1, Estava uma turma de Português do 12º ano,
a ouvir uma medíocre versão dita por alguém no you tube do poema "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, quando alguém repara que ao texto impresso
no manual da Porto Editora faltam três versos. Fantásticos estes alunos que
mereciam um 20 por tal descoberta: a de que o manual da Porto Editora, de
autoria de Noémia Jorge, Cecília Aguiar e Miguel Magalhães censurava três
versos de um dos poemas mais importantes do modernismo português. Falavam esses
versos de putas e de pedofilia: “automóveis apinhados de pândegos e de putas”
(verso 153) e “E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.” O verso 153 não se
percebe muito bem o porquê da censura – será que tem que ver com esta
predominância de movimentos feministas? Quanto aos outros dois versos,
percebe-se que hoje sejam mais censuráveis que há cerca de 100 anos quando
foram publicados em Orpheu. Se Pessoa fosse vivo, e por algum azar um
jornalista ou delegado do MP lhe caísse em cima (passe a metáfora), qual não
seria a reacção da turbamalta? Ainda bem que a poesia é coisa de duas centenas
de pessoas, como já o era no tempo de Pessoa-Campos. Mas, mesmo assim, poder-se-á
dar razão aos autores do manual em ter censurado estes 2 versos, não vá
qualquer furor adolescente lê-los em sagrada família, com um membro a exigir
digitalmente a pena de morte para o poeta, enquanto o outro defende a tortura
do membro viril cortado em fatias (um aparte para dizer que nada disto é da
minha imaginação, antes reproduzo dois comentários ouvidos num café depois da
passagem de uma reportagem da TVI sobre pedofilia).
2, Este caricato episódio, poderia servir
para a discussão do programa de literatura portuguesa nas escolas. Ainda há
alguns meses, se discutia sobre a importância d’ Os Maias nos currículos e da
necessidade da sua leitura integral. Assim como Os Maias, o programa de
português inclui uma série de obras que sendo clássicos da literatura
portuguesa, nada dizem aos estudantes do básico e secundário. A maior parte dos
alunos limita-se a estudar os apontamentos das aulas ou a ler os resumos que –
ainda creio existirem – da Europa-América, ou então a enveredar por um caminho
mais perigoso: o da wikipédia. Quanto aos alunos que vivem na ilusão de trabalhar para ter médias que lhes permitam o
acesso a um curso que lhes vai garantir o futuro – como se isso existisse hoje
–, talvez por obrigação tentem ler as obras do programa. Mas sejamos claros:
nada disto serve a literatura. A Escola não tem uma poção mágica que faça os
alunos ter prazer por ler. Pelo contrário, a escola é a primeira instituição
repressora do sujeito. E nessa repressão está o gosto pela leitura – não só
pela literatura, mas por toda a espécie de texto, da filosofia à divulgação de
biologia ou física. Quando existe algum gosto pela leitura do texto literário
em adolescentes, ele não se compadece com um cânone que vai do Cancioneiro,
passando por Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo,
e a obrigatoriedade de ler Eça (Os Maias substituídos por A Ilustre Casa de
Ramirez) e Saramago (Memorial do Convento substituído por O Ano da Morte de
Ricardo Reis). Todo este cânone é em si discutível, feito de textos mortos, no
sentido que apresentam uma mentalidade que nada tem a ver com os nossos dias,
ignorando os autores contemporâneos, e mesmo em alguns casos depreciando
autores como Camilo Castelo Branco em favor de Eça de Queirós, algo a que não é
indiferente o pobre centralismo lexical lisboeta. Mas ainda sobre este
programa, deve-se dizer que ele é tão só História da Literatura, que ignora os
grandes escritores e poetas que o século XX – e alguns já de inícios deste
século – nos deu e dá. Se querem que adolescentes se interessem pela
literatura, porque não começar por apresentar textos de Adília Lopes, Alberto
Pimenta, ou mesmo Rui Manuel Amaral ou A. Dasilva O. de quem o “clássico”
Peidinhos circulava há anos em fotocópias entre alunos? E aqui voltamos à
censura, à hierárquica posição pedagógica, que mesmo entre os clássicos censura
Bocage. Esta escola é demasiado estúpida, anquilosada, feita na generalidade de
professores medíocres, ensinando que a alegria é um engano do corpo (o que até
condiz com certa poesia que se faz, essa que tal como a escola, fecha as
janelas a obras demasiado solares como as de Sophia ou Eugénio de Andrade). Resumindo
a questão: ao impor um cânone que nada diz aos alunos do básico e secundário, a
escola opta por liquidar qualquer interesse que os alunos pudessem ter pelo
texto literário (com algumas e minoritárias excepções); em contrapartida, pode
(a escola) imaginar que obriga os alunos a ter conhecimento de um cânone
literário. Ou seja, opta-se por liquidar potenciais leitores, por liquidar o
prazer da leitura (não estivesse ele já a ser liquidado por uma sociedade
digital e iconográfica), em nome de uma memória do passado soterrada depois do
último exame. Ou, como escreveu Joaquim Manuel Magalhães, “Que sentido houve
para o que aprendeste? / Peidos com cheiro a rosa, foi o que foi.” (Os Dias,
Pequenos Charcos; Presença, 1981).
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