terça-feira, novembro 30, 2010

FERNANDO PESSOA


A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes de aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.
(…)
Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, mas não sofro o impulso próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2009, p. 190.

Na foto Fernando Pessoa e Aleister Crowley a jogar xadrez. Foto retirada do jornal inglês The Independent

Nota:No dia que fazia 75 anos sobre a sua morte (30 de Novembro de 1935), Fernando Pessoa foi ignorado, tanto pela blogosfera como pelos média tradicionais. O único jornal, de que tive conhecimento, que dedicou espaço a esta data foi... o Jornal de Notícias. Eduardo Lourenço, num depoimento a esse jornal, esclarece a situação em que se encontra Pessoa em Portugal: "(...) Fernando Pessoa é mais vivido por públicos estrangeiros do que aqui, em Portugal. Os Portugueses cansam-se facilmente de tudo, como, aliás, o próprio Pessoa verificou quando disse sermos um povo que nasceu cansado". Que os investigadores da obra pessoana sejam cada vez mais estrangeiros, só confirma este diagnóstico. Mas, sobretudo, realça o quanto Pessoa foi e é mal-amado em Portugal.

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