DANAÇÃO
O decorrer do tempo ofende a beleza.
Ao vê-la resplandecer miraculosamente escurece-a de luto.
(Unicamente lhe recorda o perfume.)
*
COSMIC PULSES
[Karlheiz Stockhausen, por Massimo Simonini]
Poisado cone num sopro aspergindo
Espirais que derramam
Luminosos teclados turbulentos,
Eixos suspensos num horizonte de obscuridade profunda.
Erguem em roldanas o Cosmos.
José Emílio-Nelson, Pesa um boi na minha língua, Porto, Afrontamento, 2013, pp. 13 e 21
terça-feira, junho 16, 2015
terça-feira, maio 26, 2015
Frederico Pedreira
CIRCO
Os salpicos das ondas voam entre o nevoeiro. Passam horas em que só vemos as nossas sombras a agigantarem-se no chão. Ao longe, monta-se um espectáculo de circo e uma criança passa por nós correndo nessa direcção, visionária, urdindo uma velha canção entre monólogos abafados. Acena muito a uns cavalos brancos que estão presos a um poste e que se sacodem em toda a sua magreza pela excitação. Tento agarrar-lhe o braço, pedir-lhe desculpa por não poder ir com ela. Que não me é possível, que entre a minha e a vida dela aconteceu um número de circo que terminou abruptamente, com estatelamento no chão, sem magia ou aplausos, e um público a retirar-se em profundo constrangimento.
A criança corre através de mim como se me expulsasse do tempo, corre cada vez mais veloz contra a parede do vento, empurrando a sua primeira contrariedade. O rosto é jovem mas os olhos parecem doentes e lembram-me os meus, injectados ainda com a possibilidade de diferentes rumos.
É a única vez que paramos de andar, petrificados, os pés afundados na areia húmida. Sintonizamos a respiração da criança, tentando obter uma escuta transversal do mundo.
Frederico Pedreira, Breve Passagem pelo Fogo, Lisboa, Artefacto, 2011, p. 28
Frederico Pedreira nasceu em 1983. É autor dos livros de poesia Breve Passagem pelo Fogo, O Artista Está Sozinho, Doze Passos Atrás e Presa Comum (Relógio d' Água, 2015). Publicou também o livro de contos Um Bárbaro em Casa (Língua Morta, 2014)
terça-feira, maio 12, 2015
MESMO A TEMPO
Última página do Diário de Lisboa (digitalizado pela Fundação Mário Soares e acessível aqui) de 1 de Abril de 1975. Leia-se a notícia "Sartre informa-se da luta na TAP"
sábado, maio 09, 2015
JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
TRAVESSA DE SÃO FILIPE
Cheguei cedo, na primavera dos rapazes.
O cão do norte veio morrer às portas da cidade,
já do amigo compadecido.
Havia dálias e cravos e gladíolos e as tias atrás
das cortinas.
As cortinas tinham medo nas suas rendas.
Eu tinha medo no coração.
O tédio parava na imobilidade dos guindastes.
Havia nas sombras de um beco uma luz muito triste.
As trepadeiras enredavam-se nos muros e subiam.
No terraço, a minha vida sentava-se longamente.
Ao longe, a palmeira recortava o seu perfil e
parecia uma esfinge,
uma faca apontada ao céu.
Retive o gosto das tâmaras e do fruto do paraíso.
Amei em frente uma cabeleira de trigo errante e
na sua dourada exaltação
os metais refulgiam.
Era uma cabeleira ondulando. Eram vales ondulando
na pequena alegria.
Crescia-se com os gerânios, ao abandono.
As famílias afastavam-se, inadvertidamente.
Eu não dizia nada.
Sei que houve um adeus numa estação de lágrimas no
meio de lenços, no meio da cambraia húmida,
e nem uma palavra,
nem um rumor de pálpebras.
Os beijos queimavam. O sol queimava o convés onde
eles se perfilavam, entontecidos pelas hélices.
Percebi que as agulhas corriam pelos dedos e nos
dedos havia um dedal de prata.
Elas falavam devagar,
falavam alto para a solidão dos filhos, distraídas
da candura,
explodindo às vezes, mas como podia sair,
desprender-me, soltar as amarras do ventre?
