domingo, dezembro 31, 2023

LIVROS EM 2023

 

1, 2023 foi o ano em que o Ministério Público (MP) levou à demissão do governo de António Costa. Depois do ano ter começado com uma série de casos & casinhos que envolviam membros do governo, o golpe final foi dado em Novembro, quando a polícia entrou na residência oficial do primeiro-ministro e um comunicado do MP colocava Costa como suspeito. O primeiro-ministro demitiu-se nesse mesmo dia. Um mês antes, no Médio Oriente, o Hamas, num ataque terrorista, matava cerca de mil israelitas e fazia mais de 200 reféns. A resposta do governo de Benjamin Netanyahu foi uma acção de guerra que até agora fez mais vinte mil mortos palestinianos, na Faixa de Gaza, a maioria deles civis, e parece avançar com intenções de extermínio dos palestinianos.

Mas, no início do ano, algo de novo aparecia no reino da tecnologia em que estamos cada vez mais imersos: o Chat GPT. Concebido pela empresa OpenAi, o Chat GPT, e os modelos que lhe seguiram por parte da concorrência, o Chat Bing (Microsoft) e o Chat Bard (Google), permitem pela primeira vez uma interacção conversacional com um mecanismo de inteligência Artificial (IA). Embora já estivesse presente nos dispositivos electrónicos, nomeadamente nos smarphones, embora a investigação em IA tenha décadas, nunca a IA se apresentou assim perante os humanos: como um chatbot com o qual é possível “falar” (teclar), a quem é possível colocar questões, dúvidas ou pedir para criar algo. Tratando-se de um modelo de linguagem estatístico, o Chat GPT assume uma aura de uma entidade com uma sabedoria que não tem – ainda. A inteligência artificial apareceu como uma ameaça, a juntar a outras como a crise climática e as guerras (na Ucrânia e entre Israel e o Hamas), o que levou, paradoxalmente, alguns dos investigadores em IA a escreverem uma carta onde pediam uma desaceleração na investigação em IA. Vive-se assim entre o desejo que a IA resolva os problemas da humanidade, e o receio que se torne tão ou mais inteligente que os humanos. O certo é que ainda imberbe, a IA aparece como uma ameaça também ao mundo da criação literária. A greve dos argumentistas em Hollywood, que durou cerca de cinco meses, foi causada entre outros factores pela utilização da IA, num claro e primeiro efeito da IA no mundo da criação literária e artística. Os modelos como o Chat GPT têm já a capacidade de escreverem histórias infantis que podem rivalizar com as escritas por escritores humanos. Por altura do aparecimento do Chat GPT a Amazon foi inundada de livros para a infância. Vivemos, assim, num certo meio literário, já condicionado pela inteligência artificial. E o restante mundo editorial (tradutores, revisores, gráficos, etc) poderá ser afectado pela IA.

Num artigo publicado no El País, a escritora e activista Naomi Klein acusava a IA de “grande roubo” a todo o conhecimento humano, tendo o jornal The New York Times materializado essa opinião ao recentemente processar a Microsoft e a OpenAI por violação de direitos de autor. O filósofo José Gil, num ensaio publicado no Público (3-12-23) prevê um cenário distópico: “as obras de arte algoritmizadas serão saudadas como exemplos singulares de criação e engenho das máquinas inteligentes. Os romances, as traduções, os objectos de arte, as composições musicais resplenderão de originalidade inigualável. Produtos de uma enorme complexidade – nós seremos mais simples e pequenos, pobres e felizes.”  

 

2, De três importantes escritores e poetas se comemoraram em 2023 o centenário de nascimento: Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e Natália Correia. Eugénio de Andrade (1923-2005), foi um dos principais poetas portugueses da segunda metade do século XX. A sua poesia imbuída de um Eros clássico, principalmente nas primeiras obras, teve ao longo de décadas uma excelente recepção entre os leitores. Treze anos depois do seu desaparecimento, importava averiguar o valor que esta poesia mantém no cânone – universitário, crítico, entre pares e junto dos leitores. Certo é que neste ano de centenário apenas um livro de Eugénio de Andrade foi publico – Aquela Nuvem e Outras (Porto Editora), um livro para crianças. Embora a Assírio & Alvim tenha vindo desde 2012 a publicar individualmente cada um dos livros de Eugénio de Andrade, e já tenha em 2017 publicado a poesia reunida do poeta que nasceu no Fundão e viveu no Porto, e em 2022 a prosa reunida, pouco se notou, a nível de iniciativas, o centenário do autor de As Mãos e os Frutos. Quer isto dizer que Eugénio de Andrade caiu num certo esquecimento, ou talvez num desgaste.

