terça-feira, outubro 13, 2015

TEMPOS HISTÓRICOS





Por estes dias vivemos tempos históricos na política portuguesa. A seguir à proclamação de vitória da coligação PaF – vitória minoritária – desenhou-se uma outra alternativa: a possibilidade de uma maioria de esquerda, que saiu das eleições de 4 de Outubro vir a formar governo. Ou seja, pela primeira vez em quarenta anos, poderemos vir a ter um governo constitucional formado pelo PS, Bloco de Esquerda e CDU. Durante os 40 anos de governos constitucionais (alguns de iniciativa presidencial durante o primeiro mandato de Ramalho Eanes) nunca o PCP ou outro partido à esquerda do PS participou num governo. Daí a famosa expressão “arco governamental”, que se cinge a três partidos: PS, PSD e CDS-PP. Agora, o aparente derrotado destas eleições, António Costa e o PS, tornou-se no centro político. É ele quem vai decidir se forma um governo com a coligação de direita, ou se forma um governo com os partidos à sua esquerda, PCP e BE, que nunca estiveram num governo constitucional. De repente, o vencido tornou-se no vencedor. Mas é também uma enorme responsabilidade para o PS, e algo que pode marcar o futuro do partido. António Costa quando presidente da Câmara de Lisboa já formou coligações com esses partidos. Durante a campanha eleitoral teve simpatia pelos partidos à sua esquerda. Agora, nestes dias quentes de Outono, tem tido sucessivas reuniões com todos os partidos com assento parlamentar. Essencialmente trata-se de uma oportunidade única: um governo de esquerda: PS, BE, CDU. Esse governo corresponderia a uma maioria parlamentar, que resulta da governação destrutiva e austeritária que a coligação PSD/CDS-PP levou a cabo durante mais de quatro anos criando pobreza, desemprego, emigração, privatizando quase tudo o que havia para privatizar, etc. Enfim, Portugal é hoje, depois da passagem da troika e das medidas para além da troika do governo Passos Coelho, um país irreconhecível, vivendo numa pobreza envergonhada. Em quatro anos regredimos nalguns sectores décadas. A vida dos portugueses, neste quadro político tornou-se em alguns casos desesperante. E tudo isto é consequência das políticas austeritárias neoliberais que pululam por alguns países da Europa. Fomos alvo de ataques por parte das agências de rating que forçaram o país a um “pedido de ajuda”. De tudo isto que os portugueses sofreram nos últimos anos, e ainda sofrem, é hora de dizer basta. Por isso os partidos da coligação não podem governar (e porque, naturalmente, estão em minoria no parlamento). Não podemos repetir tudo de novo, embrulhado em piedosas e salazarentas mentiras. Por isso o PS não pode, nem deve, formar um governo com a coligação de direita – é em nome do respeito que o partido de António Costa terá pelos portugueses e pelas suas vidas que não o deve fazer. Resta, portanto, ao PS interpretar o sentido do voto da maioria e formar um governo com Bloco e a CDU. Não será uma experiência fácil, há muitos pontos significativos que separam os socialistas dos bloquistas e dos comunistas, mas será a alternativa necessária, será – finalmente – um governo de esquerda. É claro que esse governo será julgado pelos portugueses e não terá a vida facilitada numa Europa ainda dominada pelo neoliberismo e por políticas que privilegiam os mercados financeiros e os bancos às pessoas. E para que esse governo quase utópico se realize terá também a nível interno um forte opositor: o presidente da República, que terá que tomar sais de frutos para dar posse a um governo de esquerda.