Oh,
maternal, nocturna gestação de ser morosamente
aturdido, encostado às raízes.
Sonolenta inspiração dos dias raros.
E a mágoa sobrepõe-se à orquídea, à bela orquídea
encantada.
À magoada flor da mocidade.
Os sinos de São Filipe eram como uma dor, um
veneno doce nas horas de maio.
Depois ao crepúsculo,
elas recolhiam-se e já nada se ouvia para lá do
próprio coração.
Eu não dizia nada.
As manhãs repetem os sintomas da doença.
Mal respiro, e o pólen faz-me enlouquecer.
Um pássaro de papel cai junto à janela.
A avó sobressalta-se.
Agora chove nas abacates e nos araçás.
Chove por dentro, diluvianamente,
para sempre.
A ternura escava a sua morada subterrânea.
Oculto as minhas nascentes.
Dizem que hei-de ser homem mas o meu sonho é
uma obsessão de mastros e linhas de água.
Eu era um rapaz muito cedo na primavera.
José Agostinhos Baptista,Canções da Terra Distante (1994), Biografia (2000), Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 509-511.
Cheguei cedo, na primavera dos rapazes.
O cão do norte veio morrer às portas da cidade,
já do amigo compadecido.
Havia dálias e cravos e gladíolos e as tias atrás
das cortinas.
As cortinas tinham medo nas suas rendas.
Eu tinha medo no coração.
O tédio parava na imobilidade dos guindastes.
Havia nas sombras de um beco uma luz muito triste.
As trepadeiras enredavam-se nos muros e subiam.
No terraço, a minha vida sentava-se longamente.
Ao longe, a palmeira recortava o seu perfil e
parecia uma esfinge,
uma faca apontada ao céu.
Retive o gosto das tâmaras e do fruto do paraíso.
Amei em frente uma cabeleira de trigo errante e
na sua dourada exaltação
os metais refulgiam.
Era uma cabeleira ondulando. Eram vales ondulando
na pequena alegria.
Crescia-se com os gerânios, ao abandono.
As famílias afastavam-se, inadvertidamente.
Eu não dizia nada.
Sei que houve um adeus numa estação de lágrimas no
meio de lenços, no meio da cambraia húmida,
e nem uma palavra,
nem um rumor de pálpebras.
Os beijos queimavam. O sol queimava o convés onde
eles se perfilavam, entontecidos pelas hélices.
Percebi que as agulhas corriam pelos dedos e nos
dedos havia um dedal de prata.
Elas falavam devagar,
falavam alto para a solidão dos filhos, distraídas
da candura,
explodindo às vezes, mas como podia sair,
desprender-me, soltar as amarras do ventre?
Oh,
maternal, nocturna gestação de ser morosamente
aturdido, encostado às raízes.
Sonolenta inspiração dos dias raros.
E a mágoa sobrepõe-se à orquídea, à bela orquídea
encantada.
À magoada flor da mocidade.
Os sinos de São Filipe eram como uma dor, um
veneno doce nas horas de maio.
Depois ao crepúsculo,
elas recolhiam-se e já nada se ouvia para lá do
próprio coração.
Eu não dizia nada.
As manhãs repetem os sintomas da doença.
Mal respiro, e o pólen faz-me enlouquecer.
Um pássaro de papel cai junto à janela.
A avó sobressalta-se.
Agora chove nas abacates e nos araçás.
Chove por dentro, diluvianamente,
para sempre.
A ternura escava a sua morada subterrânea.
Oculto as minhas nascentes.
Dizem que hei-de ser homem mas o meu sonho é
uma obsessão de mastros e linhas de água.
Eu era um rapaz muito cedo na primavera.
