segunda-feira, novembro 30, 2020

Graça Videira Lopes

 


INCITAÇÃO AO CANTO, COM BORBOLETAS

Amigos, deixemos ir no ar as borboletas
que voam breves. Deixemos-las voar.
A terra abriu as asas nesta manhã de primavera
em cada uma delas. Deixemos o azul voar.
A beleza das coisas, amigos, é o limite 
do canto. Deixemo-nos cantar. 
E mesmo se é dezembro e a cidade oscila
num sono incerto e vário, deixemo-la tecer
os fios luminosos da manhã.

*

NEBLINA

A melancolia é um barco encalhado
no meio do Tejo, numa manhã de nevoeiro.
Chora o Cais das Colunas, num filme 
a preto e branco, a memória dos que partiram
para o deserto sem regresso do império:
gaivotas acenando em terra, voando
em círculo sobre os mastros, onde flutuam,
imóveis, os estandartes do tempo.
Um rei que não regressa é um rei morto,
mesmo que os seus olhos nos fitem na distância,
no espanto de um tesouro por encontrar.
Há dias em que, na espuma do Tejo, o que regressa
são os navios dos que o seguiram rumo ao sul.

(de Paisagens e outros lugares a discutir, ed. Arte Comum, Lisboa 2005)

Graça Videira Lopes nasceu em Mangualde. Tem uma basta bibliografia na sua área de estudo: a poesia Galego-Portuguesa. Como poeta publicou Horácio e as Bonecas (Fenda, 1983) e Paisagens e outros lugares a discutir (2005). Está representada na antologia poética Sião (Frenesi, 1987). 

sábado, outubro 31, 2020

Raimbaut de Viqueiras

 


ALTAS ONDAS QUE VINDES SOBRE O MAR

Altas ondas que vindes sobre o mar,
que o vento faz cá e lá balançar,
do meu amigo sabedes novas contar,
que foi para lá? Não o vejo voltar!
E ai, Deus, o amor!
Ora me dá prazer ora me dá dor!

Ai, doce brisa, que vens de lá
onde meu amigo dorme e está e anda,
traz-me de seu alento um sopro!
A boca abro, do grande desejo que trago.
E ai, Deus, o amor!
Ora me dá grande prazer ora me dá dor!

Faz mal amar vassalo de estranho país,
tornam-se em choro seus jogos e risos,
Nunca pensei que o meu amigo me traísse
pois lhe tudo o que de amor me quis.
E ai, Deus, o amor!
Ora me dá prazer ora me dá dor!

(in Os Trovadores Provençais, selecção e tradução de Irene Freire Nunes e Fernando Cabral Martins, ed. Documenta, 2014, p. 194)

Raimbaut de Viqueiras (1180 – 1207) foi um trovador provençal, do qual se conhecem 26 poesias


quarta-feira, setembro 30, 2020

Dick Haskins e o policial

 


O nome de António Andrade Albuquerque, ou mesmo o de Dick Haskins, nada dirá ao leitor mediana ou mesmo bem informado português. Sendo que Dick Haskins é o pseudónimo utilizado de António Andrade Albuquerque para a escrita de 21 romances policiais, na esteira de outros autores portugueses, que optaram pelo uso de um nome inglês para pseudónimo na assinatura autoral de um romance policial, como é o caso de Ross Pynn (José Roussado Pinto, 1926-1986), Dennis McShade (Dinis Machado, 1930-2008), Frank Gold (Luís da Silva Campos, 1942-2000) ou W. Strong-Ross (Francisco Valério Azevedo, 1888-1980). Mas destes nomes, entre outros, que fizeram o policial português o nome de Dick Haskins foi o que conseguiu uma internacionalização, rara mesmo na literatura "convencional" portuguesa. É assim que a partir de 1961, ainda a obra de António Andrade Albuquerque estava no início, começa a ser traduzido em Espanha e na América do Sul, países a que se seguem a Alemanha, Itália, França, Suécia, Holanda, Grã- Bretanha, Estados Unidos, México, África do Sul, Austrália ou Nova Zelândia, num total total de 30 países e milhões de exemplares vendidos. Na verdade, em número de países e em milhões de exemplares Andrade Albuquerque/Dick Haskins ombreia com autores como José Saramago ou António Lobo Antunes, e no entanto é (foi), em Portugal um autor desconhecido. Isto diz muito da forma como o policial tem sido tratado em Portugal - e não só - como um género menor da literatura, a par com a ficção-cientifica (embora sejam famosas coleções como a dos Livros do Brasil, ou da Editorial Caminho). O certo é que o policial evoluiu, tanto em língua inglesa com autoras como Patricia Highsmith ou Ruth Rendell, ou no caso português em autores como Francisco José Viegas, mais próximo do policial clássico, ou os primeiros livros de Ana Teresa Pereira, autora com um universo muito próprio que foge ao policial clássico, embora tenha publicado os seus primeiros livros na coleção policial da Caminho. E tanto Viegas como Ana Teresa Pereira são hoje autores de referência na literatura portuguesa, premiados com o Prémio de romance e novela da APE.