segunda-feira, outubro 05, 2015

O VOTO MASOQUISTA



Ontem quase dois milhões de pessoas foram votar na coligação PSD/CDS-PP. Votaram e deram a vitória, ainda que sem maioria absoluta, a quem governou Portugal nos últimos quatro anos. Ou seja, a quem fez um “aumento colossal de impostos”, a quem quis retirar o 13º mês e subsídio de férias, a quem cortou nas pensões, a quem aumentou o desemprego para níveis nunca atingidos em Portugal, a quem cortou nas prestações sociais, a quem foi o responsável pela saída do país de quase meio milhão de pessoas, a quem privatizou tudo o que havia a privatizar. Ontem dois milhões de pessoas legitimaram um governo que destruiu Portugal, que empobreceu como nunca se tinha visto nas últimas décadas os portugueses. A questão que se coloca é como é possível que tanta gente tenha entregue o seu poder de acção política nas urnas de voto a quem lhes fez tão mal. Como foi isto possível? É certo que não tinham grandes opções: António Costa pelo PS prometia pouco, mas ainda assim tinha um programa de governo que procurava repor algumas das coisas que antes da entrada em cena do governo Passos-Portas eram dados adquiridos na democracia portuguesa. E depois havia toda uma série de opções políticas, como o Bloco de Esquerda que beneficiou da má campanha do PS, ou o Livre que acabou por não eleger nenhum deputado. Então a questão persiste: porquê, porquê tanta gente a votar em quem lhes fez tão mal, a eles ou aos familiares ou amigos. Porquê votar em quem mentiu tanto e agora se escondeu de cartazes, entrevistas ou debates, continuando a mentir. Será que foi por medo? Será que engoliram a estória de que votar à esquerda seria desperdiçar os sacrifícios feitos durante quatro anos? Ocorre-me, como explicação, uma canção de Sérgio Godinho, de 1971, do álbum “Sobreviventes” e que seria retomada nos tempos pós revolucionários: “Que força é essa, amigo/que te põe de bem com outros/e de mal contigo”. O que se encontra aqui é a base antropológica, sociológica e psicológica do masoquismo. Nesse sentido esta canção não está nada datada, continua a ser tão actual como há 44 anos atrás. É a única explicação plausível que encontro para que dois milhões de portugueses tenham votado em quem lhes fez tão mal: masoquismo.
PS: O dito presidente da República, Cavaco,  faltou às comemorações do 5 de Outubro. Mais uma canalhice para quem é presidente da República. A acompanhá-lo na ausência esteve Passos Coelho. Será que querem uma monarquia?

sábado, outubro 03, 2015

Vítor Nogueira

VARANDA

Desta vez tinhas razão: frente fria prematura
no início de Setembro. Sentados na varanda, a beber
a altas horas. Estou cansado e não me importo.
Ouve-se o ruído intermitente de um motor
e uma voz transportada pelo vento, levantada
sem esforço em direcção ao céu. Temos de ir
e vir, conforme necessário, retomar a conversa
no ponto em que ficámos: se puderes, quer dizer,
se tiveres disponível esse tipo de orçamento,
despachavas o Cavaco para outro fuso horário?

Vítor Nogueira, Telhados de Vidro nº 18, Maio de 2013, ed. Averno, p. 91
Vítor Nogueira nasceu em 1966, em Vila Real onde dirige o teatro local. É autor de dezena e meia de livros, entre a poesia e o ensaio sobre questões ecológicas. Na poesia estreou-se em 1999 com A volta ao mundo em 50 poemas (Minerva). Entre os seus livros de poesia destaque-se O Senhor Gouveia (Averno, 2006), Comércio Tradicional (Averno, 2009) ou Quem diremos nós que viva?  (Averno, 2010). A sua poesia segue a linha do quotidiano e do real, tendo os seus livros um teor temático.

