ESCALA RICHTER
ESCALA RICHTER
O VENTO E O SOL
REBIS
1, Em fevereiro de 2020 a peste sob a forma de um vírus a que chamaram covid, aparece na Europa; em fevereiro de 2022 a Rússia invade a Ucrânia, é o início de uma guerra que na realidade opõe o ocidente à Rússia, mas de certa forma, também à China, numa nova ordem mundial cuja natureza última estamos longe de vislumbrar; em fevereiro deste ano os meios de comunicação social começam a falar de uma nova forma de inteligência artificial (IA), criada pela empresa Openai, que interage com qualquer utilizador que aceda a este serviço que numa primeira fase foi gratuito. É o famoso Chat GPT (na versão 3.5 de acesso livre, a versão 4 tem que ser paga). O mundo já muitas vezes passou por pestes seguidas de guerras e vice-versa, mas nunca por uma máquina que simule (?) a inteligência, a fala humana. A IA, para uns um perigo para a humanidade, para outros uma oportunidade na resolução de problemas que afectam os humanos, desde a solução para algumas doenças até problemas como as alterações climáticas, era como um gato escondido com o rabo de fora. Na realidade pouco ou quase nada se falava dela, mas dos algoritmos existentes nos smartphones, que partem do princípio de que se a pessoa A gosta da música X também vai gostar de Z e W (este princípio usado pelo Spotify ou YouTube é também válido para muitas outras aplicações).
2, O
mundo de cada humano passou para um pequeno smartphone (literalmente telefone
inteligente) que nos acompanha para todo o lado e onde temos todos os nossos
contactos, cada vez mais virtuais, bem como fotografias e outros documentos. E
estamos presos e enredados nesse micro-computador de bolso sem o qual a vida
hoje é difícil de ser vivida. É uma vida cada vez mais virtual, mas também é a
forma como, cada vez mais interagimos com o outro, com a possibilidade de uma
alteridade. Torna-se assim num paradoxo: agimos com mais pessoas e de forma
mais fácil, mas essa acção já não é uma presença, é mediada por uma tecnologia
que nos representa. A internet transformou-se de uma utopia comunicacional em
algo que deu um enorme poder a quatro ou cinco empresas que podem ameaçar a
nossa liberdade. A inteligência artificial é um dos mecanismos que mal-usados
nos pode tornar escravos numa distopia.
3, Se durante quase duas décadas o Google foi
o principal motor de busca de conteúdos na internet, com o Chat GPT isso
pareceu alterar-se (a propósito recomendo o Duck Duck Go ao google). Já não se
tratava de apresentar sites (a maioria pagos) mas de fazer uma pergunta a um
sistema de IA. Ora, na versão 3.5, o chat GPT revelou-se pouco fidedigno.
Quanto não tinha uma resposta inventava, o que os especialistas em IA chamaram,
muito humanamente "alucinar". Isso quer dizer que, pelo menos na
versão 3.5, o chat GPT mostrou-se menos fiável do que a Wikipédia, cujos
artigos estão cheios de erros - humanos. E, de facto, a internet é uma rede
cheia de informações falsas, duvidosas, inexactas, que as redes sociais expuseram
ao limite. Ora, o chat GPT pretende ter toda a informação que circula online (além de uma montanha de livros que "leu"), o
que equivale a ter bastante informação falsa. Então como vamos confiar na
informação que nos é "dada" por uma inteligência artificial?
4, Outro problema que o aparecimento destes
sistemas de IA coloca, é a criação artística. Para já a actual IA parece estar
na sua infância, mas isso não impede alguma criatividade, precisamente uma
criatividade ao nível infantil. O Chat GPT é bom a criar histórias para
crianças, porque razão uma editora de livros infantis não poderá substituir os
seus escritores de livros infantis pela inteligência artificial? E quando o a
IA for capaz de escrever romances? Será que um dia um programa de IA irá
escrever algo superior à capacidade criativa de um Joyce, um Proust, um Kafka,
um Pessoa? E na pintura, na música, no cinema, na fotografia. Para já há
experiências de jornais feitos por IA. A Inteligência artificial não é só uma
ameaça a tarefas rotineiras, é uma ameaça também à Arte, aos artistas, e
portanto aos humanos.
5, Numa carta aberta subscrita entre outros
pelo criador da Openai e do Chat GPT, Sam Altman, e por um engenheiro da
Google, percursor dos sistemas de IA apelava-se para uma regulamentação a nível
governamental da IA. Caso isso não fosse feito poderíamos estar perante algo, tão catastrófico como a extinção da humanidade. A carta não foi tomada em conta pelos governos,
e note-se que foi escrita e subscrita pelos criadores da IA. Antes, governos
como o português, no âmbito do que chama "transição digital", já
anunciou que as chamadas para o 112, a partir de 2025, serão atendidas por um
sistema de IA.
