1, 2023 foi
o ano em que o Ministério Público (MP) levou à demissão do governo de António
Costa. Depois do ano ter começado com uma série de casos & casinhos que
envolviam membros do governo, o golpe final foi dado em Novembro, quando a
polícia entrou na residência oficial do primeiro-ministro e um comunicado do MP
colocava Costa como suspeito. O primeiro-ministro demitiu-se nesse mesmo dia.
Um mês antes, no Médio Oriente, o Hamas, num ataque terrorista, matava cerca de
mil israelitas e fazia mais de 200 reféns. A resposta do governo de Benjamin
Netanyahu foi uma acção de guerra que até agora fez mais vinte mil mortos
palestinianos, na Faixa de Gaza, a maioria deles civis, e parece avançar com
intenções de extermínio dos palestinianos.
Mas, no
início do ano, algo de novo aparecia no reino da tecnologia em que estamos cada
vez mais imersos: o Chat GPT. Concebido pela empresa OpenAi, o Chat GPT, e os
modelos que lhe seguiram por parte da concorrência, o Chat Bing (Microsoft) e o
Chat Bard (Google), permitem pela primeira vez uma interacção conversacional
com um mecanismo de inteligência Artificial (IA). Embora já estivesse presente
nos dispositivos electrónicos, nomeadamente nos smarphones, embora a
investigação em IA tenha décadas, nunca a IA se apresentou assim perante os
humanos: como um chatbot com o qual é possível “falar” (teclar), a quem é
possível colocar questões, dúvidas ou pedir para criar algo. Tratando-se de um
modelo de linguagem estatístico, o Chat GPT assume uma aura de uma entidade com
uma sabedoria que não tem – ainda. A inteligência artificial apareceu como uma
ameaça, a juntar a outras como a crise climática e as guerras (na Ucrânia e
entre Israel e o Hamas), o que levou, paradoxalmente, alguns dos investigadores
em IA a escreverem uma carta onde pediam uma desaceleração na investigação em
IA. Vive-se assim entre o desejo que a IA resolva os problemas da humanidade, e
o receio que se torne tão ou mais inteligente que os humanos. O certo é que
ainda imberbe, a IA aparece como uma ameaça também ao mundo da criação
literária. A greve dos argumentistas em Hollywood, que durou cerca de cinco
meses, foi causada entre outros factores pela utilização da IA, num claro e
primeiro efeito da IA no mundo da criação literária e artística. Os modelos
como o Chat GPT têm já a capacidade de escreverem histórias infantis que podem
rivalizar com as escritas por escritores humanos. Por altura do aparecimento do
Chat GPT a Amazon foi inundada de livros para a infância. Vivemos, assim, num
certo meio literário, já condicionado pela inteligência artificial. E o
restante mundo editorial (tradutores, revisores, gráficos, etc) poderá ser
afectado pela IA.
Num artigo
publicado no El País, a escritora e activista Naomi Klein acusava a IA de
“grande roubo” a todo o conhecimento humano, tendo o jornal The New York Times
materializado essa opinião ao recentemente processar a Microsoft e a OpenAI por
violação de direitos de autor. O filósofo José Gil, num ensaio publicado no
Público (3-12-23) prevê um cenário distópico: “as obras de arte algoritmizadas
serão saudadas como exemplos singulares de criação e engenho das máquinas
inteligentes. Os romances, as traduções, os objectos de arte, as composições
musicais resplenderão de originalidade inigualável. Produtos de uma enorme
complexidade – nós seremos mais simples e pequenos, pobres e felizes.”
2, De três
importantes escritores e poetas se comemoraram em 2023 o centenário de
nascimento: Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e Natália Correia. Eugénio de
Andrade (1923-2005), foi um dos principais poetas portugueses da segunda metade
do século XX. A sua poesia imbuída de um Eros clássico, principalmente nas
primeiras obras, teve ao longo de décadas uma excelente recepção entre os
leitores. Treze anos depois do seu desaparecimento, importava averiguar o valor
que esta poesia mantém no cânone – universitário, crítico, entre pares e junto
dos leitores. Certo é que neste ano de centenário apenas um livro de Eugénio de
Andrade foi publico – Aquela Nuvem e Outras (Porto Editora), um livro para
crianças. Embora a Assírio & Alvim tenha vindo desde 2012 a publicar
individualmente cada um dos livros de Eugénio de Andrade, e já tenha em 2017
publicado a poesia reunida do poeta que nasceu no Fundão e viveu no Porto, e em
2022 a prosa reunida, pouco se notou, a nível de iniciativas, o centenário do
autor de As Mãos e os Frutos. Quer isto dizer que Eugénio de Andrade caiu num
certo esquecimento, ou talvez num desgaste.
