quinta-feira, fevereiro 29, 2024

50 ANOS DEPOIS, A CONTRA-REVOLUÇÃO

 



1, Com excepção de algumas democracias representativas, como foi a mexicana, é natural, e tem sido assim na democracia representativa portuguesa, uma certa “alternância democrática”. Em qualquer cenário, os mais de oito anos de governo socialista, liderados por António Costa, e interrompidos por uma frágil suspeita do Ministério Público, levarão, quase com toda a certeza – e as sondagens confirmam-no – a que das eleições legislativas de 10 de Março saia um governo de direita liderado pela AD. Simplesmente, no ano em que um pouco por todo o mundo vamos ter eleições, não vivemos uma situação normal da chamada “alternância democrática”. Vivemos, em Portugal e muitos outros países, um crescendo de partidos da extrema-direita, também chamados populistas, que põe em causa, já nalguns países, a própria democracia. Se a Itália já é governada por uma coligação de direita/extrama-direita, liderada por Georgia Meloni e o seu partido Frateli di Italia, um dos herdeiros programáticos do fascismo de Mussolini; se a Argentina, onde o peronismo tem governado,  elegeu um louco que está a transformar um país com cerca de 40% de pobres, que beneficiavam do apoio estatal, num regime totalmente liberal, entregue ao sector privado; se em Espanha o Vox espreita à sombra de Franco; se em França Macron vira à direita para evitar que Marine Le Pen ganhe as próximas presidenciais… se… se… enfim, um pouco por todo o mundo o populismo espreita. Portugal não é excepção com o Chega.

2, O Chega cresceu, mas é ainda hoje, um partido quase unipessoal de André Ventura. Ventura, um escritor frustado e professor universitário de direito, foi militante do PSD, comentador desportivo numa televisão, o que lhe deu projecção mediática. Em 2017 foi candidato à Câmara de Loures, pelo PSD, perdendo para Bernardino Soares do PCP. Por essa altura, faz afirmações contra a comunidade cigana, numa entrevista ao agora comentador político Sebastião Bugalho, para o jornal i, onde também defende a prisão perpétua e a castração química para pedófilos. Até o aparecimento de Ventura, a extrema-direita portuguesa era representada pelo PNR de José Pinto Coelho, um pequeno partido sem expressão eleitoral, claramente fascista, que nas últimas eleições se rebaptizou de Ergue-te. Ventura, como outros populistas, fala “dos portugueses de bem”, expressão que abre uma divisão na sociedade. E entre os portugueses que não são de bem, estão os chamados “subsídio-dependentes”. O Chega pretende acabar com o RSI, implementado durante um dos governos Guterres. Mas é, paradoxalmente, a algum eleitorado de esquerda, incluindo do PCP, que o Chega terá ido buscar alguns dos seus eleitores nas últimas eleições.   

3, 50 anos depois do 25 de Abril, não só as sondagens dão uma maioria parlamentar de direita, com um forte contributo da subida do Chega, como entre os pequenos partidos aparecem formações de direita ou extrema-direita, e apenas um partido – histórico – de extrema-esquerda, o PCTP-MRPP. A confirmarem-se os resultados que têm vindo a ser apresentados pelas empresas de sondagens, teremos um parlamento onde a direita será maioritária, e só uma vitória do PS, certamente já não com maioria absoluta, poderá, pelo menos durante algum tempo, impedir a direita, ou direita com extrema-direita, de governar.