António Andrade Albuquerque nasceu em Lisboa, a 11 de Novembro de 1929. Frequentou o liceu Passos Manuel, onde teve como professor o historiador de literatura António José Saraiva, que via no seu aluno um futuro escritor. Mas acabou por ir parar ao curso de medicina, o qual não terminou para se entregar à escrita. Escreveu 21 policiais. Entre o fim da década de 1970 e inicio de 1980, a RTP produziu uma série de 12 episódios baseados nos seus policias. Em 2008 foi galardoado com a medalha de honra da SPA. Vivia em Peniche. Faleceu em 2018, aos 88 anos. Neste momento não é possível encontrar exemplares de livros do autor nas livrarias portuguesas.


   

segunda-feira, agosto 31, 2020

Leonor de Almeida e a Feira do Livro do Porto

 Leonor de Almeida

ENTRONIZAÇÃO


Tenho o braço cansado,
A mão dorida, trôpega...
Mas uma espécie de ânsia sôfrega
ordena:
            Empurrar tudo!
- Não quero, nem passado,
Nem presente,
Nem futuro! - 

O braço faz de muro,
A mão abre caminho, coerente...

Quero uma estrada cá dentro... lisa, plana,
Para a tua palavra mágica, profética,
Bela e magnética,
Passear livremente,
E demoradamente!...

(de "Caminhos Frios", 1947)

TELA

Pássaros enfermos transbordam-me a garganta
e meu coração tenta encher as covas das árvores arrancadas.
As nuvens enrolam-se na linha nua das chuvas
e no ar granuloso o teu perfil se descasca...

Bodes inquietos bebem a noite selvagem
e meu sangue encharca as esponjas de treva.
O choro dos sonhos corre sobre as folhas caídas
e no colchão dessa lama a morte me abraça...

Dá-me um nome
ó filho das calmas pastagens!
Que a minha hora glacial
deixe de sorver os pântanos!

(de "Terceira Asa", 1960)

O nome e a poesia de Leonor de Almeida esteve esquecido durante décadas, como o de outros poetas do século XX. Como são desatentas as gentes que catam versos, como piolhos da cabeça de um infante loiro. Na verdade, Leonor de Almeida foi uma poeta bastante discreta. Nascida no Porto em 1909, ou 1915, publicou apenas 4 livros de poesia: Caminhos Frios (1947), Luz do Fim (1950), Rapto (1953) e Terceira Asa (1960), colaborou com alguns jornais do Porto, e faleceu em Lisboa, em 1983. E subitamente, alguém reparou nesse nome que é um dos primeiros a figurar na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa de 1961 (da qual se transcreveram os dois poemas acima), organizada por E. M. de Melo e Castro (poeta e ensaísta falecido no passado sábado, 29, e que foi um dos principais nomes da poesia experimental portuguesa) e Maria Alberta Menéres. E assim, o nome de Leonor de Almeida, homónima da Marquesa de Alorna, é homenageado este ano na Feira do Livro do Porto. Pronto para esta homenagem, foi recentemente editado o livro Na Curva Escura dos Cardos do Tempo, com organização de Cláudia Clemente e prefácio de Ana Luísa Amaral (ed. Ponto de Fuga), que reúne os quatro livros publicados em vida pela autora. Destaque ainda, nesta Feira do Livro, para a homenagem a Maria de Sousa, cientista, mas também poeta, falecida este ano vítima de covid. E ainda, para outra mulher poeta, Andreia C. Faria, a quem a organização da Feira foi buscar o título do livro que reúne a poesia de uma das revelações poéticas da década de 10, Alegria para o Fim do Mundo, para estampar como slogan (?) da Feira. É certo que vivemos tempos pandémicos, e o livro, editado em 2019, tem algo de profético no título, mas como resposta, encontramos um outro livro, de Manuel António Pina, cujo título é: Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde. 


sexta-feira, julho 31, 2020

Al - Mu'tamid

Al-Mu 'Tamid: o rei-poeta de Sevilha | by Maria João Cantinho ...

