sexta-feira, agosto 01, 2008

FERNANDO GUERREIRO


AS CINZAS DE LENINE

Será desculpável a facilitação do discurso? A ligeireza
com que as águias passam, deixando cair as suas penas
sobre as acabrunhadas raízes (e ruínas) do absoluto?!
A partir de que ponto se altera (perde) o pensamento?
Quantas vezes é preciso repeti-lo até ele se constituir
como um símbolo capaz de assolar o futuro? Marx refere-se
ao «espectro do comunismo» (no Manifesto, em 1847) e tanto
para Burke (Reflections) como para Michelet (Le Peuple)
o fantasma da História reveste a forma de uma sanguinária
Medusa. Mas era verdadeiro o seu Terror face ao que ante
os seus olhos acontecia: o abismo que tornava o raciocínio
sempre inconcluso. Da mesma forma, as cinzas da Revolução
o nosso imaginário ainda perturbam. Putrefacta, seria mais
acessível à repulsa? É neve, neve, que o cérebro nos atulha,
enquanto lá fora os pássaros voam baixo, à procura
das sementes que nos resguardem do futuro.

Fernando Guerreiro, Toeria da Revolução, Angelus Novus Editora, 2000, p.31

segunda-feira, julho 28, 2008

O GRANDE SILÊNCIO PELAS VÍTIMAS DO COMUNISMO


Leio a introdução de José Pacheco Pereira à obra de Marx, editada na colecção "os grandes filósofos", e reparo que JPP se esqueceu de uma das mais importantes consequências do pensamento de Marx: as inúmeras, incontáveis (?) vitimas dos regimes comunistas por todo o mundo. Na União Soviética, com o Gulag que provocou milhões de mortos, certamente mais que o número de mortos vitimados pelo Holocausto, mas também nos restantes países da Europa de leste comunista; nas inumeráveis guerras em África onde após as independências se confrontavam guerrilhas pró soviéticas contra guerrilhas pró americanas (veja-se o caso de Angola ou Moçambique); na china de Mao Tsé-Tung (ou Mao Zedong) com a sua Revolução Cultural; no Cambodja do sanguinário Pol Pot …. O rol de pulhas que encarceraram, torturaram e mataram em nome do fim da exploração do homem pelo homem, de uma sociedade mais justa, sem classes, e de outros ideais tão nobres é extenso. Tão extenso como secreto. Como se o facto de serem sanguinários marxistas os tornasse menos sanguinários, menos criminosos, porque bem vistas as coisas esses monstros como o camarada Estaline ou Ceausescu apenas buscavam a felicidade do Homem na terra.
Espanta-me toda essa condescendência para com os carniceiros comunistas e espanta-me, também, que aqueles que de certo modo os representam assobiem para o lado como se nada se tivesse passado. Está neste caso o PCP. O Partido Comunista Português tem, pela sua base de apoio, uma importância sociológica mas também política, uma vez que não pode alcançar o poder (sendo assim um partido benévolo). No entanto, o partido vive autista perante a derrota política do comunismo no mundo, bem como perante as atrocidades cometidas pelos regimes comunistas, actuando internamente como se fosse um pequeno PCUS (o finado Partido Comunista da União Soviética), expulsando os membros que colocam em causa a orientação do comité central. Mas o que espanta é que os dirigentes do PCP não façam um mea culpa pelos horrores do comunismo. Podem dizer que não têm nada que ver com isso, mas têm, pelo menos pela ligação estreita que existiu entre o PCP e o PCUS e outros partidos e organizações comunistas (ainda hoje as FARC estão presentes na festa do Avante).
No fundo, é como se todos aqueles milhões de mortos fossem justificáveis por uma razão maior (o materialismo científico). Mas nem essa razão maior existe, nem – se acaso existisse – justificaria tantas e tantas vítimas. Quanto ao capitalismo, esse só ganhou com a barbárie marxista.

sexta-feira, julho 25, 2008

LEONORA CARRINGTON





Leonora Carrington nasceu na Inglaterra, em 1917, tendo passado parte da sua vida no México e nos Estados Unidos.Pintora surrealista e escritora, dela foi traduzido para português o relato de uma experiência de loucura, Em Baixo (Black Sun Editores, 1990).

segunda-feira, julho 21, 2008

BIG BROTHER, 7


Virtualmente, já é possível a uma qualquer polícia reconstituir tudo o que fiz ao longo do dia. Mesmo sem ter de recorrer a escutas nem colocar um agente a seguir-me. Apenas cruzando informação presente em computadores a que pode ter acesso quando desejar, bastando cumprir um mínimo de exigências legais.
(...)
A partir do próximo ano, o nosso querido Estado, se a lei passar o teste de onstitucionalidade, pode passar a saber por onde anda o meu carro, a que volecidade se deslocou entre dois "sensores", onde o deixei estacionado, quem nele viajava (basta cruzar as informações do chip da matrícula com as dos telemóveis) e uma quantidade de outras coisas que fazem parte da intimidade de cada cidadão.
Faltará passar do chip na matrícula para o chip subcutâneo, altura em que o Estado me poderá prestar, com a maior eficiência, uma enorme quantidade de serviços com enormes vantagens económicas. No chip subcutâneo pode estar tudo: os meus dados de identidade, a minha história civil, todos os registos médicos, os meus dados fiscais, porventura uma boa parte do que estiver em todas as outras bases de dados. E nem será muito difícil desenvolver a geringonça, pois já há chips para cães.