4, Na passada segunda-feira, 26, a “aparição” de Passos Coelho, veio introduzir outros elementos nesta campanha, a ponto de se falar em um antes e um depois do discurso de Passos em Faro. Para a direita Passos Coelho é o messias que salvou Portugal de uma bancarrota criada por José Sócrates. Para a esquerda, mais realista, Passos Coelho é o primeiro-ministro que quis ir além das imposições da troika, e que levou a que a esquerda se unisse, em 2015, para evitar um segundo governo PSD-CDS. A política que Passos Coelho implementou durante o seu governo, com Paulo Portas como líder do CDS, foi uma política contra as pessoas, por vezes de humilhação (por exemplo, para receber o subsídio de desemprego, os desempregados que tinham direito a ele, tinham que se apresentar na sua Junta de Freguesia de quinze em quinze dias – como se fossem criminosos a quem um juiz tinha decretado o “termo de identidade e residência”). A política de Passos Coelho baseou-se num colaboracionismo com as organizações monetárias, como o FMI,  que impôs cortes no rendimento das pessoas, empobrecendo-as, ao mesmo tempo que privatizava empresas estratégicas para a vida das pessoas e do país. O corte do 13º mês e subsídio de férias (que apenas durou um ano porque o Tribunal Constitucional considerou essa medida inconstitucional), contam-se entre as medidas mais gravosas, de muitas, que levaram a um extraordinário aumento do desemprego e à emigração de muitas pessoas, sobretudo jovens.

5, Estamos a menos de dois meses de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, a Revolução dos Cravos como lhe chamam noutros países. O mundo mudou muito nestes 50 anos – e Portugal também –, a começar pela queda do muro de Berlim e o fim dos regimes comunistas; das utopias que floresciam por esses anos 60, 70, e mesmo, ainda 80 do século passado. Vivemos hoje num mundo digital, governado pelas grandes empresas de Silicon Valley, com várias ameaças, das alterações climáticas à inteligência artificial. E a emergência dos populismos de extrema-direita, um pouco como acontecia há 100 anos. Em Portugal a direita nunca foi além do CDS, que embora sendo um dos partidos fundadores da democracia, fez parte da Assembleia Constituinte eleita em 1975, e foi o único partido a votar contra a Constituição aprovada em 1976. Mas agora a extrema-direita chegou ao parlamento, as promessas da AD de não fazer um acordo parlamentar, ou de governo, com o Chega, são vãs. Cinquenta anos depois do 25 de Abril, Portugal parece estar condenado a enfrentar uma contra-revolução liderada pelo extrema-direita. É certo, como já escrevi acima, que há cerca de 10 anos tivemos um governo que colocou em causa não só os chamados “valores de Abril”, como os dirigentes do PCP gostam de dizer, mas sobretudo os valores da social-democracia. Também é certo que certa esquerda, nos últimos anos, tem abraçado os valores woke, provocando uma fricção social que leva a que muitas pessoas passem para o lado oposto a esses valores woke.

6, Nas últimas semanas, temos assistido a situações mais ou menos inéditas, com polícias a vir para a rua manifestar-se, ainda que à civil. Um jogo de futebol, entre o Famalicão e o Sporting não se pode realizar porque os polícias destacados para fazer a segurança ao jogo, apresentaram atestados médicos invocando doença. Na origem dos protestos, para além das más condições em que vivem alguns polícias, está um subsídio que foi atribuído aos membros da Polícia Judiciária. O presidente do Sindicato da Polícia chegou, em entrevista, a ameaçar que as eleições podiam não se realizar porque são os polícias quem transportam os boletins de voto. A 19 de Fevereiro, quando se realizou o debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro no teatro Capitólio, e transmitido em sinal aberto pelos três canais de televisão, uma manifestação espontânea de polícias esteve à porta do teatro. Também os militares ameaçam manifestar-se. O semanário Expresso titulava, na sua edição de 23-02-24, “Militares ameaçam sair à rua se polícias tiverem aumento”.  Esta situação faz lembrar a de um país africano com uma fragilíssima democracia, não é normal num país com uma democracia de 50 anos. Mas, como já tentei explicar acima, não vivemos tempos normais. As ameaças de polícias e militares, de qualquer forma, são inaceitáveis. 

(Imagem do blogue Expresso da Linha,  https://expressodalinha.blogspot.com/2012/04/luisa-os-cravos-murchos-da-injustica.html ) 

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