Num sentido contrário podemos falar da obra poética, e não só, de Mário Cesariny. O nome de Cesariny liga-se umbilicalmente ao surrealismo português (juntamente com Alexandre O`Neill e António Maria Lisboa, mas também Mário-Henrique Leiria ou Manuel de Lima), de que foi o criador e teórico (veja-se Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista). Mas a sua poesia maior pode ser resumida a quatro ou cinco poemas que estarão entre os melhores poemas da lírica portuguesa. Mário Cesariny praticou a insubmissão como forma de vida. E essa atitude terá levado a um propositado esquecimento da sua obra que foi recuperada no final da sua vida e nos últimos anos. Daí que ao Cesariny poeta se tenha recuperado o Cesariny artista plástico. A edição da antologia Poesia de Mário Cesariny, e do projecto datado de 1977 de uma heterodoxa antologia de poesia, cujo título Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (ambas organizadas por Fernando Cabral Martins para a Assírio & Alvim) é já em si sintomático da rebeldia de Cesariny, mas também do acolhimento que a sua obra tem tido.

No caso de Natália Correia, não podemos falar apenas de uma escritora e poeta. É, para além disso, a sua biografia que a vai impor como uma figura pública:  deputada à Assembleia da República pelo PSD e depois pelo PRD, mas também pelo programa televisivo Mátria, que Natália Correia se torna conhecida do grande público, já depois do 25 de Abril. Mas, num outro círculo, mais restrito, Natália Correia vai afirmar-se, ainda durante o Estado Novo, como anfitriã e dona de um bar em Lisboa – o Botequim – que procurava ser um espaço de liberdade dentro da ditadura. Na sua actividade de escrita foi romancista, dramaturga, poeta, ensaísta, diarista, organizadora de antologias. Uma dessas antologias, Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965, primeira edição) valeu-lhe uma condenação de três anos com pena suspensa; foi ainda processada por ser a responsável editorial do livro Novas Cartas Portuguesas (1973). A sua escrita andou pelos caminhos do surrealismo, e com Mário Cesariny partilhou além da rebeldia e insubmissão, a amizade e admiração.

 

3, No que respeita aos livros publicados em 2023, apresento uma lista abaixo, que é uma selecção, lacunar, do que foi publicado. A maior parte recebeu alguma atenção por parte da escassa crítica literária ainda existente (Expresso, Público, JL, pouco mais), outros livros foram ignorados por essa mesma crítica.

Da lista saliente-se, na poesia, uma nova edição da Poesia de Luiza Neto Jorge, revista e aumentada, que vai buscar poemas que a poeta não integrou na reunião da sua poesia em Os Sítios Sitiados (1973), mas estavam em outros livros anteriores; a edição pela primeira vez em português de um autor italo-argentino, Antonio Porchia, mestre no aforismo de forte tonalidade poética, ou no poema disfarçado de aforismo, que foi publicando ao longo dos anos na suas Vozes (Voces). A publicação da obra completa de um poeta mais conhecido como letrista de fados, Pedro Homem de Mello; e também das obras completas de dois autores muito distantes entre si, não só no tempo: o clássico Horácio, e o recente Roberto Bolaño. Ainda obras completas, ou completas até à data: Rita Taborda Duarte, Helga Moreira, Maria da Graça Varella Cid e Ernesto Sampaio, de quem a Maldoror e Língua Morta reuniram em cerca de 400 páginas os poemas e textos em prosa.

Na ficção, no ano que o Nobel da literatura foi para o romancista e dramaturgo norueguês Jon Fosse, os autores portugueses mais conceituados pouco ou nada publicaram (com excepção de Gonçalo M. Tavares, sempre prolifico). Destaque-se o trabalho editorial da E-Primatur que este ano publicou a tradução na integra de Gargântua & Pantagruel de François Rabelais.