José Agostinhos Baptista,Canções da Terra Distante (1994), Biografia (2000), Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 509-511.
sexta-feira, abril 24, 2015
REGRESSO À CENSURA PRÉVIA
Quando se
cumprem 41 anos sobre o 25 de Abril de 1974, que pôs fim a um regime ditatorial
de que uma das suas “armas” foi a censura prévia de jornais, rádio e televisão,
eis que o PSD, CDS e PS se preparam para reinstaurar essa censura numa lei
sobre a cobertura das próximas eleições legislativas. Para já é um projecto de
lei, mas mesmo que não venha a dar entrada para votação no parlamento fica a
intenção altamente censória, indigna de um país democrático. No projecto de lei
dos três partidos que nestas últimas décadas têm passado pelo governo, os meios
de comunicação social teriam que apresentarem à CNE (Comissão Nacional de
Eleições) e à ERC (Entidade Reguladora da Comunicação) um plano prévio de
cobertura das eleições legislativas. Para além disso, os debates entre partidos
não podiam incluir partidos que neste momento não estão representados na
Assembleia da República, como é o caso do Livre/Tempo de Avançar ou do partido
protagonizado por Marinho Pinto, o PDR. Por aqui se vê a intenção dos partidos
que prepararam o projecto de lei: cientes de que o eleitorado os tem penalizado
nas últimas eleições europeias e autárquicas, bem como nas sondagens, os três partidos
do “arco da governação” procuram uma forma de os cidadãos não terem acesso a
alternativas políticas. Este é uma atitude de uma ditadura e não de um país
democrático. Talvez não fosse de espantar que PSD e CDS apresentassem uma lei
deste teor, porque o que estes dois partidos têm feito nos últimos quatro anos
no governo tem pouco de democrático e de respeito pelas pessoas. Mas o PS
entrar neste esquema demonstra que depois da apresentação do estudo encomendado
a 12 economistas, em que nada de substancial muda na política económica se o PS
for governo, António Costa já está em estado de desgraça. Embora os portugueses
tenham sido enganados nas últimas legislativas, não podem ser tratados como
mentecaptos. Os partidos que nos têm governado têm de perceber que tiveram
demasiado tempo para mostrar que a III República é mais que uma partidocracia.
Se não o perceberam – e efectivamente parece que ainda não perceberam tal
evidência –, chegou a hora de uma mudança, de novos partidos aparecerem, de
novas formas de fazer política. Veja-se o exemplo espanhol onde partidos como o
Podemos ou o Cidadanos vão disputar a vitória nas próximas legislativas. Contra
isto os velhos partidos nada podem fazer, a não ser que queiram destruir por
completo as democracias.
domingo, abril 12, 2015
Giorgio Agamben: O pensamento é a coragem do desespero *
Nascido em Roma em 1942, Giorgio Agamben tem uma
trajetória peculiar. Nos anos de formação, o jovem estudante de Direito
andava com artistas e intelectuais agrupados em torno da autora Elsa
Morante. Uma Dolce Vita? Um momento de amizades intensas, em todo caso.
Giorgio Agamben apareceu como o apóstolo Filipe em O Evangelho segundo
são Mateus (1964) de Pier Paolo Pasolini. Pouco a pouco, o jurista
virou-se para a filosofia, após um seminário de Heidegger em
Thor-en-Provence. Então ele lançou-se sobre a edição das obras de Walter
Benjamin, um pensador que nunca esteve longe de seu pensamento, bem
como Guy Debord e Michel Foucault. Giorgio Agamben tornou-se, assim,
familiarizado com um sentido messiânico da História, uma crítica à
sociedade do espetáculo, e uma resistência ao biopoder, o controle que
as autoridades exercem sobre a vida – mais propriamente dos corpos dos
cidadãos. Poético, tal como político, seu pensamento escava as camadas
em busca de evidências arqueológicas, fazendo o seu caminho de volta
através do turbilhão do tempo, até as origens das palavras. Autor de uma
série de obras reunidas sob o título latino Homo sacer, Agamben
percorre a terra da lei, da religião e da literatura, mas agora se
recusa a ir… para os Estados Unidos, para evitar ser submetido a seus
controles biométricos. Em oposição a essa redução de um homem aos seus
dados biológicos, Agamben propõe uma exploração do campo de
possibilidades. Nesta entrevista a Juliette Cerf em Trastevere, o
filósofo italiano contesta quem o vê como pessimista, cita Marx e
sustenta: “condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem
de esperança”. Confira:
Berlusconi caiu, como vários outros líderes europeus.