Num sentido
contrário podemos falar da obra poética, e não só, de Mário Cesariny. O nome de
Cesariny liga-se umbilicalmente ao surrealismo português (juntamente com
Alexandre O`Neill e António Maria Lisboa, mas também Mário-Henrique Leiria ou
Manuel de Lima), de que foi o criador e teórico (veja-se Textos de Afirmação e
de Combate do Movimento Surrealista). Mas a sua poesia maior pode ser resumida
a quatro ou cinco poemas que estarão entre os melhores poemas da lírica
portuguesa. Mário Cesariny praticou a insubmissão como forma de vida. E essa
atitude terá levado a um propositado esquecimento da sua obra que foi
recuperada no final da sua vida e nos últimos anos. Daí que ao Cesariny poeta
se tenha recuperado o Cesariny artista plástico. A edição da antologia Poesia
de Mário Cesariny, e do projecto datado de 1977 de uma heterodoxa antologia de
poesia, cujo título Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (ambas organizadas
por Fernando Cabral Martins para a Assírio & Alvim) é já em si sintomático
da rebeldia de Cesariny, mas também do acolhimento que a sua obra tem tido.
No caso de Natália Correia, não podemos falar apenas de uma escritora e poeta. É, para além disso, a sua biografia que a vai impor como uma figura pública: deputada à Assembleia da República pelo PSD e depois pelo PRD, mas também pelo programa televisivo Mátria, que Natália Correia se torna conhecida do grande público, já depois do 25 de Abril. Mas, num outro círculo, mais restrito, Natália Correia vai afirmar-se, ainda durante o Estado Novo, como anfitriã e dona de um bar em Lisboa – o Botequim – que procurava ser um espaço de liberdade dentro da ditadura. Na sua actividade de escrita foi romancista, dramaturga, poeta, ensaísta, diarista, organizadora de antologias. Uma dessas antologias, Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965, primeira edição) valeu-lhe uma condenação de três anos com pena suspensa; foi ainda processada por ser a responsável editorial do livro Novas Cartas Portuguesas (1973). A sua escrita andou pelos caminhos do surrealismo, e com Mário Cesariny partilhou além da rebeldia e insubmissão, a amizade e admiração.
3, No que
respeita aos livros publicados em 2023, apresento uma lista abaixo, que é uma
selecção, lacunar, do que foi publicado. A maior parte recebeu alguma atenção
por parte da escassa crítica literária ainda existente (Expresso, Público, JL,
pouco mais), outros livros foram ignorados por essa mesma crítica.
Da lista saliente-se,
na poesia, uma nova edição da Poesia de Luiza Neto Jorge, revista e aumentada,
que vai buscar poemas que a poeta não integrou na reunião da sua poesia em Os
Sítios Sitiados (1973), mas estavam em outros livros anteriores; a edição pela
primeira vez em português de um autor italo-argentino, Antonio Porchia, mestre
no aforismo de forte tonalidade poética, ou no poema disfarçado de aforismo,
que foi publicando ao longo dos anos na suas Vozes (Voces). A publicação da
obra completa de um poeta mais conhecido como letrista de fados, Pedro Homem de
Mello; e também das obras completas de dois autores muito distantes entre si,
não só no tempo: o clássico Horácio, e o recente Roberto Bolaño. Ainda obras
completas, ou completas até à data: Rita Taborda Duarte, Helga Moreira, Maria
da Graça Varella Cid e Ernesto Sampaio, de quem a Maldoror e Língua Morta
reuniram em cerca de 400 páginas os poemas e textos em prosa.
Na ficção,
no ano que o Nobel da literatura foi para o romancista e dramaturgo norueguês
Jon Fosse, os autores portugueses mais conceituados pouco ou nada publicaram
(com excepção de Gonçalo M. Tavares, sempre prolifico). Destaque-se o trabalho
editorial da E-Primatur que este ano publicou a tradução na integra de Gargântua
& Pantagruel de François Rabelais.
No ensaio,
destaque-se a reunião da obra ensaística sobre poesia de Joaquim Manuel Magalhães,
num grosso volume de quase 1200 páginas, que colige os seus três livros de
ensaios e acrescenta inéditos – pelo menos em livro –, assinado com o pseudónimo,
ou heterónimo, de António Maria António Pedro. Joaquim Manuel Magalhães é sem
dúvida um dos mais lúcidos leitores da poesia portuguesa, e não só. Ainda no
ensaio sobre literatura Joana Matos Frias publicou Oscilações (Documenta) e
Joana Emídio Marques Notícias do Bloqueio (Língua Morta). A Relógio d` Água
publicou mais um ensaio do filósofo Byung Chul Han, desta vez sobre A Vida Contemplativa,
mas nesta editora também se publicaram os Ensaios de Robert Musil, e um livro
que denúncia os mecanismos tecnológicos de vigilância da ditadura chinesa:
Estado de Vigilância de Josh Chin e Liza Lin. Também na linha da crítica das novas
tecnologias ao serviço do poder, de Jonathan Crary a Antígona traduziu Terra
Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista. E, entre muitos outros
livros destaque ainda para um clássico do pensamento anarquista, Que é a
Propriedade? de Proudhon nas Edições 70.
