Um dia alguém me disse que "Otelo foi otário". Uma aliteração perfeita como imperfeito foi o percurso militar e político de Otelo Saraiva de Carvalho. Ele foi "o libertador da pátria" - era Francisco Sousa Tavares que no dia 25 de Abril de 1974, em cima de uma guarita, com um megafone na mão, junto ao Quartel do Carmo, sitiado pelas forças comandadas por Salgueiro Maia, e cheio de povo, discursava: "é a libertação da pátria..." Por trás das operações no terreno, que derrubaram uma ditadura de 48 anos, estava Otelo Saraiva de Carvalho. Ele era o encenador dessa peça que derrubou o regime do Estado Novo. Foi o grande dia colectivo do século XX português, esse dia "inicial inteiro e limpo". É claro que para outros, uma minoria, naquele fim de Abril de 1974, ecoavam os versos de T S Eliot ("Abril, o mais cruel dos meses"). Mas sendo o 25 de Abril uma revolução quase pacífica, as semanas e meses - e mesmo anos - que se lhe seguiram, não o foram. E Otelo, o desencadeador da revolução não entregou armas nem poder. O militar que queria ser actor, tinha um sonho, uma utopia que em nada se coadunava com a época de guerra fria que vivíamos, ou mesmo com o Portugal católico e profano. Mas perseguiu essa utopia durante anos, como mantendo sempre acesa a chama do "seu" 25 de Abril.
Depois do 25 de Abril, o MFA criou o COPCON, uma espécie de força militarizada para manter a ordem revolucionária no país, e Otelo foi o seu comandante. Os tempos foram conturbados, até, pelo menos, o fim do PREC, a 25 de Novembro de 1975. O país caminhava para o socialismo pela mão do MFA, ou para o comunismo pela mão de Cunhal e do PCP, denunciado por Mário Soares e pelos partidos à direita do PS. O país caminhava para uma guerra civil, aventavam outros de dentro do seu medo. Otelo Saraiva de Carvalho, já general, já brigadeiro, profere uma frase que mais tarde seria explosiva: fala em meter a "reacção" no campo pequeno e fuzilá-los; dirá mais tarde que era uma atitude defensiva. No dia 25 de Novembro Otelo vai para casa, cansado. Mas terá sido a sua destituição como Comandante da Região Militar de Lisboa, que levou as tropas do RALIS a fazer uma intentona de golpe de Estado, gorado. Com o 25 de Novembro Otelo é preso - pela primeira vez. Dá-se uma normalização no sentido de uma democracia representativa, com eleições legislativas, presidenciais e regionais em 1976. Mas Otelo não desiste e candidata-se às eleições Presidenciais de 1976, obtendo o segundo lugar, com 16,4 por cento, bastante longe dos 61,5 do seu amigo Ramalho Eanes, mas humilhando o candidato do PCP, Octávio Pato, para o quarto lugar com 7,5 por cento. A persistência de Otelo Saraiva de Carvalho fá-lo concorrer às segundas eleições presidenciais em liberdade, em Dezembro de 1980. Polarizadas pelo candidato da AD, Soares Carneiro, que concorre contra Ramalho Eanes, estes dois candidatos vão disputar entre si quase todos os votos: 56,4 para Eanes e 40,2 para Soares Carneiro, ou seja, os dois candidatos obtém 96,6 por cento dos votos. Mesmo assim, Otelo obtém o terceiro lugar com perto de 86 mil votos. Em Março de 1980, Otelo cria a FUP (Frente de Unidade Popular, uma união de partidos de extrema-esquerda), partido que nunca vai chegar a concorrer a eleições. Este partido vai estar ligado à organização terrorista FP-25, que durante os anos oitenta assassina 17 pessoas, entre as quais o director dos serviços prisionais, Gaspar Castelo Branco. Otelo é detido em 1984, acusado de pertencer às FP- 25. Depois de cinco anos na prisão, é amnistiado pelo então presidente da República, Mário Soares.
A ligação de Otelo às FP-25 sempre foi negada pelo próprio. No entanto, a sua condenação, embora não por crimes de sangue, caiu como uma mancha sobre o estratega do 25 de Abril, sendo mediaticamente substituído na condição de herói da revolução dos cravos por Salgueiro Maia, o operacional que esteve no cerco ao Quartel do Carmo. Salgueiro Maia, para além da coragem física que demonstrou, cumpriu as ordens de Otelo e abandonou a cena política. De forma diferente, Otelo Saraiva de Carvalho, engendrou o 25 de Abril, mas foi sempre, quer como comandante do COPCON, quer como candidato a duas eleições presidenciais, quer como alegado membro das FP- 25, o revolucionário que procurou concretizar o seu projecto utópico que passava por uma democracia directa. Foi sempre um revolucionário permanente; tomou para si o 25 de Abril, ao contrário de Salgueiro Maia, e foi, como na célebre frase de Beckett, de falhanço em falhanço, falhando cada vez melhor. Foi o primeiro e o último a abandonar o espírito que desenhou para o 25 de Abril.
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