Tendo escrito sobre a soberania, quais os pensamentos que esta situação
sem precedentes provocar em você?
O poder público está perdendo legitimidade. A
suspeita mútua se desenvolveu entre as autoridades e os cidadãos. Essa
desconfiança crescente tem derrubado alguns regimes. As democracias são
muito preocupadas: de que outra forma se poderia explicar que elas têm
uma política de segurança duas vezes pior do que o fascismo italiano
teve? Aos olhos do poder, cada cidadão é um terrorista em potencial.
Nunca se esqueça de que o dispositivo biométrico, que em breve será
inserido na carteira de identidade de cada cidadão, em primeiro lugar,
foi criado para controlar os criminosos reincidentes.
Essa crise está ligada ao fato de que a economia tem roubado um caminho na política?
Para usar o vocabulário da medicina antiga, a crise
marca o momento decisivo da enfermidade. Mas hoje, a crise não é mais
temporária: é a própria condução do capitalismo, seu motor interno. A
crise está continuamente em curso, uma vez que, assim como outros
mecanismos de exceção, permite que as autoridades imponham medidas que
nunca seriam capazes de fazer funcionar em um período normal. A crise
corresponde perfeitamente – por mais engraçado que possa parecer – ao
que as pessoas na União Soviética costumavam chamar de “a revolução
permanente”.
A teologia desempenha um papel muito importante em sua reflexão de hoje. Por que isso?
Os projetos de pesquisa que eu tenho recentemente
realizado mostraram-me que as nossas sociedades modernas, que afirmam
ser seculares, são, pelo contrário, regidas por conceitos teológicos
secularizados, que agem de forma muito mais poderosa, uma vez que não
estamos conscientes de sua existência. Nós nunca vamos entender o que
está acontecendo hoje, se não entendermos que o capitalismo é, na
realidade, uma religião. E, como disse Walter Benjamin, é a mais feroz
de todas as religiões, porque não permite a expiação… Tome a palavra
“fé”, geralmente reservado à esfera religiosa. O termo grego
correspondente a este nos Evangelhos é pistis. Um historiador da
religião, tentando entender o significado desta palavra, foi dar um
passeio em Atenas um dia quando de repente ele viu uma placa com as
palavras “Trapeza tes pisteos”. Ele foi até a placa, e percebeu que esta
era de um banco: Trapeza tes pisteos significa: “banco de crédito”.
Isto foi esclarecedor o suficiente.
O que essa história nos diz?
Pistis, fé, é o crédito que temos com Deus e que a
palavra de Deus tem conosco. E há uma grande esfera em nossa sociedade
que gira inteiramente em torno do crédito. Esta esfera é o dinheiro, e o
banco é o seu templo. Como você sabe, o dinheiro nada mais é que um
crédito: em notas em dólares e libras (mas não sobre o euro, e que
deveriam ter levantado as sobrancelhas…), você ainda pode ler que o
banco central vai pagar ao portador o equivalente a este crédito. A
crise foi desencadeada por uma série de operações com créditos que foram
dezenas de vezes re-vendidos antes que pudessem ser realizados. Na
gestão de crédito, o Banco – que tomou o lugar da Igreja e dos seus
sacerdotes – manipula-se a fé e a confiança do homem. Se a política está
hoje em retirada, é porque o poder financeiro, substituindo a religião,
raptou toda a fé e toda a esperança. É por isso que eu estou realizando
uma pesquisa sobre a religião e a lei: a arqueologia parece-me ser a
melhor maneira de acessar o presente. Os europeus não podem acessar o
seu presente sem julgarem o seu passado.
O que é este método arqueológico?
