(a poesia é feita contra todos)
É aborrecido ter que reclamar-se de todas as afirmações de princípio muito óbvias.
Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade:
agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer,
exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o
mundo. Os poemas começam a fundar os seus entendimentos com a poesia. É
também o momento em que desaparecemos, e seria grato ver como o nosso
rosto pode promover o susto dos corações afectos e afeitos à
cordialidade.
Force-se alguém a afastar as palavras, essa folhagem de ouro
implantada nos olhos e nos ouvidos, para descobrir o rosto zoológico que
nem uma câmara de filmar tornaria capturável e doméstico. A
impertinência põe-se a fornecer lições de arquitectura. Há muita gente
para habitar as casas. Mas só gostamos de oficinas explosivas.
Temos tudo o mais contra todos os trabalhadores. O trabalho
de uns e o capital de outros não bastam para alugar-nos, embora
estejamos usualmente disponíveis. Eles fazem inculcas, em tempos de
sedução, para saber do nosso endereço. Mas desaparecemos, por
irreversível disponibilidade. Somos inúteis até onde poderia estar por
acaso a nossa morada.
Deus tem uma cabeça demasiado pesada, ocupa totalmente o
alforje do pão. Crê-se mesmo ser abusivo um toque no ombro com vista a
um momentâneo desvio da carga. Deus dorme, dorme de um sono pesadíssimo,
e por isso pesa tanto aquela cabeça. Às vezes pretendemos acordá-la
para que se faça mais leve. Tudo morreu em nós menos exactamente a morte
das coisas divinas. É por dentro de poemas que transportamos esse
estranho alimento de todas as mortes. A celebração funesta torna-se uma
política da ignorância pessoal que nos compelimos assumir até ao fim,
para ficar com a ciência possível que não conduz à cidadania. Nota-se
logo a nossa ausência pedagógica, e quando os outros chegam para o
ensino, já não estamos lá e, interrogada a população, talvez se fique a
saber que nunca estivemos.
A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e
só. A glória seria ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A
grandeza afere-se pelas conveniências do mal. Aquilo que se diz da
beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o
lucro do nosso emprego e um pequeno contentamento para quem está com
alguma pressa em agravar.
E leia-se como se quiser, pois ficará sempre errado.
Herberto Helder, Photomaton & Vox, 4ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pp. 152-153
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