Em 1704 o orientalista francês Antoine
Galland publica pela primeira vez no ocidente uma tradução d’ As Mil e Uma Noites, dando a conhecer
aos leitores da época e futuros um vasto conjunto de contos (282) de origem
persa, indiana e árabe. Desde o século IX que era conhecida, em árabe, a
recolha de histórias provenientes da folclore de várias culturas do oriente.
Antoine Galland na sua versão terá censurado alguns contos, e acrescentado mais
alguns, sem grande fidelidade ao original. De certa forma, até hoje, As Mil e Uma
Noites são um livro palimpsesto.
Mas, apesar das múltiplas versões d’ As Mil e
uma Noites, importa a sua história que é uma grande homenagem à literatura, à
arte de contar histórias (ou estórias). Vejamos: no início d' As Mil e Uma Noites,
temos o rei Xarir, da Pérsia, que descobre que a sua mulher o engana com um
escravo. Inicia-se uma furiosa vingança de Xarir, que decapita os amantes. Mas
o rei persa vai muito mais longe na sua vingança: todas as noites casava com
uma virgem, que depois da noite de núpcias, entregava ao seu vizir para ser
degolada. Xerazade, precisamente a filha do vizir, engendra uma artimanha para
acabar com esta carnificina – propõem-se entregar-se ao rei Xarir. E assim
acontece. Mas Xerazade, que tinha pedido que fosse acompanhada da sua irmã Dinarzade,
quando acorda da noite de núpcias é interpelada pela sua irmã mais nova para
que conte uma história. Eis que o rei se interessa pela história que Xerazade
conta a ponto de não mandar degolar Xerazade, interrompendo o seu atroz morticínio,
porque quer saber o final da história que, entretanto, Xerazade interrompera. A
interrupção é a chave do sucesso da artimanha de Xerazade, o método que lhe
salva a vida.
É pois pela arte de contar histórias que
Xerazade se salva e termina com a vingança do rei Xarir. Eis a suprema
homenagem à literatura – neste caso à literatura oral e por extensão a outras
formas de ficção, pois como escreveu o poeta T. S. Eliot “Humankind cannot bear
very much reality.”
As Mil e Uma Noites e em particular a
personagem Xerazade mostram-nos o poder da literatura, um poder político capaz
de suspender as atrocidades humanas. Xerazade é uma dessas personagens
femininas para quem, como acontece com Antígona, a injustiça e o despotismo são
intoleráveis. Mas As Mil e Uma Noites nada têm da trágico; pelo contrário, o
que neste encadeamento de narrativas abunda é o maravilhoso, o erotismo, uma
compulsão por contar e ouvir histórias que suspende e anula os actos despóticos,
o mal. Estas “noites” são solares. As Mil e Uma Noites convocam a literatura, o
contar histórias, para uma ética/estética do imaginário, da envolvência com a
ficção que interrompe a crueza e crueldade do real. Talvez por isso tenhamos
necessidade de sonhar, de organizar o que vivemos durante o dia numa narrativa
fantástica, surrealizante, desconexa, mas de qualquer forma a narrativa que o
nosso inconsciente nos conta, essa estranha Xerazade que nos habita.
***
Em Portugal existem várias edições d’ As Mil
e Uma Noites. Editoras como a Civilização, a Estampa, as Publicações
Europa-América, Amigos do Livro, Bertrand, Minerva (com tradução do poeta
Cabral do Nascimento), Círculo de Leitores, a Parceria António Maria Pereira
(que deve ter sido uma das primeiras, senão a primeira editora a publicar, em
1909, a obra organiza por Antoine Galland) mostram o interesse por esta obra
que é uma das maiores da literatura universal. Mas dentre todas estas edições,
uma se destaca: a que foi publicada pelos Estúdios Cor, em seis volumes, entre
1958 e 1962. Essa edição, hoje uma raridade vendida a preços bastante altos,
conta com traduções de alguns dos nossos melhores escritores do século passado:
Aquilino Ribeiro, Carlos de Oliveira, David Mourão-Ferreira, Domingos Monteiro,
Irene Lisboa, João Gaspar Simões, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis,
Jorge de Sena, José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues. A acrescentar a estes
escritores/tradutores há todo um grupo dos melhores ilustradores da época.
O jornal Expresso resolveu editar em sete
volumes O Livro das Mil e Uma Noites, distribuído gratuitamente (isto é, sem
que o leitor pague mais que o preço do semanário). Esta edição, no entanto, e
apesar de alguma qualidade gráfica, reveste-se de um desrespeito para com os
leitores do jornal. Em primeiro lugar não estamos perante a obra integral, mas
uma selecção ou antologia (As Mil e Uma Noites na versão de Antoine Galland têm
cerca 1600 páginas; cada volume da edição do Expresso tem 110 páginas o que
equivale na totalidade dos sete volumes a 770 páginas, ou seja a menos de
metade da obra integral). A não edição da obra integral de Antoine Galland (já
não me refiro a outros organizadores posteriores como Richard Burton) seria
completamente natural e aceitável se fosse indicado que se tratava de uma
selecção ou antologia. Mas não, em nenhum lugar, nem mesmo num prefácio
introdutório à obra em geral isso é dito. Portanto, o Expresso mete no saco
gato por lebre. O leitor que não procure informação sobre a obra, e ler os sete
volumes, julga que leu na íntegra As Mil e Uma Noites quando leu apenas uma
selecção de contos d’ As Mil e Uma Noites. Numa altura em que o jornalismo está
em crise, este comportamento não abona nada a favor do Expresso e grupo Impresa
– porque se o Expresso engana os leitores quanto a uma obra literária que
distribui, também enganará os seus leitores nas peças jornalísticas que
apresenta. Para além do já referido, esta selecção d’ As Mil e Uma Noites, tem,
estranhamente, como assinatura de tradução Alêtheia Editores. Os volumes são
editados em parceria com esta editora da ex-militante comunista Zita Seabra,
mas mesmo quando se trata de uma tradução colectiva os nomes dos tradutores devem
aparecer. É algo estranho e desprestigiante da edição, que a formação da
editora como alto cargo do PCP não serve de desculpa. Antes, esta assinatura
colectiva parece configurar uma lógica neoliberal a que Zita Seabra aderiu nas
últimas décadas.