No ensaio, destaque-se a reunião da obra ensaística sobre poesia de Joaquim Manuel Magalhães, num grosso volume de quase 1200 páginas, que colige os seus três livros de ensaios e acrescenta inéditos – pelo menos em livro –, assinado com o pseudónimo, ou heterónimo, de António Maria António Pedro. Joaquim Manuel Magalhães é sem dúvida um dos mais lúcidos leitores da poesia portuguesa, e não só. Ainda no ensaio sobre literatura Joana Matos Frias publicou Oscilações (Documenta) e Joana Emídio Marques Notícias do Bloqueio (Língua Morta). A Relógio d` Água publicou mais um ensaio do filósofo Byung Chul Han, desta vez sobre A Vida Contemplativa, mas nesta editora também se publicaram os Ensaios de Robert Musil, e um livro que denúncia os mecanismos tecnológicos de vigilância da ditadura chinesa: Estado de Vigilância de Josh Chin e Liza Lin. Também na linha da crítica das novas tecnologias ao serviço do poder, de Jonathan Crary a Antígona traduziu Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista. E, entre muitos outros livros destaque ainda para um clássico do pensamento anarquista, Que é a Propriedade? de Proudhon nas Edições 70.

 

 

POESIA

Mário Cesariny – Antologia (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)

Mário Cesariny – Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)

António Porchia – Vozes (Língua Morta, trad. Nuno Azevedo)

Luiza Neto Jorge – Poesia (ed. Revista e aumentada por Fernando Cabral Martins e Manuele Masini, Assírio & Alvim)

Adília Lopes – Choupos (Assírio & Alvim)

Pedro Homem de Mello – Poemas 1934-1961 (Assírio & Alvim, ed. Luís Manuel Gaspar)

Horácio – Poesia Completa (Quetzal, trad. Frederico Lourenço)

Roberto Bolaño – Poesia Completa (Quetzal, trad. Carlos Vaz Marquez)

Rosa Maria Martelo – Desenhar no Escuro (Averno)

Margarida Vale de Gato – Mulher ao Mar e Corsárias (Mariposa Azual)

Helga Moreira – A Arte de Perder (Tinta da China)

Amadeu Baptista – Danos Patrimoniais. Antologia pessoal 1982-2022 (Afrontamento)

Alberto Pimenta – They` II Never Be the Same (Edições Saguão)

Cesare Pavese – Trabalhar Cansa (Penguin Clássicos, trad. Vasco Gato)

Fernando Guerreiro – Metal de Fusão (Black Sun Editores / 100 Cabeças)

José Amaro Dionisio, Helder Moura Pereira. Fátima Maldonado, F. Cabral Martins – Imperfeição (não) edições

Rita Taborda Duarte – Não Desfazendo (Imprensa Nacional)

Ernesto Sampaio – Luz Central (Maldoror/Língua Morta)

Maria da Graça Varella Cid – Poesia Incompleta (Tigre de Papel)

 

FICÇÃO

François Rabelais – Gargântua & Pantagruel (E- Primatur)

Gustave Flaubert – A Tentação de Santo Antão (Minotauro)

William S. Burroughs – Almoço Nu (Minotauro)

Rui Nunes – Neve, Cão e Lava (Relógio D` Água)

Gonçalo M. Tavares – As Botas de Mussolini (Relógio d` Água)

Gonçalo M. Tavares – Breves Notas sobre o Oriente (Relógio d` Água)

Joseph Conrad – Plantador de Malata (Sistema Solar)

Hélia Correia – Certas Raízes (Relógio D` Água)

Horace Walpole – Contos Hieroglíficos (Antígona)

Monteiro Lobato – Reinações de Narizinho (Tinta da China)

 

NÃO – FICÇÃO

Joaquim Manuel Magalhães – Poesia Portuguesa Contemporânea (Bestiário)

Byung Chul Han – Vida Contemplativa (Relógio d´Água)

Jonathan Crary – Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista (Antígona)

Joana Matos Frias – Oscilações (Ducumenta)

Josh Chin e Liza Lin – Estado de Vigilância (Relógio d´Água)

Robert Musil – Ensaios (Relógio d´ Água)

Joana Emídio Marques – Notícias do Bloqueio (Língua Morta)

Salvador Dali – Diário de um Génio (Sr. Teste)

Ian F. Svenonius – Contra a Palavra Escrita (Chili com carne)