É uma pesquisa sobre a archè, que em grego significa
“início” e “mandamento”. Em nossa tradição, o início é tanto o que dá
origem a algo como também é o que comanda sua história. Mas essa origem
não pode ser datada ou cronologicamente situada: é uma força que
continua a agir no presente, assim como a infância que, de acordo com a
psicanálise, determina a atividade mental do adulto, ou como a forma com
que o big bang, de acordo com os astrofísicos, deu origem ao Universo e
continua em expansão até hoje. O exemplo que tipifica esse método seria
a transformação do animal para o humano (antropogênese), ou seja, um
evento que se imagina, necessariamente, deve ter ocorrido, mas não
terminou de uma vez por todas: o homem é sempre tornar-se humano, e,
portanto, também continua a ser inumano, animal. A filosofia não é uma
disciplina acadêmica, mas uma forma de medir-se em direção a este
evento, que nunca deixa de ter lugar e que determina a humanidade e a
desumanidade da humanidade: perguntas muito importantes, na minha
opinião.
Essa visão de tornar-se humano, em suas obras, não é bastante pessimista?
Estou muito feliz que você me fez essa pergunta, já
que muitas vezes eu encontro com pessoas que me chamam de pessimista. Em
primeiro lugar, em um nível pessoal, isto não é verdade em todos os
casos. Em segundo lugar, os conceitos de pessimismo e de otimismo não
têm nada a ver com o pensamento. Debord citou muitas vezes uma carta de
Marx, dizendo que “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo
me enchem de esperança”. Qualquer pensamento radical sempre adota a
posição mais extrema de desespero. Simone Weil disse: “Eu não gosto
daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias”.
Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem do desespero. E isso
não está na altura do otimismo?
De acordo com você, ser contemporâneo significa
perceber a escuridão de sua época e não a sua luz. Como devemos entender
essa ideia?
Ser contemporâneo é responder ao apelo que a
escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que
nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade
que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, em
meio à escuridão, esta luz que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o
que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para
vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um
turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no
presente. E somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente
é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.
Quem é o supremo contemporâneo – o poeta? Ou o filósofo?
Minha tendência é não opor a poesia à filosofia, no
sentido de que essas duas experiências tem lugar dentro da linguagem. A
casa de verdade é a linguagem, e eu desconfiaria de qualquer filósofo
que iria deixá-la para outros – filólogos ou poetas – cuidarem desta
casa. Devemos cuidar da linguagem, e eu acredito que um dos problemas
essenciais com os meios de comunicação é que eles não mostram tanta
preocupação. O jornalista também é responsável pela linguagem, e será
por ela julgado.
Como é o seu mais recente trabalho sobre a liturgia nos dá uma chave para o presente?
Analisar liturgia é colocar o dedo sobre uma imensa
mudança em nossa maneira de representar existência. No mundo antigo, a
existência estava ali – algo presente. Na liturgia cristã, o homem é o
que ele deve ser e deve ser o que ele é. Hoje, não temos outra
representação da realidade do que a operacional, o efetivo. Nós já não
concebemos uma existência sem sentido. O que não é eficaz – viável,
governável – não é real. A próxima tarefa da filosofia é pensar em uma
política e uma ética que são liberados dos conceitos do dever e da
eficácia.
Pensando na inoperosidade, por exemplo?
A insistência no trabalho e na produção é uma
maldição. A esquerda foi para o caminho errado quando adotou estas
categorias, que estão no centro do capitalismo. Mas devemos especificar
que inoperosidade, da forma como a concebo, não é nem inércia, nem uma
marcha lenta. Precisamos nos libertar do trabalho, em um sentido ativo –
eu gosto muito da palavra em francês désoeuvrer. Esta é uma atividade
que faz todas as tarefas sociais da economia, do direito e da religião
inoperosas, libertando-os, assim, para outros usos possíveis.
Precisamente por isso é apropriado para a humanidade: escrever um poema
que escapa a função comunicativa da linguagem; ou falar ou dar um beijo,
alterando, assim, a função da boca, que serve em primeiro lugar para
comer. Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles perguntou a si mesmo se a
humanidade tem uma tarefa. O trabalho do flautista é tocar a flauta, e o
trabalho do sapateiro é fazer sapatos, mas há um trabalho do homem como
tal? Ele então desenvolveu a sua hipótese segundo a qual o homem,
talvez, nasce sem qualquer tarefa, mas ele logo abandona este estado. No
entanto, esta hipótese nos leva ao cerne do que é ser humano. O ser
humano é o animal que não tem trabalho: ele não tem tarefa biológica,
não tem uma função claramente prescrita. Só um ser poderoso tem a
capacidade de não ser poderoso. O homem pode fazer tudo, mas não tem que
fazer nada.
