quinta-feira, dezembro 30, 2010

LIVROS EM 2010.


UMA LISTA*

- Nudez, Giorgio Agamben, Relógio d’ Água
- Inverness, Ana Teresa Pereira, Relógio d’ Água
- Que se diga que vi como a faca corta, Miguel Cardoso, Mariposa Azual
- O Nascimento da Filosofia, Giorgio Colli, Edições 70
- A Poesia Ensina a Cair, Eduardo Prado Coelho
- Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavares, Porto Editora
- Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato, Mariposa Azual
- Viva México, Alexandra Lucas Coelho, Tinta da China
- Poemas com Cinema, Org. de Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim

* Esta lista corresponde a livros que li em 2010, editados neste mesmo ano, em Portugal.

UMA SÍNTESE

No ano em que morreu José Saramago, Gonçalo M. Tavares consolidou-se como um “valor” da literatura portuguesa – premiado em França, publicou três livros: Uma Viagem à Índia, Eliot e as Conferências (ambos editados pela Caminho) e Matteo Perdeu o Emprego (vergonhosamente editado pela Porto Editora que, numa lógica de merceeiro estúpido, colou nas capas um autocolante a prometer prémios aos leitores que ligassem para um número de valor acrescentado). Trata-se de uma crescente mercantilização do objecto livro que a consolidação de uma lógica de grupos (Leya, Porto Editora, Fnac) equipara a gadgets como telemóveis, tablets, computadores, plasmas, etc, - veja-se os “catálogos” de sugestões elaborados pela Fnac, Leitura-Bulhosa, Bertrand. Nem as livrarias “alternativas” conseguem escapar a esta lógica de mercantilização do livro (a Livraria Latina, do Porto, foi comprada pelo grupo Coimbra Editora e Leya, ficando com o nome mais ridículo que jamais uma livraria terá tido em Portugal: "Leya na CE Latina").
No entanto continuam a existir espaços de resistência. Para além de mais de duas dezenas de boas livrarias “alternativas” espalhadas pelo país, os leitores muito têm a agradecer a editoras como a Assírio & Alvim, a Relógio d’ Água e muitas outras.
A Mariposa Azual é uma destas editoras. Este ano deu a conhecer duas revelações da poesia portuguesa: Margarida Vale de Gato, com Mulher ao Mar, e Miguel Cardoso com Que se diga que vi como a faca corta, título que aponta para um diálogo com Herberto Helder e não só.
É no campo de batalha da poesia que algo de “bombástico” aconteceu: a publicação de Um Toldo Vermelho por Joaquim Manuel Magalhães, livro que faz a excisão e reescrita de toda a poesia do autor de Dois Crepúsculos. E essa reescrita é de tal forma radical que anula por completo o programa poético que J. M. Magalhães esboçou no poema “Princípio” de Os Dias, Pequenos Charcos (1981): o “voltar ao real”. No campo e contra-campo de batalha que tem sido a poesia portuguesa da última década, algo mudou com o livro de Joaquim Manuel Magalhães: um dos grupos perdeu o seu “pai” tutelar (enlouquecido? Farto de ser ama de leite seco?). Certo é que desde 2008 que a poesia portuguesa se tem vindo a renovar – com o livro de Herberto A Faca não Corta o Fogo, com os livros de Miguel-Manso e este ano com Margarida Vale de Gato e Miguel Cardoso.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Margarida Vale de Gato


DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.

Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar, Mariposa Azual, Lisboa, 2010, p. 9.

Margarida Vale de Gato é tradutora e docente universitária na área da tradução. Mulher ao Mar é o seu primeiro livro de poesia, embora tenha anteriormente publicado alguns poemas em revistas. A inovação poética apresentada neste livro fez de MVG uma das revelações de 2010. Como escreve Hélia Correia no posfácio à 2ª edição de Mulher ao Mar, esta poesia “Não pretende dar origem ao irreconhecível mas ao reconhecível que se estranha, á familiaridade estilhaçada” (p. 73).

terça-feira, novembro 30, 2010

UMA ANTOLOGIA QUE NÃO ME FOI PEDIDA


Camilo Pessanha
Fernando Pessoa
Mário de Sá-Carneiro
Ângelo de Lima
Sophia de Mello de Breyner Andresen
Jorge de Sena
Eugénio de Andrade
Florbela Espanca
Irene Lisboa
Mario Cesariny
António Maria Lisboa
Alexandre O’ Neill
Carlos de Oliveira
António Ramos Rosa
Herberto Helder
Albano Martins
António José Forte
Luiza Neto Jorge
Fiama Hasse Pais Brandão
Gastão Cruz
Fernando Assis Pacheco
Armando Silva Carvalho
António Osório
Nuno Júdice
Joaquim Manuel Magalhães
João Camilo
A M Pires Cabral
Jorge Fallorca
António Franco Alexandre
José Agostinho Baptista
Helder Moura Pereira
Al Berto
Paulo da Costa Domingos
Isabel de Sá
Fátima Maldonado
Luís Miguel Nava
Jorge de Sousa Braga
Adília Lopes
Daniel Maia-Pinto Rodrigues
Teresa Leonor M. Vale
Fernando Pinto do Amaral
António Gancho
Daniel Faria
José Tolentino Mendonça
Carlos Saraiva Pinto
José Miguel Silva
Manuel de Freitas
Ana Paula Inácio
Bénédicte Houart
Mário Rui de Oliveira
Miguel-Manso
Renata Correia Botelho
Miguel Cardoso

Seguindo uma proposta de manuel a. domingos que não me foi endereçada, nem tinha que ser, apresento uma lista para uma antologia de poesia de autores publicados entre 1900 e 2010. (Ao cimo retrato de Luiza Neto Jorge por Escada).