José Manuel Fernandes, Um dia vamos estar todos "chipados". Como cães ou ovelhas, editorial do Público de 21-07-08

sábado, julho 19, 2008

MANUEL FERNANDO GONÇALVES


(foto respigada daqui)

Quantos shekel de prata
custa o campo de efron
e a protecção de javé?
Que memórias guardarei aqui
de nemrod e da minha babilónia
se já corri todo o oriente
e sobre as costas me pesou
o cutelo e o sangue me ferveu
junto ao carvalho de moré?
Morei em gerara meu amo
e fui amigo dos reis
e mais forte que os reis
lá cavei sete poços
e ver não vi mais
do que os poetas diziam:
difícil é ler os poetas
o maior deles
dentre alguns que julgo
conhecer não escreve
outro dos mais astutos
é escravo de rebeca
e mal se atreve a falar
Meus filhos partiram
e a melhor das mulheres
minha amiga inquieta
indicou-lhes a porta dos inimigos
Bem posso sentir o vento da tarde
e o calor dos desertos sei
que as mulheres se arranjam
e tremem à hora certa
que das fontes tiram àgua
Mas onde repousas
senhor ansioso e belo
dos retratos?

Manuel Fernando Gonçalves, Isaac, IN-CM/Gota de Água, col. Plural, 1985, p. 16.

terça-feira, julho 15, 2008

FÁTIMA MALDONADO DIXIT


Por motivo da saída do seu último livro, Vida Extenuada (& etc), Fátima Maldonado foi entrevistada pelo jornalista da Lusa Raul M. Marques. A entrevista foi publicada na edição de ontem d' O Primeiro de Janeiro. Pela sua acutilância e lucidez reproduzo aqui algumas das afirmações da autora de Cadeias de Transmissão. O texto da entrevista, na integra, pode ser consultado aqui.
[A poesia]pode ser também um agente do caos, testemunha da derrocada ou da incapacidade de viver de rastos. E seguindo por caminhos escusos presenciar o lixo que sobeja, o gelo que derrete, a desorientação do urso, a floresta sangrada, o mal alastrando na rota milenar.

Por que não há-de a poesia infiltrar-se na barbárie e conseguir submetê-la à regra imposta pelo poeta?
Mas acompanhar o nosso tempo não significa beber até às fezes o cálice da televisão, deixar-se embalar pelo Estado ou vestir-se de arlequim. Contrariando a tendência a que alguns, ainda incrédulos, assistem, o escritor deve incomodar não só a língua mas os poderes. Nem ao arrepio do tempo deve temer a alcunha de moralista porque o acto criador que não se confunde com o acto económico protege o sentido da vida, o equilíbrio da terra, o pouco que ainda resta de beleza.

É preciso recusar os compromissos e sermos Heréticos.

[Sobre António Nobre:]Fascina-me a paixão masoquista que concebeu por este paisinho. Nela se banha a toda a hora como se de líquido amniótico se tratasse ou de leite de burra que as nobres romanas adoravam porque lhes amaciava a pele.

Poetas, hoje, como chapéus no filme conhecido, há muitos.
Cada época tem a poesia que merece e a nossa tem bonzos que se farta e inspiração de alto coturno.

A crítica literária é, tanto quanto me apercebo, um produto em extinção.
O Joaquim Magalhães praticou-a a sério, como numa faena o diestro, com tudo o que isso implica de risco, de falhanço e desastre. Agora ainda subsiste a contra-corrente pela mão de António Guerreiro, de Manuel de Freitas, de uma ou outra pessoa da geração mais nova.
[Q]uem manda nas redacções não tolera que se diga a verdade sobre uma obra má vinda de um bonzo poderoso. Daí a confusão gerada sobre boa e má literatura, daí os equívocos, os temores e a degradação a que temos de assistir”.

sábado, julho 05, 2008

NUNO JÚDICE


DEMOCRACIA

Fui dar com a democracia embalsamada, como
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
unguentos e colónias, queimavam-lhe incensoe
haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
cheirava a cemitério, como se esperasse
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
que lhe dessem família e descendência. Esperei
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
a última verdade do mundo? «Que queres?»,
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»

Nuno Júdice, A Matéria do Poemas, Dom Quixote, 2008, p. 45

segunda-feira, junho 23, 2008

OSKAR KOKOSCHKA / ANA TERESA PEREIRA



Os quadros que Oskar Kokoschka pintou em Polperro. Um mundo em movimento, nuvens, mar, rochas, casas, barcos de pesca e uma ou duas gaivotas em primeiro plano. O meu pai tinha um álbum de Kokoschka e eu já conhecia os quadros muito antes de os descobrir nas galerias.

Os invernos eram longos e eu passava-os a folhear álbuns de pintura, a ler livros policiais, a desenhar, a ouvir os pescadores contarem histórias de piratas. E a pensar em Lizzie.

(imagem de Oskar Kokoschka, Polperro II; texto de Ana Teresa Pereira, do seu último livro, O Fim de Lizzie, ed. Biblioteca de Editores Independentes, nº 34, 2008, p. 133)