Maria Filomena Mónica – Os Livros da Minha Vida (Relógio d´Água)

António Castro Caeiro – O que é a Filosofia? (Tinta da China)

João Barrento – Aparas dos Dias (Companhia das Ilhas)

Furio Jesi - Cultura de Direita (Edições 70)

Simon Sebag Montefiore – Mundo (Crítica)

António Vieira – Entrevista (Companhia das Ilhas)

Diogo Ramada Curto – Um País em Bicos de Pés (Edições 70)

José Gil – Morte e Democracia (Relógio d´Água)

Camilo Pessanha – China e Macau (Livros de Bordo)

Alexandra Lucas Coelho – Libano, Labirinto (Caminho)

Michel Eltchaninoff – Lenine Foi à Lua (Zigurate)

Roberto Calasso – O Cunho do Editor (Edições 70)

P-J Proudhon – Que é a Propriedade? (Edições 70)

(Em cima, intervenção sobre fotograma com Mário Cesariny)

 

 

 

quinta-feira, novembro 30, 2023

Leonardo Gandolfi

 


ESCALA RICHTER

    
    Samuel Butler
que verteu entre outros a Odisseia
para prosa tem uma tese curiosa.
Segundo ele, a mocinha
que dá guarida a Ulisses
quando está em maus lençóis
é na verdade o próprio Homero.
Cada linha sobre a volta para a casa do herói 
foi composta por ela
que participa da história como Nausícaa.
A filha do rei Alcínoo
e suas escravas lavando roupa.
Os panos secam enquanto elas tomam 
banho jogam bola cantam.
Agora porém ainda estão lanchando.
A coisa toda terminará
quando Ulisses surgir nu na praia
as meninas em roupa de banho correndo
menos Nausícaa.

    O caminho
que vai da princesa
a Homero tem pouco a ver
com autobiografia
biografia ou bobagens do tipo.
Como se sabe, isso é nada
ou tão só um desastre.
Butler, autor de The way of all flesh
e mentor de Chesterton, garante
o diabo é o detalhe.

    As aventuras de Nausícaa
e das suas coleguinhas escravas, distração
em tempos difíceis, tem chamado
minha atenção para tópicos realmente 
importantes como discrição e hospitalidade.
Acolher é tudo, ainda mais quando
não se espera nada em troca, diz nosso herói 
diante dos belos olhos da princesa.
Mas como o mundo não é feito apenas 
de dificuldades envolvendo autoria
a esperança é que esses dois tópicos 
me ajudem em alguns outros problemas, diz ele.

Leonardo Gandolfi, in Voo Rasante - Antologia de Poesia Contemporânea, Coordenação de Helena Vieira, Mariposa Azual, Lisboa, 2015, pp. 89-90.
Leonardo Gandolfi nasceu no Rio de Janeiro, em 1981. Tem publicado alguns livros de poesia no Brasil, ao mesmo tempo que tem exercido uma actividade de crítica literária especialmente sobre poetas portugueses (de Carlos de Oliveira a Adília Lopes), em revistas portuguesas e brasileiras.

segunda-feira, outubro 30, 2023

HELGA MORREIRA



Uma enorme perdição essa noite depondo rosas no teu peito.
Com mel me cobres, infindável.
Chegas do lado onde os pássaros rasgam
posturas irrecuperáveis, a boca quase chuva,
secretos instantes de muita brandura.

Deitas-te a meu lado, recolho-te num abraço,
és como uma anémona, tão de leve adormeces.

De claridade semeio esse perfil.
Uma folha, um gladíolo, sempre cobertos do teu nome

*

Era uma vagueza a sombra e um retalho no pôr-de-sol;
talvez não valha a espera essa espécie de música mulher
servidão ou rede de átomos;
será uma vantagem conhecer as perversões lunares, festividades
de orvalho, traições de inocentes lábios, o mistério álgido do mármore,
metonímicas seduções, outros lazeres.

Era um retrato pelo sol de rostos e sombra, lenta alquimia;
espreitas pelo óculo arestas de gaivotas, remotos signos,
devagar te acercas da luz.