Ao passar junto da vide
Ela arrebatou-me o manto,
E logo lhe perguntei:
Porque me detestas tanto?
Ao que ela me respondeu:
Porque é que passas, ó rei,
Sem dares saudação,
Não basta beberes-me o sangue
Que te aquece o coração?

*

Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite; orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa

In O Meu coração é Árabe - a poesia luso-árabe, Sel. Trad. e prefácio de Adalberto Alves, Assírio & Alvim, 1987.
Al-Mu´tamid nasceu em Beja, em 1040, no seio de uma família de poetas. Foi rei da taifa de Sevilha, e é considerado como o mais importante poeta da poesia Luso-Árabe e do Al-Andaluz.


terça-feira, junho 30, 2020

António Manuel Couto Viana

POETA ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA DEIXOU-NOS HÁ 10 ANOS! - BLOGUE ...

O AVESTRUZ LÍRICO

Avestruz:
O sarcasmo de duas asas breves
(Ânsia frustrada de espaço e luz,
De coisas frágeis, líricas, leves) ;

Patas afeitas ao chão;
Voar? Até onde o pescoço dá.
Bicho sem classificação:
Nem cá, nem lá.

Isto sou (doi-me a ironia
- Pudor nem eu sei de quê).
Daí  a absurda fantasia
De me esconder na poesia,
Por crer que ninguém a lê .

domingo, maio 31, 2020

quinta-feira, abril 30, 2020

Anónimo

AVERNO: AVERNO 000
Naquela rua escura, mal iluminada
e lúgubre (com parca iluminação, em suma),
ninguém percebia muito bem
o que poderia ter querido dizer Theodor
Amand-Marie quando - nos seus Prolegómenos
a Coisa Nenhuma - definiu a literatura como

- "uma máquina de triturar ideias"!?

*
Partindo de um adágio popular
("trabalhar faz calos"), Isaura Serrano
teve um trabalho indescritível
para demonstrar que o trabalho
é abjecto e desnecessário.

(Referimo-nos, naturalmente,
à sua aclamada tese O Calo,
a Culpa, o Colapso a editar em breve
pelas Edições do Pousio, Aveiro).

Este Anónimo é o autor de Bardamerda - Poemas Citacionistas Contemporâneos, editado em 1999 pelas edições & etc. Os dois poemas aqui apresentados são retirados da antologia Poetas sem Qualidades (Averno, 2002)

terça-feira, março 31, 2020

O MUNDO FECHADO


Sobre a insistência em avançar com números por parte dos políticos (ou: sobre a importância dos cordões de sapatos) o senhor Kraus disse o seguinte:
Todo o número exacto atirado aos olhos da população insegura e distraída produz cegueira.
Quando nos atiram um número directamente á cara, devemos fingir-nos distraídos, imitar certos actores cómicos do cinema mudo, e aproveitar esse exacto instante para apertar os cordões dos sapatos.
Quando, por fim, voltarmos a endireitar o tronco e a levantar a cabeça, o número já passou, a grande velocidade, e por isso já não nos afectará a visão - continuou o senhor Kraus.
Se esperarmos um pouco, ainda ouviremos o número a partir-se contra uma parede em vários fragmentos disformes.
Com a visão intacta poderemos então assistir ao lamentável espectáculo das ruínas incoerentes, daquilo que parecia, ainda há instantes, ser um número exacto, convincente e decisivo.

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Kraus e a Política, Caminho, 2011, p. 31

sábado, fevereiro 29, 2020

TOMAS KIM

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Tempo habitual

De nojo, o tempo, o nosso,
A perfídia estrumando
No presumir da carícia branda e sorriso
De todos.

De raiva o tempo, o nosso,
Céu, mar e terra abrasando
Em clamor de labareda e navalha afiada
E sangue.

De pavor o tempo, o nosso,
A primavera assombrando.
Exílio de ventres a fecundar e tudo o mais
Que a faz.

De amor o tempo, o nosso,
Onde uma voz espalhando
A boa nova do pântano fétido da noite
Imposta?
De nojo, de raiva, de pavor,
O tempo transido
Do nosso viver dia-a-dia!
Mas não de amor...

Tomaz Kim, in 'Exercícios Temporais'