Há entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando
Pessoa mais que uma amizade. Sá-Carneiro poderá ter sido prejudicado por essa
pequena multidão de gente que habitava a mente e o génio de Pessoa. Demasiado ofuscante
para toda a poesia que viria depois, Mário de Sá-Carneiro terá sido a primeira “vítima”
de Pessoa. Sá-Carneiro foi quase um heterónimo de Pessoa. Mas, por outro lado,
Pessoa foi o duplo de Sá-Carneiro, a alteridade em que se funda a poesia
moderna, pelo menos desde Rimbaud (o outro, “Aqueloutro”).
E, no entanto, há um caso Mário de
Sá-Carneiro na literatura portuguesa que tem sido sombreado pela imensa
complexidade – em todos os sentidos – do caso Pessoa. E Sá-Carneiro, de mais
breve vida, de obra publicada em vida e com poucos inéditos, não deixa de ser
um caso único na unicidade da sua obra a que se liga um ou outro biografema,
quando não se tenta fazer uma interpretação da obra pela biografia ou
vice-versa. A orfandade materna, o dinheiro, os cafés, Paris… e o suicídio, a
26 de Abril de 1916, que parece ter sido uma encenação para um espectador –
João Araújo.
Mas para além de tudo isto, há uma obra de
extrema riqueza, quer a nível poético quer ficcional. É essa obra, escassa, que
tem vindo a ser descurada, talvez em proveito de um mito que o jovem suicida alimenta.
Ou, simplesmente a literatura de Mário de Sá-Carneiro, hoje, cem anos após o
seu suicídio, ainda não foi entendida. Como defendem vários especialistas na
obra do “esfinge gorda” na edição de hoje do Público (pp. 24-25), terá sido
Sá-Carneiro a abrir caminhos para a obra pessoana. Repare-se num poema como
Manucure (datado de Maio de 1915), “semifuturista” mas algo de único na
literatura portuguesa, na sua ligação às vanguardas de princípios de século. E
algo de único também entre o barroco e a poesia experimental. É claro que a
literatura, nem a sociedade, portuguesa estava preparada para ter um Mário de
Sá-Carneiro – e provavelmente ainda não está. Mário de Sá-Carneiro sabia que
escrevia para o futuro, o que espanta é como esse futuro tem andado alheado
desta escrita. Será porque ainda não a compreendeu?
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