Você estudou Direito, mas toda a sua filosofia procura, de certa forma, se libertar da lei.
Saindo da escola secundária, eu tinha apenas um
desejo – escrever. Mas o que isso significa? Para escrever – o que? Este
foi, creio eu, um desejo de possibilidade na minha vida. O que eu
queria não era a “escrever”, mas “ser capaz de” escrever. É um gesto
inconscientemente filosófico: a busca de possibilidades em sua vida, o
que é uma boa definição de filosofia. A lei é, aparentemente, o
contrário: é uma questão de necessidade, não de possibilidade. Mas
quando eu estudei direito, era porque eu não poderia, é claro, ter sido
capaz de acessar o possível sem passar no teste do necessário. Em
qualquer caso, os meus estudos de direito tornaram-se muito úteis para
mim. Poder desencadeou conceitos políticos em favor dos conceitos
jurídicos. A esfera jurídica não pára de expandir-se: eles fazem leis
sobre tudo, em domínios onde isto teria sido inconcebível. Esta
proliferação de lei é perigosa: nas nossas sociedades democráticas, não
há nada que não é regulamentado. Juristas árabes me ensinaram algo que
eu gostei muito. Eles representam a lei como uma espécie de árvore, em
que em um extremo está o que é proibido e, no outro, o que é
obrigatório. Para eles, o papel do jurista situa-se entre estes dois
extremos: ou seja, abordando tudo o que se pode fazer sem sanção
jurídica. Esta zona de liberdade nunca para de estreitar-se, enquanto
que deveria ser expandida.
Em 1997, no primeiro volume de sua série Homo Sacer,
você disse que o campo de concentração é a norma do nosso espaço
político. De Atenas a Auschwitz…
Tenho sido muito criticado por essa idéia, que o
campo tem substituído a cidade como o nomos (norma, lei) da modernidade.
Eu não estava olhando para o campo como um fato histórico, mas como a
matriz oculta da nossa sociedade. O que é um campo? É uma parte do
território que existe fora da ordem jurídico-política, a materialização
do estado de exceção. Hoje, o estado de exceção e a despolitização
penetraram tudo. É o espaço sob vigilância CCTV [circuito interno de
monitoramento] nas cidades de hoje, públicas ou privadas, interiores ou
exteriores? Novos espaços estão sendo criados: o modelo israelense de
território ocupado, composto por todas essas barreiras, excluindo os
palestinos, foi transposto para Dubai para criar ilhas hiper-seguras de
turismo…
Em que fase está o Homo sacer?
Quando comecei esta série, o que me interessou foi a
relação entre a lei e a vida. Em nossa cultura, a noção de vida nunca é
definida, mas é incessantemente dividida: há a vida como ela é
caracterizada politicamente (bios), a vida natural comum a todos os
animais (zoé), a vida vegetativa, a vida social, etc. Talvez pudéssemos
chegar a uma forma de vida que resiste a tais divisões? Atualmente,
estou escrevendo o último volume de Homo sacer. Giacometti disse uma
coisa que eu realmente gostei: você nunca termina uma pintura, você a
abandona. Suas pinturas não estão acabadas, seu potencial nunca se
esgota. Gostaria que o mesmo fosse verdade sobre Homo sacer, para ser
abandonado, mas nunca terminado. Além disso, eu acho que a filosofia não
deve consistir-se demais em afirmações teóricas – a teoria deve, por
vezes, mostrar a sua insuficiência.
É esta a razão pela qual em seus ensaios teóricos você tem sempre escrito textos mais curtos, mais poéticos?
Sim, exatamente isso. Estes dois registros de escrita
não ficam em contradição, e espero que muitas vezes até mesmo se
cruzem. Foi a partir de um grande livro, O Reino e a Glória, uma
genealogia do governo e da economia, que eu fui fortemente atingido por
essa noção de inoperosidade, o que eu tentei desenvolver de forma mais
concreta em outros textos. Esses caminhos cruzados são todos o prazer de
escrever e de pensar.