A manhã que no rosto dispersa brevíssimos pássaros
havemos de encontrar.

in A Jovem Poesia Portuguesa/2, Limiar, Porto, 1985, pp. 45 e 49.
Helga Moreira nasceu em 1950, em Quadrazais, Sabugal (Guarda), Em 1978 publicou o seu primeiro livro de poemas, Cantos do Silêncio (edição de autor), a que se seguiram Fogo Suspenso (1980), Quem Vier do Sul (1983), Aromas (1985), Desrazões (2002) e Tumulto (2003), entre outros. Este ano, publicou na Tinta da China o volume A Arte de Perder, que reúne quase toda a sua poesia edita, acrescentada de alguns inéditos.






sábado, setembro 30, 2023

ESOPO

 

O VENTO E O SOL

    Uma vez o Vento e o Sol puseram-se a discutir sobre qual dos dois era mais forte. Como não chegavam a um consenso e vendo passar um viajante envolto num capote, ambos concordaram que o mais forte seria aquele que conseguisse fazer o homem despir o capote.
    O Vento foi o primeiro a testar a sua força. Começou a soprar com todo o vigor e lançou sobre o homem uma rajada de vento frio. Mas, quanto mais soprava, mais o viajante se embrulhava no seu capote.
    - Desisto! - disse o Vento. - Não há maneira de fazer este homem tirar o capote!
    - Não sei se será bem assim! - replicou o Sol. 
    Então, o Sol começou a brilhar com todo o seu esplendor e, aos poucos, foi aquecendo o viajante de tal forma que ele se viu obrigado a tirar o capote e o resto da roupa para se refrescar num riacho que passava por ali.

Mais vale engenho que força.

A GALINHA DOS OVOS DE OURO

    Numa manhã como tantas outras, um aldeão e a sua esposa descobriram que tinham um ovo de ouro no ninho onde as galinhas punham os ovos. A partir desse dia, sempre que iam recolher os ovos encontravam um de puro ouro! Trataram logo de descobrir qual era a galinha que lhes dava tanta alegria.
    - Esta galinha deve ter uma grande pepita de ouro dentro dela! - exclamou a mulher do aldeão.
    - Vamos matá-la para lhe podermos deitar a mão - sugeriu o aldeão.
    E assim fizeram. Mas, para surpresa de ambos, descobriram que a galinha era igual a todas as outras.
    Esperando tornar-se rico de uma só vez, o tolo casal de aldeões privou-se do lucro diário que tinha assegurado.

Quem tudo quer tudo perde.

A RAPOSA E O LEOPARDO

    Uma raposa e um leopardo estavam a discutir sobre qual dos dois era o mais bonito. O leopardo apressou-se a exibir orgulhosamente as várias pintas que lhe adornavam o corpo, mas a raposa interrompeu-o e disse:
    - Eu sou muito mais bonita do que tu porque a minha beleza não está no corpo, mas na mente.

Quem vê caras não vê corações.

(Esopo, Fábulas de Esopo (Uma Seleção), adaptação para a língua portuguesa de Alexandra Guimarães, Porto Editora, 2016/2021)


    

quinta-feira, agosto 31, 2023

NATÁLIA CORREIA

 


REBIS

Oh a mulher como é cõncava
de teclas ter no abdómen
de sua porção de seda
ser o curso do rio homem

como é mina espadanar de água
na cama abobadada de homem
gargalhada de lustre se sentada
dique de nuvens estar de dólmen!

Oh o homem como é ângulo
aberto de procurar
o sítio onde nasce o ouro
na salmoura da mulher mar

como é cúpula de copular
nadador de braçadas de mirto
como é nado de a nado formar
o quadrado da mulher círculo!

Oh os dois como se fundem
na praia-mar dos lençóis 
despidos como fogo e água
deus de dois ventres ferozes
e quatro anos de fava!

In Edoi Lelia Doura - Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, org. por Herberto Helder, Assírio & Alvim, 1985, p. 190.