domingo, setembro 27, 2015

A GRANDE MENTIRA DE PASSOS COELHO



Nunca ninguém mentiu tanto na política portuguesa como Passos Coelho e o seu governo. Nunca ninguém, depois do 25 de Abril, prejudicou tanto os portugueses como o governo liderado por Passos Coelho. E, no entanto, as chamadas sondagens, sem valor científico que a RTP e TVI apresentam diariamente dão uma vantagem à coligação. Creio que estas sondagens se enquadram também na mentira, a grande mentira que tem sido este governo PSD/CDS. Veja-se que estas “sondagens” são feitas telefonando para casa de pessoas com telefone fixo. No entanto, outra sondagem apresentada pelo Expresso/SIC dava um empate técnico entre PaF e PS. E isso é grave. É grave que depois de quatro anos de destruição de um país ainda existam pessoas que vão na grande mentira mediática, no grande conto do vigário, de quem fez tudo para que Portugal fosse forçado a pedir um empréstimo à troika; de quem foi além das medidas da troika, de quem tem os cofres cheios num país empobrecido que vai sobrevivendo, como pode, à custa da baixa de alguns produtos. É grave, muito grave, se no próximo domingo, Passos & Portas (e Vítor Gaspar e Miguel Relvas – ainda se lembram deles?), os grandes mentirosos, os responsáveis pela saída do país de cerca de meio milhão de pessoas, os que queriam roubar aos trabalhadores para dar aos empresários (lembram-se da TSU?), os do “aumento colossal de impostos” (onde anda Vítor Gaspar?), os que governaram sempre contra a Constituição, os que privatizaram tudo o que havia para privatizar, os que cortaram pensões, 13º mês e subsídio de férias, os que se vergaram perante o poder despótico da Alemanha, enfim os que tudo fizeram para que os portugueses sofressem, ganhassem agora as eleições. É certo que uma vitória da coligação a ocorrer será por minoria e é a esquerda que terá maioria na Assembleia da República. Mas será que os portugueses são masoquistas? Gostam de ser roubados nos seus salários ou outros rendimentos por impostos colossais e injustos? Ou será que as mensagens passadas nas televisões pelos comentadores (comendadores) mor Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa, e por outros em vários jornais do Correio da Manhã ao Expresso conseguiram fazer passar a grande mentira? É certo que António Costa depois de tanto entusiasmo se revelou uma decepção. O líder socialista pouco promete alterar às políticas que PSD / CDS impuseram aos portugueses. Como decepar a deusa Austeridade? Como governar contra a austeridade concordando com o tratado orçamental que nos impõe um défice que não podemos cumprir? Como governar com uma dívida de 130 por cento sem a renegociar? A isto Costa passa ao lado. Mas se o PS não se revela uma alternativa à política de austeridade que graça pela Europa do sul, a mando da Europa protestante do norte, destruindo vidas, isso não quer dizer que se vá votar nos bandidos políticos da PaF. Há pelo menos 16 outras alternativas, para além da abstenção e do voto nulo ou branco. Então, o que se passa? Como é isto possível? Nem o rotativismo político parece funcionar. Esperemos pelo bom senso, contra a grande mentira de Passos Coelho e dos que lhe obedecem.  

terça-feira, setembro 22, 2015

VÍTOR SILVA TAVARES (1937-2015)



Vítor Silva Tavares era um dos últimos editores portugueses. Talvez aquele que representasse, ainda, o que era um editor – uma espécie em sérias vias de extinção, perante a lógica mercantil que preside à edição como qualquer produto de super-mercado. VST editou, ao longo de mais de quarenta, anos autores como Herberto Herder, Gastão Cruz, Fiama, Alberto Pimenta ou os mais recentes Adília Lopes, Manuel de Freitas, José Miguel Silva, mas também autores quase desconhecidos. Numa entrevista assume ter editado um autor para evitar um suicídio, colocando muito naturalmente a vida à frente da arte. Ficou ligado, indissoluvelmente, à & etc, a editora onde os livros tinham um tratamento gráfico especial. Vítor Silva Tavares (e a & etc) era mais que um editor marginal ou maldito. É certo a sua preferência pela edição de autores ligados a uma estética surrealista ou provocadora – e tudo isso fazia parte do seu programa de vida e edição. Mas a riqueza do catálogo da & etc é enorme. Preferiu a poesia ou a prosa dos poetas, por vezes também o ensaio, a tradução – tudo num esmero único, onde não faltava a colaboração de alguns dos principais artistas gráficos. Nos últimos tempos foi-lhe dado algum reconhecimento: documentários que circulam pela net, um livro sobre a & etc. Ele próprio, depois de publicar tantos poetas, publicou os seus versos numa pequena e artesanal editora do Porto, a 50 kg, "Púsias". Deixa um exemplo que se foi renovando noutras pequenas editoras.