* Publicado originalmente em francês no Télérama, e
em inglês no Blog da Verso, em 17 de junho de 2014; tradução de Pedro
Lucas Dulci, para o Outras Palavras.
[versão respigada de aqui ]
terça-feira, março 24, 2015
HERBERTO HELDER (1930-2015)
(a poesia é feita contra todos)
É aborrecido ter que reclamar-se de todas as afirmações de princípio muito óbvias.
Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade:
agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer,
exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o
mundo. Os poemas começam a fundar os seus entendimentos com a poesia. É
também o momento em que desaparecemos, e seria grato ver como o nosso
rosto pode promover o susto dos corações afectos e afeitos à
cordialidade.
Force-se alguém a afastar as palavras, essa folhagem de ouro
implantada nos olhos e nos ouvidos, para descobrir o rosto zoológico que
nem uma câmara de filmar tornaria capturável e doméstico. A
impertinência põe-se a fornecer lições de arquitectura. Há muita gente
para habitar as casas. Mas só gostamos de oficinas explosivas.
Temos tudo o mais contra todos os trabalhadores. O trabalho
de uns e o capital de outros não bastam para alugar-nos, embora
estejamos usualmente disponíveis. Eles fazem inculcas, em tempos de
sedução, para saber do nosso endereço. Mas desaparecemos, por
irreversível disponibilidade. Somos inúteis até onde poderia estar por
acaso a nossa morada.
Deus tem uma cabeça demasiado pesada, ocupa totalmente o
alforje do pão. Crê-se mesmo ser abusivo um toque no ombro com vista a
um momentâneo desvio da carga. Deus dorme, dorme de um sono pesadíssimo,
e por isso pesa tanto aquela cabeça. Às vezes pretendemos acordá-la
para que se faça mais leve. Tudo morreu em nós menos exactamente a morte
das coisas divinas. É por dentro de poemas que transportamos esse
estranho alimento de todas as mortes. A celebração funesta torna-se uma
política da ignorância pessoal que nos compelimos assumir até ao fim,
para ficar com a ciência possível que não conduz à cidadania. Nota-se
logo a nossa ausência pedagógica, e quando os outros chegam para o
ensino, já não estamos lá e, interrogada a população, talvez se fique a
saber que nunca estivemos.
A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e
só. A glória seria ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A
grandeza afere-se pelas conveniências do mal. Aquilo que se diz da
beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o
lucro do nosso emprego e um pequeno contentamento para quem está com
alguma pressa em agravar.
E leia-se como se quiser, pois ficará sempre errado.
Herberto Helder, Photomaton & Vox, 4ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pp. 152-153
domingo, março 15, 2015
A CLEPTOCRATA E OS SEUS AMIGOS PORTUGUESES
Isabel dos Santos, filha do cleptocrata
(traduzido para português vernáculo, ladrão) José Eduardo dos Santos,
presidente de Angola, é a mulher com a maior fortuna em África – 2 mil milhões
de dólares, diz a revista Forbes que sabe do que fala. Com 41 anos onde foi
arranjar tamanha fortuna? Recorrendo ao dinheiro que o papá rouba ao povo
angolano. Assim quando a bela Isabel vem a Portugal não é para comprar casacos
de vison ou jóias caras (também pode ser mas isso são amendoins). O que Isabel
dos Santos gosta de comprar são participações em grandes empresas. Em 2011
comprou uma participação na Sonae, talvez salvando assim o grupo que introduziu
os infernais hipermercados em Portugal da falência. As parcerias com a Sonae
continuaram e mais recentemente Isabel dos Santos e o grupo dos Azevedos
avançaram para a criação da Nos, uma “upgrade” da Optimus. O dinheiro subtraído
ao povo angolano, que apesar da prosperidade do fim da guerra civil e do
petróleo continua a viver na miséria, fica bem nos bolsos de Isabel como
outrora ficaram nos bolsos da outra Isabel, as rosas. Mas esta Isabel não quer
saber do pão que tira ao povo angolano. E muito menos os seus amigos
portugueses, a começar por Belmiro de Azevedo (que esta semana se retirou da
liderança da Sonae) e seu filho Paulo. Afinal o que seria do grupo português,
desculpem holandês, sem o dinheiro de Isabel, roubado pelo papá Dos Santos ao
Estado angolano? Isabel prospera e a Sonae também, mesmo em tempo de crise, e
com um governo de Robin dos Bosques invertido (rouba aos pobres para dar aos
muitos ricos). E lá vai Isabel, segura e formosa, criar o maior banco português
com a fusão do BPI (de que é accionista) com o BCP. Isabel não perde tempo. Um
dia destes vai a Forbes fazer as contas e estatísticas aos bilionários que
acompanha e conclui que a Isabelinha é a maior empresária portuguesa
(independentemente do género). Ou já é mesmo? Manso povo angolano que tais
coisas permites. Bom povo português que arrastas o carrinho do hipermercado
continente, como arrastas a vida, e até vais votar outra vez no Coelho, que do
Sócrates até da cela de Évora tens inveja. E a Isabelinha tão queridinha na
capa de revista cor-de-rosa que até nem parece preta com o seu muito querido
enésimo amor. Que o primeiro é o “Money” do papá.