6, Vivemos um tempo de ameaças e de aceleração
técnica como nunca antes a humanidade tinha vivido. A IA é mais uma dessas
ameaças, mas também nos pode ajudar a resolver vários problemas. Em rigor, não
se sabe até que ponto a IA está desenvolvida, mas não é difícil imaginar até
onde ela se pode desenvolver: até governar ou escravizar os humanos. Ou então,
até uma fusão com os humanos (transhumanismo, cyborgs). Por isso é necessário tornar esta uma
questão política premente. Mas os partidos políticos, os governos, a UE,
parecem quererem ignorar o que se passa. A ameaça – mas também as suas
possibilidades – ficam a pairar perante uma classe política e uma humanidade
estúpida.
REFEEIÇÃO
AS COORDENADAS LÍRICAS
1, O jornal Público tem nos últimos meses
apresentado à venda, em algumas bancas, um livro por mês que foi objecto da
censura do Estado Novo. A acompanhar o livro, em edição fac-simile, está um
relatório do censor que apresenta as razões por que o livro deve ser censurado.
Há quem pense que depois do 25 de Abril, a censura acabou. Na verdade, existem
várias formas de censura, a começar pela auto-censura. Mas, nos tempos do PREC,
terá vigorado uma espécie de censura com a nacionalização de quase toda a
Imprensa, com o saneamento de jornalistas – como aconteceu no Diário de
Notícias de que era director-adjunto José Saramago. No entanto, nesse período
conturbado, não existiu um mecanismo oficial de censura, como aquele que foi um
dos sustentáculos da ditadura. Além de existir liberdade em jornais como o
Expresso ou o então criado, e depois desaparecido Jornal Novo, não consta que
existisse uma censura editorial no que aos livros diz respeito. Esse terá sido,
pelo contrário, um período de anti-censura na exibição cinematográfica, com
filmes eróticos ou pornográficos, e provavelmente também nos costumes, no
levantar de certas questões, desde formas de vida até às inevitáveis questões
políticas. Depois do 25 de Novembro de 1975, algumas figuras que fizeram parte
do Estado Novo regressaram à televisão, como o popular historiador José Hermano
Saraiva. Ou seja, o que terá existido de censura, partiu de um “ar do tempo”,
do espírito de uma época efervescente.
2, Recordo um diálogo, numa livraria, entre
uma cliente e um livreiro, em volta de um livro de Mário Zambujal. A cliente
pretendia que o livreiro assegurasse que aquele livro não continha passagens
tristes ou que a incomodassem, ou seja, pretendia ler um livro sem o pathos
que afecta a grande literatura, e mesmo géneros menores como o policial. Creio
que Mário Zambujal será uma boa escolha para quem quer fugir aos vários pathos
da literatura. Mas também o pode ser Eça de Queiroz. Tudo depende da
sensibilidade do leitor. E o acto de leitura, pode ser interpretado como o
espreitar um mundo muito próprio de uma outra sensibilidade: a do autor. Muitas
vezes o autor escreve como se estivesse no divã de um psicanalista, dando azo
às suas pulsões, ainda que expressas com uma linguagem que tenta ser inovadora.
Nisto o leitor, que não é psicanalista, ressente-se daquilo que lê, a sua
sensibilidade é afectada. É talvez por isso que existem poucos leitores, e os
que existem lêm na sua maioria best-sellers de José Rodrigues dos Santos
ou Dan Brown ou outro autor que estiver na moda. A leitura de determinadas
obras exige um esforço, e uma dureza, que não se coaduna com a vida que as
pessoas levam. Por isso, a um livro preferem ver uma telenovela, uma série, ou
um blockbuster como a saga de 007. Algo que as entretenha da dureza da
realidade (“Go, go, go, said the bird: human kind Cannot bear very much
reality”. escreveu T. S. Eliot num dos versos de Quatro Quartetos). A
literatura é por vezes cruel para com o leitor, para com a sua sensibilidade,
que o autor na sua grandiloquência admite desprezar.
3, Já aqui referi alguns autores que terão a
capacidade de escrever pensando num determinado – e alargado – público, ou se
quisermos, terão uma literatura com menos pathos (Mário Zambujal, J.