domingo, setembro 13, 2015

JOÃO RUI DE SOUSA

MOTU CONTINUO

a minha vida dança sobre esferas
por esferas que vão ao infinito

o infinito cai a prumo em nada
no ar que me pesa que respiro

respiro o mar o sol a sombra a casa
cada acordar diurno das raízes

as raízes seguram a terra

a terra é onde durmo e onde vivo

DÍSTICO

põe ordem no desejo
repousa cegamente como um navio em chamas

João Rui de Sousa, Meditação em Samos, Galeria Panorama, s/d, pp. 20 e 23

domingo, setembro 06, 2015

OS JORNALISTAS AO SERVIÇO DO PODER BIPARTIDÁRIO



Pela primeira vez a as três televisões em sinal aberto, SIC, TVI e RTP, chegaram a um acordo para realizar e emitir o que chamam o debate decisivo entre António Costa e Passos Coelho. O debate vai ser emitido na próxima quarta-feira a partir das 20h30 com moderação de três jornalistas das estações que organizam esse debate, nas três estações generalistas em simultâneo, podendo por isso ter uma audiência recorde. É o modelo norte-americano, mas num só debate. Quanto ao resto, aos outros partidos com assento parlamentar (BE e CDU) e aqueles que emergem nas sondagens como podendo obter um ou mais lugares no futuro parlamento, e ainda todos os outros partidos concorrentes a estas eleições, quanto a esse resto isso não interessa nada.
Ora esta falta de respeito pelas regras democráticas dura há quase 40 anos – por isso os partidos do chamado “arco da governação” são só três, precisamente os que estarão no debate dito decisivo do próximo dia 9. Isto não é de agora, mas nestas eleições em que o eleitorado está cansado dos partidos do “arco da governação” a situação tomou um grande despudor com este único debate para uma audiência máxima. Há que guiar o rebanho para votar ou na coligação PSD/CDS ou no PS. E para isso os jornalistas, os directores de informação, estão ao serviço do poder. Há que evitar as ameaças que representam novos partidos como o de Marinho Pinto, que nas últimas eleições europeias concorrendo pelo obscuro MPT conseguiu dois lugares no parlamento europeu, o que caso se tratasse de legislativas corresponderia a um razoável grupo parlamentar. Da mesma forma há que evitar que o Livre/Tempo de Avançar obtenha uma representação parlamentar. Com um jeitinho dos serviçais jornalistas e comentadores para atestar qual o vencedor, ainda um dos partidos consegue a maioria absoluta como quer o presidente Cavaco. Assim o povo seja cordato e fiel como um cão aos donos do poder.

segunda-feira, agosto 31, 2015

Gonçalo M. Tavares

A corrida de 100 metros

Vejamos o mundo.
Exércitos, lugares onde se sofre,
sacrifícios da mãe pelos quatro filhos, o erudito de óculos a
examinar
o filme pornográfico,
o velho de passo lentíssimo com um casaco exagerado,
uma criança a troçar de outra mais fraca,
o casal a discutir por causa do ruído dos pés de um
e da sensibilidade do ouvido do outro,
e no meio de tantos factos e de tão diversas possibilidades,
oito homens com calças curtas e números nas costas
correm cem metros
- nem um centímetro a mais - e ganham ou perdem.
E uma vitória, por exemplo, pode levar alguém a curvar-se
e a chorar. E o assunto são cem metros de espaço no Mundo.
Pensa, por exemplo, no espaço de um país
ou no espaço da tua casa,
ou no espaço que percorres atrás da rapariga
que te largou a mão no meio da cidade;
porém nada mais há em alguns instantes, para esses homens,
além de: cem metros. Cem metros de espaço no planeta.
           Vejamos, pois, o Mundo outra vez.
Como quem lê pela segunda vez um livro. Voltemos atrás.
Vejamos onde o homem perdeu a razão.
Em que momento.

Gonçalo M. Tavares, 1, Lisboa, Relógio d' Água, 2ª ed. 2011, p. 133
Gonçalo M. Tavares é sem dúvida o escritor, revelado já este século, cuja obra se mostra mais original. Na escrita de GMT a poesia ocupa um pequeno lugar. Por isso a sua poesia tem sido menosprezada face à de outros autores que são apenas poetas. Mas a força desta obra pouco convencional em relação aos géneros,  talvez seja uma das mais importantes entre os poetas que começaram a publicar este século.

domingo, julho 26, 2015

Vasco Gato

VI

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento

Vender-te-ão o conforto
a perseverança     o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação do tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro     dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar

Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
na fotografia da época

Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-te o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

Vasco Gato, Fera Oculta, Douda Correria, 2014
Vasco Gato nasceu em 1978. Publicou mais de uma dezena de livros de poesia  entre  Um Mover de Mão (Assírio & Alvim, 2000) e Fera Oculta, plaquete manifestamente politizada que testemunha a situação que Portugal vive e tem vivido.