sábado, março 07, 2015
A VIDA COSTA DO PS
O PS tem um problema sério. Chama-se
António Costa. Costa era desde há anos o D. Sebastião do PS, o salvador de um
partido inseguro com a liderança de António José Seguro. Costa começou por
recusar a travessia no deserto num momento excepcional de crise para o país.
Não quis ser oposição nessa altura de extrema responsabilidade perante um
governo de liquidação nacional, o tal governo mais alemão do que o alemão e que
ainda nos governa. António Costa era por essa altura (finais de 2011, 2012,
2013) apontado como candidato do PS à presidência da República. Entre os paços
do concelho e Belém seria um percurso sem se molhar, sem se sujar na lama, um
percurso impecável – e que faria ainda mais sentido hoje, quando a menos de um
ano das Presidenciais o PS não sabe quem está disponível para concorrer a
Belém. Seria. Mas Costa, depois da vitória do PS nas autárquicas – uma vitória
com sabor a derrota – resolveu avançar, finalmente, contra Seguro: o líder
inseguro em quem ninguém acreditava. Fez bem, mas iniciou uma guerra dentro do
PS que não favoreceu o partido. Finalmente eleito, Costa apresentava-se como o
tal D. Sebastião regressado de Alquacer-Quibir. Mas a verdade é que D. Sebastião
nunca regressou de Alquacer-Quibir, e aqueles que se apresentaram como sendo o
rei de Portugal eram farsantes.
Ora, a actuação de António Costa
como líder do PS nestes últimos meses tem sido desastrosa. De Costa esperava-se
uma oposição forte ao pior governo de Portugal depois do 25 de Abril. Mas
António Costa tem mantido as funções de presidente da C. M. de Lisboa, e parece
ser mais edil da capital portuguesa que líder da oposição. De Seguro, havia
mais oposição, mesmo que desse a impressão que o António José por vezes parecia
um pudim flan. Mas havia oposição. E de António Costa que temos: a recente
gaffe (?) perante um grupo de empresários chineses, “Portugal está diferente
[entende-se melhor] que em 2011”. Agora
no grave assunto das dívidas de Passos Coelho à segurança social deixa a
desejar. O líder do PS devia pedir a demissão já do governo, o que aliás tinha
o mérito de antecipar as eleições legislativas para antes do verão, permitindo
ao PS (potencial vencedor) elaborar um Orçamento de Estado seu para 2016. O
problema de Costa é que ainda não tem programa, vai adiando as coisas. Ou seja,
sendo a política uma questão de atitude, de carisma, e precisando Portugal de
um líder forte, António Costa, nos meses que leva como secretário-geral do PS, não
tem revelado essa atitude. Olhem para a Grécia, vejam o Syriza; olhem para
Espanha, vejam o Podemos. Ai cresce uma nova forma de fazer política perante a
crise da social-democracia (entenda-se partidos filiados na Internacional
Socialista e não o PSD, que não é um partido social-democrata).
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