POESIA
Mário
Cesariny – Antologia (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)
Mário Cesariny
– Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (Assírio & Alvim, org. Fernando
Cabral Martins)
António
Porchia – Vozes (Língua Morta, trad. Nuno Azevedo)
Luiza Neto
Jorge – Poesia (ed. Revista e aumentada por Fernando Cabral Martins e Manuele
Masini, Assírio & Alvim)
Adília Lopes
– Choupos (Assírio & Alvim)
Pedro Homem
de Mello – Poemas 1934-1961 (Assírio & Alvim, ed. Luís Manuel Gaspar)
Horácio –
Poesia Completa (Quetzal, trad. Frederico Lourenço)
Roberto
Bolaño – Poesia Completa (Quetzal, trad. Carlos Vaz Marquez)
Rosa Maria
Martelo – Desenhar no Escuro (Averno)
Margarida
Vale de Gato – Mulher ao Mar e Corsárias (Mariposa Azual)
Helga
Moreira – A Arte de Perder (Tinta da China)
Amadeu
Baptista – Danos Patrimoniais. Antologia pessoal 1982-2022 (Afrontamento)
Alberto Pimenta – They` II Never Be the Same (Edições Saguão)
Cesare
Pavese – Trabalhar Cansa (Penguin Clássicos, trad. Vasco Gato)
Fernando
Guerreiro – Metal de Fusão (Black Sun Editores / 100 Cabeças)
José Amaro
Dionisio, Helder Moura Pereira. Fátima Maldonado, F. Cabral Martins –
Imperfeição (não) edições
Rita Taborda
Duarte – Não Desfazendo (Imprensa Nacional)
Ernesto
Sampaio – Luz Central (Maldoror/Língua Morta)
Maria
da Graça Varella Cid – Poesia Incompleta (Tigre de Papel)
FICÇÃO
François
Rabelais – Gargântua & Pantagruel (E- Primatur)
Gustave
Flaubert – A Tentação de Santo Antão (Minotauro)
William S.
Burroughs – Almoço Nu (Minotauro)
Rui Nunes –
Neve, Cão e Lava (Relógio D` Água)
Gonçalo M.
Tavares – As Botas de Mussolini (Relógio d` Água)
Gonçalo M.
Tavares – Breves Notas sobre o Oriente (Relógio d` Água)
Joseph
Conrad – Plantador de Malata (Sistema Solar)
Hélia
Correia – Certas Raízes (Relógio D` Água)
Horace
Walpole – Contos Hieroglíficos (Antígona)
Monteiro
Lobato – Reinações de Narizinho (Tinta da China)
NÃO – FICÇÃO
Joaquim
Manuel Magalhães – Poesia Portuguesa Contemporânea (Bestiário)
Byung
Chul Han –
Vida Contemplativa (Relógio d´Água)
Jonathan
Crary – Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista (Antígona)
Joana Matos
Frias – Oscilações (Ducumenta)
Josh
Chin e Liza Lin – Estado de Vigilância (Relógio d´Água)
Robert Musil
– Ensaios (Relógio d´ Água)
Joana Emídio
Marques – Notícias do Bloqueio (Língua Morta)
Salvador
Dali – Diário de um Génio (Sr. Teste)
Ian F.
Svenonius – Contra a Palavra Escrita (Chili com carne)
Maria
Filomena Mónica – Os Livros da Minha Vida (Relógio d´Água)
António
Castro Caeiro – O que é a Filosofia? (Tinta da China)
João
Barrento – Aparas dos Dias (Companhia das Ilhas)
Furio Jesi - Cultura de Direita (Edições 70)
Simon Sebag
Montefiore – Mundo (Crítica)
António
Vieira – Entrevista (Companhia das Ilhas)
Diogo Ramada
Curto – Um País em Bicos de Pés (Edições 70)
José Gil –
Morte e Democracia (Relógio d´Água)
Camilo
Pessanha – China e Macau (Livros de Bordo)
Alexandra
Lucas Coelho – Libano, Labirinto (Caminho)
Michel
Eltchaninoff – Lenine Foi à Lua (Zigurate)
Roberto
Calasso – O Cunho do Editor (Edições 70)
P-J
Proudhon – Que é a Propriedade? (Edições 70)
(Em cima, intervenção sobre fotograma com Mário Cesariny)
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