Rodrigues dos Santos, Dan Brown). A estes gostaria de acrescentar outros: Roald
Dahl, Ian Fleming, Enid Blayton, Agatha Christie. Roald Dahl, foi um escritor britânico,
autor de livros para crianças (e também para adultos). Ian Fleming foi um
militar, jornalista e escritor britânico que escreveu romances de espionagem,
tendo sido o criador do famoso agente James Bond, o 007. Os seus livros,
escritos entre os anos 1950 e 1960 deram origem aos famosos filmes de James
Bond. Quanto a Enid Blayton, ficou celebre pela série de livros de aventuras
para um público juvenil, Os Cinco. Também estes tiveram adaptações audiovisuais.
Agatha
Christie, foi um dos grandes nomes do policial, criadora das personagens
Hercule Poirot e Miss Marple. O que têm em comum estes quatro escritores para
além do seu grande sucesso junto do público? Foram todos, nos últimos tempos,
alvo de censura por parte das suas editoras. Essa censura foi feita com a ajuda
de um grupo de pessoas, chamado “leitores de sensibilidade” (“sensitivity
readers”). Sendo estes autores Best-Sellers, quer para um público
infanto-juvenil, quer para um público interessado no romance policial e de
espionagem, ou seja, para um público que prefere uma literatura mais ligeira,
longe da grandiloquência literária, torna-se um pouco difícil perceber em quê
estas obras feriram a sensibilidade destes leitores. A resposta estará num revisionismo
woke, que chega agora à literatura. A questão que se coloca, depois da obra
destes autores ter sido tocada pelos “leitores de sensibilidade” é saber até
onde irá esse revisionismo completamente intolerável. Será que chegarão às
grandes obras da literatura mundial? E mesmo que não cheguem, o facto de terem reescrito
obras de 4 autores – que para muitos leitores estão entre os seus preferidos – é
já demasiado grave.
1, O semanário Expresso fez 50 anos. Número
redondo como se gosta nos meios jornalísticos, portanto ocasião para comemorar:
uma edição especial com o formato e o grafismo originais, um pequeno caderno
com as primeiras páginas e uma conferência em participou, entre outros o
presidente Marcelo Rebelo de Sousa – que foi director do Expresso –, e ainda um
livro do seu fundador e primeiro director, Francisco Pinto Balsemão, dividido
em três volumes. Na verdade, o livro, cujo título é Memórias. Expresso 50,
não é um livro original, mas o que alguém aproveitou e adaptou de um calhamaço
de mil páginas em que Balsemão escreve as suas Memórias (Porto Editora,
4ª edição 2021). Estes 3 volumes perfazem 237 páginas, pelo que, não tendo lido
esse recordatório, talvez podemos supor que cerca de 20 por cento do livro de
memórias de Balsemão é dedicado ao Expresso, e também ao Diário Popular, jornal
vespertino, já extinto como muitos outros, e de que um tio de Pinto Balsemão –
“o tio Xico” – era accionista e gestor.
2, Se escrevi acima que Francisco Pinto
Balsemão foi o fundador e primeiro director do Expresso, sendo essa a verdade
oficial, pela leitura das Memórias do Expresso facilmente se fica a perceber
que, ressalvando o período em que Balsemão foi ministro do governo AD, e
depois, Primeiro-Ministro, ou seja, entre 1980 e 1983. Balsemão assumiu sempre
um papel de liderança dentro do jornal, embora não voltasse ao cargo de
director. Uma espécie de director não executivo, ao mesmo tempo que era o
gestor do jornal, papel que continua a desempenhar.
3, O que essencialmente estas Memórias
oferecidas aos leitores do Expresso revelam é o espirito medíocre de Francisco
Pinto Balsemão, o seu egocentrismo, os seus tiques de uma alta burguesia
preocupada essencialmente com a rentabilidade, com os aspectos económicos. Balsemão
acha-se o pai do Expresso, o que na realidade é, mas não percebe que o bom pai
é aquele que quer que os filhos cresçam. Por isso acha-se acossado quando
pessoas que pertenceram ao jornal o abandonaram para criar outros projectos. E
refere-se a isso “numa interpretação freudiana” como “matar o pai”. E quem quis
matar o pai? Desde logo Marcelo Rebelo de Sousa, “um dos fundadores do
‘Semanário’, em 1983”, mas também Augusto de Carvalho que fundou o diário
Europeu, em 1988, Miguel Esteves Cardoso, que com Paulo Portas vai fundar nesse
mesmo ano o Independente, e que Balsemão admite que “nos anos áureos, foi um
perigoso e válido concorrente do Expresso”. Mas também José António Saraiva,
que depois de 21 anos como director do Expresso funda o Sol, ou ainda
jornalistas como Maria João Avillez, ou o administrador Henrique Granadeiro.
