quarta-feira, novembro 30, 2022

ISABEL DE SÁ

 


    O abismo iluminado voltou, era cerca de meio-dia. Ia-me tragando por completo, avançando-me no rosto, nas olheiras, no plano altamente claro da fronte, no tempo.
    E então vê-se que somos uma parte de nos não revelada.
    O que existe ali
    não é uma espécie de expressão, é a expressão. Única. Gelada.

(de Esquizo Frenia, 1979)

O braço dela descansou no meu tronco enquanto o rosto dormia na minha virilha. Luz pesada fazia de lençol para abrigo de corpos exaustos. As palavras. As palavras corriam pelas pernas, pelo dorso até à nuca. Eram palavras brancas desenhadas a pincel escorrendo tinta. Ainda.

(de O Festim das Serpentes Novas, RP p. 51)


[...]

    Podemos pensar no escritor que nunca escreveu um livro, aprender com a obscuridade exemplar da sua vida. A recusa a escrever livros, fazendo convergir toda a energia na procura da unidade absoluta, fez dele um ser excepcional. 
(de Escrevo Para Desistir, 1986, RP p. 203)

    Eu ela e a escrita existimos desde o princípio. A escrita forma-se em mim, passa por ela e volta à minha pele num jogo sensual e íntimo. É um ser maleável aos gestos que executamos, vive e morre com os nossos impulsos. Quando se ausenta deixa sinais. Faz-nos confidências da sua vida errante, elabora sentimentos que não esperávamos que tivesse quando junta ao nosso, o seu instinto criativo. Assim, utilizo agora palavras que nunca pensei vir a escrever. Aceito-as porque as sei da espécie de personagem que habita connosco, conivente com os erros que cometemos.
    Quando adolescente, passava o tempo a ler o dicionário, apercebendo-me da corrosão de algumas palavras, do seu poder destrutivo. Noutras havia sombra e um peso monstruoso. E as que ao tempo foram luminosas, irradiavam um brilho que se colou aos meus dedos. Eu gastava os dias a limpar-me dessa luz até não haver em mim resíduos de leitura. Descobria o esquecimento, onde o poema veio a ser abismo, outra vida onde o sorriso da morte teve muita importância. Amei a imperfeição do ser humano. Revisitei a infância e aquilo que em nós é real. Não soube prescindir da beleza.

(de Escrevo Para Desistir, 1986, RP p. 206)  



Isabel de Sá nasceu em Esmoriz (1951). Cursou Belas-Artes na FBAUP, sendo professora do ensino secundário e pintora (actividade que não pode ser desligada da sua poesia). Como poeta publica em 1979 o livro Esquizo Frenia (& etc) a que se seguem até 1999 mais onze livros. Em 2005 publica a sua obra completa até então sob o título Repetir o Poema (Edições Quasi). Em 2019 volta a publicar um livro de inéditos: O Real Arrasa Tudo (Porto Editora); em 2021 é publicada uma antologia da poesia da autora com selecção e organização de Graça Martins: A Alegria da Dúvida (Exclamação); em 2022 publica Semente em Solo Adverso (Officium Lectionis).
No centro da poesia de Isabel de Sá está uma reflexão sobre o poema, as palavras e o amor-erotismo - vejam-se a este respeito os livros Em Nome do Corpo (1986), Escrevo para Desistir (1988), O Avesso do Rosto (1991) ou O Duplo Dividido (1993). Para além desta reflexão, em poemas em prosa, Isabel de Sá começou por explorar a temática da loucura (com a qual dialoga com a obra de um dos fundadores da antipsiquiatria, Ronald Laing) e da infância. É da perturbação como sabotagem de uma ideia de infância - a actual ou a do tempo da autora - que se alimentam muitos dos poemas dos primeiros livros: Esquizo Frenia (1979), Bonecas Trapos Suspensos (1983), Autismo (1984) ou Restos de Infantas (1984).
Por razões obscuras, a poesia de Isabel de Sá, não teve nem tem tido a devida atenção por parte da crítica. Espera-se que os livros publicados nestes três anos, resgatem a autora de um esquecimento a que não é estranho os 20 anos que Isabel de Sá esteve sem publicar. 


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