Natália Correia nasceu em S. Miguel, Açores, há 100 anos (13.9.1923- 16.3.1993). Para além de poetisa de cariz surrealista, e também ficcionista, ficou conhecida pela sua actividade política, como deputada do PSD e, também, do PRD; pelo resistência boémia à ditadura do Estado Novo a partir do seu bar "Botequim", lugar de encontro de intelectuais, que manteve depois do 25 de Abril. Foi autora de um programa televisivo (Mátria), onde explanou as suas ideias de Pátria, Mátria e Fátria. Em 1966 foi condenada a 3 anos de prisão, com pena suspensa, pela organização de uma Antologia da Poesia Erótica e Satírica. Em 1973 organizou uma singular antologia sobre O Surrealismo na Poesia Portuguesa (2ª edição, frenesi, 2002), com comentários teóricos. Há, em Natália Correia, uma pensadora - do surrealismo, da mulher - que tem sido esquecida.  

segunda-feira, julho 31, 2023

ESTUPIDEZ NATURAL

 


1, Em fevereiro de 2020 a peste sob a forma de um vírus a que chamaram covid, aparece na Europa; em fevereiro de 2022 a Rússia invade a Ucrânia, é o início de uma guerra que na realidade opõe o ocidente à Rússia, mas de certa forma, também à China, numa nova ordem mundial cuja natureza última estamos longe de vislumbrar; em fevereiro deste ano os meios de comunicação social começam a falar de uma nova forma de inteligência artificial (IA), criada pela empresa Openai, que interage com qualquer utilizador que aceda a este serviço que numa primeira fase foi gratuito. É o famoso Chat GPT (na versão 3.5 de acesso livre, a versão 4 tem que ser paga). O mundo já muitas vezes passou por pestes seguidas de guerras e vice-versa, mas nunca por uma máquina que simule (?) a inteligência, a fala humana. A IA, para uns um perigo para a humanidade, para outros uma oportunidade na resolução de problemas que afectam os humanos, desde a solução para algumas doenças até problemas como as alterações climáticas, era como um gato escondido com o rabo de fora. Na realidade pouco ou quase nada se falava dela, mas dos algoritmos existentes nos smartphones, que partem do princípio de que se  a pessoa A gosta da música X também vai gostar de Z e W (este princípio usado pelo Spotify ou YouTube é também válido para muitas outras aplicações). 

2, O mundo de cada humano passou para um pequeno smartphone (literalmente telefone inteligente) que nos acompanha para todo o lado e onde temos todos os nossos contactos, cada vez mais virtuais, bem como fotografias e outros documentos. E estamos presos e enredados nesse micro-computador de bolso sem o qual a vida hoje é difícil de ser vivida. É uma vida cada vez mais virtual, mas também é a forma como, cada vez mais interagimos com o outro, com a possibilidade de uma alteridade. Torna-se assim num paradoxo: agimos com mais pessoas e de forma mais fácil, mas essa acção já não é uma presença, é mediada por uma tecnologia que nos representa. A internet transformou-se de uma utopia comunicacional em algo que deu um enorme poder a quatro ou cinco empresas que podem ameaçar a nossa liberdade. A inteligência artificial é um dos mecanismos que mal-usados nos pode tornar escravos numa distopia.

3, Se durante quase duas décadas o Google foi o principal motor de busca de conteúdos na internet, com o Chat GPT isso pareceu alterar-se (a propósito recomendo o Duck Duck Go ao google). Já não se tratava de apresentar sites (a maioria pagos) mas de fazer uma pergunta a um sistema de IA. Ora, na versão 3.5, o chat GPT revelou-se pouco fidedigno. Quanto não tinha uma resposta inventava, o que os especialistas em IA chamaram, muito humanamente "alucinar". Isso quer dizer que, pelo menos na versão 3.5, o chat GPT mostrou-se menos fiável do que a Wikipédia, cujos artigos estão cheios de erros - humanos. E, de facto, a internet é uma rede cheia de informações falsas, duvidosas, inexactas, que as redes sociais expuseram ao limite. Ora, o chat GPT pretende ter toda a informação que circula online (além de uma montanha de livros que "leu"), o que equivale a ter bastante informação falsa. Então como vamos confiar na informação que nos é "dada" por uma inteligência artificial?

4, Outro problema que o aparecimento destes sistemas de IA coloca, é a criação artística. Para já a actual IA parece estar na sua infância, mas isso não impede alguma criatividade, precisamente uma criatividade ao nível infantil. O Chat GPT é bom a criar histórias para crianças, porque razão uma editora de livros infantis não poderá substituir os seus escritores de livros infantis pela inteligência artificial? E quando o a IA for capaz de escrever romances? Será que um dia um programa de IA irá escrever algo superior à capacidade criativa de um Joyce, um Proust, um Kafka, um Pessoa? E na pintura, na música, no cinema, na fotografia. Para já há experiências de jornais feitos por IA. A Inteligência artificial não é só uma ameaça a tarefas rotineiras, é uma ameaça também à Arte, aos artistas, e portanto aos humanos.