FERNANDO PESSOA


A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes de aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.
(…)
Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, mas não sofro o impulso próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2009, p. 190.

Na foto Fernando Pessoa e Aleister Crowley a jogar xadrez. Foto retirada do jornal inglês The Independent

Nota:No dia que fazia 75 anos sobre a sua morte (30 de Novembro de 1935), Fernando Pessoa foi ignorado, tanto pela blogosfera como pelos média tradicionais. O único jornal, de que tive conhecimento, que dedicou espaço a esta data foi... o Jornal de Notícias. Eduardo Lourenço, num depoimento a esse jornal, esclarece a situação em que se encontra Pessoa em Portugal: "(...) Fernando Pessoa é mais vivido por públicos estrangeiros do que aqui, em Portugal. Os Portugueses cansam-se facilmente de tudo, como, aliás, o próprio Pessoa verificou quando disse sermos um povo que nasceu cansado". Que os investigadores da obra pessoana sejam cada vez mais estrangeiros, só confirma este diagnóstico. Mas, sobretudo, realça o quanto Pessoa foi e é mal-amado em Portugal.

sábado, novembro 13, 2010

JORGE ROQUE


CANÇÃO DA VIDA

3

Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a falar contigo, a viver contigo, a morrer contigo. Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar.

4

Devias querer vida em vez de palavras. Devias saber que as palavras não choram, não riem. Devias, sobretudo, aprender que estas só. Nenhuma palavra poderá viver ou morrer no teu lugar. Escreveste na mensagem que me enviaste: eu não vou poder ser feliz. Senti que estavas a trocar a vida por poesia e nem a dor consegui ouvir. A violência do erro tudo calava e do grito que desesperado lançavas, nem dor nem poesia restavam.

Jorge Roque, "Canção da vida", Telhados de Vidro / 14, pp.89-90, Averno, 2010.

domingo, novembro 07, 2010

GASTÃO CRUZ


JOVENS À PORTA DO CHIADO


Vêem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se vêem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p.39.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Teresa M. G. Jardim


TELEVISÃO

A televisão é uma fotografia de guerra
que mexe. É um beijo mais largo que a minha cabeça.
É uma caixa de sabão que não se cansa de lavar mais branco.
E faz muita companhia, a mim, aos livros, ao cão.

O arroz está mais caro. A água e a luz também.
Eu estou mais gorda e não passou na televisão:
a minha televisão é sensível, preocupa-se comigo,
é como se fosse uma pessoa; melhor
que as pessoas amigas que me contam as rugas
e os cabelos brancos, resmungam
por tudo e por nada, calçariam luvas
para apanhar do chão um livro
ou mesmo o meu coração se caísse.

Teresa M. G. Jardim, Jogos Radicais, Assírio & Alvim, 2010, p. 19

Teresa M. G. Jardim nasceu no Funchal em 1960. Nos anos 80 publicou poemas no DN Jovem e no Anuário de Poesia da Assírio & Alvim. Professora e artista plástica, estreia-se em livro com Jogos Radicais. A sua poesia aproxima-se de um quotidiano onde a televisão convive com os gatos e os livros. (A fotografia acima foi retirada da página do facebook da autora).

quinta-feira, outubro 21, 2010

DAVID MOURÃO-FERREIRA


Brilha nas mãos do sol o gume de um cutelo
O pescoço da Lua é que há-de ser o alvo

***

Os meses vão batendo à nossa porta
Sempre fingindo que são deuses diversos

***

TRENO

Ai a tua nudez Ai a tua mudez
Ó taça de cristal sobre veludo preto

Quando voltas de novo a ser aquele vento
que antes do amor se começa a mover

Poemas do livro Matura Idade, (1ª edição 1973) reeditado (8ª edição) pela Arcádia, 2010.

quarta-feira, outubro 13, 2010

PUB

Leitura de poemas sobre a temática da água e do fogo amanhã, 14 de Outubro, pelas 21h00 no Café Progresso. Os poemas serão lidos por Celeste Pereira e Ana Afonso.
Aqui fica o poema de António Ramos Rosa cujos dois primeiros versos encimam o cartaz

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

(de Volante Verde, 1986)

terça-feira, outubro 05, 2010

REPÚBLICA: 100 ANOS


Hoje, cem anos depois da implantação da República torna-se difícil compreender o que foi esse tempo, entre 1910 e 1926. Talvez um tempo de paixão pela política, de crença na política como algo que iria modificar a vida das pessoas, mudar de vida, mudar de regime. Paixão e crença e não calculismo, estratégia e carreirismo.
A grande turbulência política, o espírito positivista, a perseguição às entidades religiosas, a participação de Portugal na I Guerra Mundial – com baixas significativas –, a liberdade de imprensa num acentuado nível, a aposta no ensino como forma de libertação do povo. Alguns dos aspectos positivos e negativos da I República.
Destes aspectos vejamos um em particular, o que hoje, nas comemorações do centenário mais se destacou: a aposta na educação. O governo inaugurou cem escolas (algumas foram apenas remodeladas), talvez para tentar contrabalançar as centenas que tem vindo a fechar. Cem anos depois da proclamação da República exigia-se uma outra atitude política, uma outra capacidade de ver o presente. O que se torna hoje necessário não é apenas a aposta na educação, vista como forma de alfabetizar as crianças. O que hoje é necessário é uma outra forma de pensar a educação. Já não se trata de combater o analfabetismo mas a iliteracia.