Mas o grande “golpe” para o Expresso terá sido a saída de Vicente Jorge Silva
acompanhado de um grupo de 20 jornalistas que faziam a Revista, para fundar o
diário Público, cujo accionista era Belmiro de Azevedo, à altura o homem mais
rico de Portugal. O que Balsemão na sua cultura contabilística não consegue
perceber é que o Expresso é, apesar de tudo, um jornal muito maior do que a
estreita mente do seu fundador. É certo que foi ele que escolheu algumas das
pessoas para redactores ou para a direcção editorial, mas o Expresso terá ganho
uma outra dimensão com a contribuição de Vicente Jorge Silva, que nos finais da
década de 60 tinha fundado na Madeira o Comércio do Funchal. Vicente Jorge
Silva, quer com o Comércio do Funchal, quer com a Revista do Expresso, quer com
o Público, foi um grande criador de jornais, jornais de qualidade, de
referência, com um sentido cultural, político, de visão da sociedade e do seu
tempo. Jornais que talvez fossem um pouco megalómanos para o estreito espaço
português, mas fizeram com que Portugal tivesse produtos jornalísticos que
podiam colocar-se lado a lado com os grandes jornais europeus. E, para além de
saber rodear-se dos melhores colaboradores e jornalistas, Vicente Jorge Silva
era alguém cujos editoriais, assinados no Público, tinham um peso na sociedade
portuguesa.
4, E hoje, o que é o Expresso? Com uma ou
outra excepção é um jornal medíocre, com a direcção editorial a obedecer ao “pai”
e “fundador” Balsemão, à sua estreiteza mental de quem é sobretudo um
empresário e ex-político. É certo que os jornais, no seu estertor, perderam
qualidade. Mais: perderam-se e continuam-se a perder jornais, e é de temer o
que pode acontecer à Imprensa escrita portuguesa – e não só – na era do
digital, das redes sociais. Mas a perda de qualidade também atinge o Público, e
talvez jornais internacionais como o El País, o Le Monde, o Libération ou mesmo
o tão seguido pelos jornalistas The Guardian (será o único “grande” jornal em
regime totalmente aberto na sua edição on-line). O Expresso ainda mantém nomes
como Gonçalo M. Tavares (sem dúvida o melhor escritor português actual), Miguel
Sousa Tavares, Clara Ferreira Alves (que resvala muito nas suas longas crónicas
para um certo pedantismo), Pedro Mexia (que está muito longe de ocupar o lugar de um
Eduardo Prado Coelho na Imprensa portuguesa). Refira-se ainda correspondentes
em vários pontos do globo, mas não em regime de exclusividade.
5, O Expresso é um dos jornais que mais vende em Portugal, quer no on-line, quer na sua edição em papel, vendido num saco que outrora foi de plástico e agora – por razões ecológicas – é de papel. Já pesou quase 2 kg, mas agora está mais magro: primeiro caderno, revista E, e caderno de economia. O público a que se destina são classes A e B, ou seja, doutores & engenheiros, profissões liberais e posicionamento político. Aliás o preço do jornal em papel, quase cinco euros, assim o justifica. E quem pensa que tem leitura para toda a semana é porque lê pouco, ou aguenta com prosas chatas de especialistas nisto ou naquilo – algo visível na actual edição da revista E, onde existe uma pomposidade no título com que alguns articulistas escrevem quatro ou cinco páginas, como se vê nestes exemplos: "Nuno Galopim / Diretor de programas da Antena 1 e curador musical do Festival da Canção" (Revista E, 24 de fev. 2023) ou este: "Henrique Raposo / Licenciado em História, mestre em Ciência Política e cronista do Expresso"; de facto Raposo é cronista semanal na edição em papel do primeiro caderno e ainda cronista da edição diária digital, mas só mais risível que toda esta pompa de apresentar o CV dos articulistas ao lado da sua fotografia em caracteres maiúsculos, é mesmo este Henrique Raposo, e o artigo que assina na edição de 20.01.2023 intitulado "A cura dos pobres". Vale a pena transcrever a entrada: "Através da revolução da epigenética, uma nova neurociência da pobreza mostra-nos que a miséria extrema é sobretudo a manifestação de um grupo de doenças mentais. Aquilo que sempre foi visto como o 'comportamento à pobre' é, na verdade, um conjunto de sintomas do campo da saúde mental. Ou seja, a pobreza pode ter um tratamento ou mesmo cura". Fantástico este Raposo, cujas prosas tanto devem agradar ao pretenso citizen Kane Francisco Pinto Balsemão.
(Nota: na imagem, parte da capa do 1º número do Expresso, saído a 6 de Janeiro de 1973)