5, Numa carta aberta subscrita entre outros pelo criador da Openai e do Chat GPT, Sam Altman, e por um engenheiro da Google, percursor dos sistemas de IA apelava-se para uma regulamentação a nível governamental da IA. Caso isso não fosse feito poderíamos estar perante algo, tão catastrófico como a extinção da humanidade. A carta não foi tomada em conta pelos governos, e note-se que foi escrita e subscrita pelos criadores da IA. Antes, governos como o português, no âmbito do que chama "transição digital", já anunciou que as chamadas para o 112, a partir de 2025, serão atendidas por um sistema de IA.

6, Vivemos um tempo de ameaças e de aceleração técnica como nunca antes a humanidade tinha vivido. A IA é mais uma dessas ameaças, mas também nos pode ajudar a resolver vários problemas. Em rigor, não se sabe até que ponto a IA está desenvolvida, mas não é difícil imaginar até onde ela se pode desenvolver: até governar ou escravizar os humanos. Ou então, até uma fusão com os humanos (transhumanismo, cyborgs). Por isso é necessário tornar esta uma questão política premente. Mas os partidos políticos, os governos, a UE, parecem quererem ignorar o que se passa. A ameaça – mas também as suas possibilidades – ficam a pairar perante uma classe política e uma humanidade estúpida.

 


sexta-feira, junho 30, 2023

FRANZ KAFKA



 REFEEIÇÃO

    Quando eu encontro uma rapariga bonita e lhe rogo: «Tenha a gentileza de me acompanhar» e ela passa por mim sem uma palavra, é isto que ela me quer dizer:
    «Você não é nenhum Duque famoso, nenhum americano com perfil e pose de índio, de olhos fundos e misteriosos e uma pele temperada pelo ar das planícies e dos rios que nelas passam, não chegou aos sete mares nem nunca por eles navegou, onde quer que eles se encontrem, que eu não sei. Diga-me lá então porque é que uma rapariga bonita como eu haveria de ir com o senhor?»
    «Parece esquecer que nenhum automóvel a passeia em grandes voltas pela cidade; não vejo nenhum cavalheiro a rodar à sua volta, comprimindo por detrás a sua saia e murmurando-lhe benções ao ouvido; tem os seios bem seguros no corpete, mas suas coxas e ancas parecem compensar este aperto; tráz um vestido de tafetá, com uma saia plissada, que causou grande furor no Outono passado, e todavia ri-se - de tempos a tempos - atraindo o olhar do mundo.
    «Sim, temos ambos razão, mas para não sermos forçados a reconhecer o facto, não seria melhor seguirmos cada um para sua casa?»

in Contos de Franz Kafka, Cavalo de Ferro / Grande Reportagem, col. Nova Europa, Trad, de Nuno Batalha e Hugo Gomes, Lisboa, 2004, p. 147

quarta-feira, maio 31, 2023

FERNANDA BOTELHO

 


AS COORDENADAS LÍRICAS 

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.

A geométrica forma dos meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
- as minhas coordenadas.   

domingo, abril 30, 2023

Fernando Esquio

 


Vaiamos, irmana, vaiamos dormir
nas ribas do lago u eu andar vi
    a las aves meu amigo.

Vaiamos, irmana, vaiamos folgar
nas ribas do lago u eu vi andar
    a las aves meu amigo.

En nas ribas do lago u eu andar vi
seu arco nas maão as aves ferir
    a las aves meu amigo.

En nas ribas do lago u eu vi andar
seu arco na mano a las aves tirar
    a las aves meu amigo.

Seu arco na mano as aves ferir
e las que cantavam leixá-las guarir,
    a las aves, meu amigo.

Seu arco na mano a las aves tirar
e las que cantavam nom nas quer matar,
    a las aves, meu amigo.

In Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim/ Porto 2001, p. 735
Fernando Esquio foi um trovador galego, de quem se conservam nove composições: quatro cantigas de amigo, duas cantigas de amor e 3 cantigas de escárnio e mal-dizer. Terá vivido entre finais do século XIII e inícios do século XIV.