa de estar motivado? Isso me parece pueril, uma tolice.

Eu sento à mesa, com o material para desenhar, espero um minuto. Desenhar o quê? Vou para a poltrona e ligo a televisão. Penso, amanhã vou desenhar. Mas volto a ver televisão. Vejo televisão todos os dias. Isso é coisa de débil mental. Mas vejo televisão, e vejo novamente, e novamente, e novamente. Ver televisão deixa o sujeito maluco.

Compro um revólver, vou dar um tiro na cabeça.

Mas em vez de dar um tiro na cabeça atiro na televisão. Vários tiros, destruo aquele monstro.

Não demorou muitos dias para que eu voltasse a desenhar.

Televisão? Nunca mais. Sem televisão eu fiquei bom, deixei de ser neurótico, coisa parecida.

Mas quando passo na vitrine de uma loja e vejo um aparelho de televisão confesso que meu coração bate apressado e minha boca se enche de saliva.

(Rubem Fonseca, Histórias Curtas, Sextante, pp. 67-68)