quinta-feira, junho 22, 2006

Thomas Bernhard


(...). Estúpidos, como em geral eles são, matam em breve nos alunos que lhes estão confiados qualquer sentimento que neles possa despertar a arte da pintura e nem sequer só esta, e a visita das suas por assim dizer inocentes vítimas ao museu, a visita por eles guiada, fica a ser, devido à sua estupidez e, portanto, ao seu estúpido palavreado, na maior parte dos casos a última visita feita a um museu por cada um dos alunos. Vindo uma vez com os professores ao Museu de História de Arte, os alunos nunca mais cá vêm durante toda a vida. A primeira visita de todos esses jovens é também a última. Os professores destroem para sempre, nessas visitas, o interesse pela arte dos alunos que lhes estão confiados, isto é um facto. Os professores aniquilam os alunos, esta é que é a verdade, este é um facto que vem de há séculos, e os professores austríacos, especialmente, aniquilam nos alunos sobretudo desde o princípio o gosto artistico (...)
Antigos Mestres, pp. 66-67, Trad. de José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, 2003.

sábado, junho 10, 2006

O FIM DO FUTEBOL


O Futebol, aquele que é jogado num campo com onze jogadores de cada lado, já não existe. É, de tudo o que se chama hoje futebol o que menos interessa. Não falo só pelo actual Mundial da Alemanha. Há muito que os jornais desportivos se interessam por tudo menos o futebol em si. O que tem interessado os ditos jornais desportivos são as transferências (o mercado de transferências, como se fossem jornais de economia), as polémicas que envolvem dirigentes, treinadores e jogadores. E também não desprezam as sempre polémicas arbitragens - todas as arbitragens são polémicas. Também as revistas cor-de-rosa viram, ultimamente, nas histórias amorosas entre futebolistas e vedetas de televisão uma receita certeira para alargar o seu público. A televisão seguiu-lhes o caminho, ou ao contrário, percebendo que o futebol também interessa às mulheres, criou em volta dos jogos toda uma série de espectáculos. Não é o jogo que interessa mas o antes do jogo e o depois do jogo, a envolvente do jogo, do campeonato. É assim no Mundial da Alemanha, mas intensificado até à náusea.
Aquilo que se pode chamar a beleza do futebol é algo acessório. Os jogos de futebol são acessórios, onde predomina uma lentidão que não se coaduna com a actual voragem das imagens televisivas (a rapidez dos planos). O futebol entrou na era do espectáculo, na Sociedade do Espectáculo como foi definida por Guy Debord: "tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação". Assim é com o futebol, esse jogo da nossa infância, agora rodeado de todo um discurso vazio (veja-se as conferências de imprensa dos treinadores, jogadores e dirigentes, a avidez com que os jornalistas as seguem como se dali fossem sair as palavras que salvam o mundo). Nada escapa ao comentário que inaugura o vazio sobre o indizível da experiência (e isto não se aplica apenas ao futebol).



terça-feira, junho 06, 2006

LIVROS A VIR


A Feira do Livro serve, entre outras coisas, para tomar conhecimento dos livros que vão ser publicados. Ou, melhor, daqueles que as editoras tencionam publicar. Porque há livros que constam dos catálogos há anos e esperamos encontrar um dia numa livraria e nunca mais, nunca mais aparecem. É o caso de Câmara Escura de Nico com selecção, tradução, textos e fotografias de Fátima Castro Silva que está anunciada no catálogo da Assírio & Alvim. A editora de Manuel Rosa promete começar a publicação da obra de José Rodrigues Miguéis com Léah e Outras Histórias. Pessoa, Carlos de Oliveira, Fernando Assis Pacheco ou Walter Benjamin vão continuar a ser publicados na Assírio que passa a distribuir a revista de poesia Relâmpago, da Fundação Luís Miguel Nava, com um número a sair sobre Luiza Neto Jorge.
Outra das melhores editoras portuguesas é a Relógio d' Água que anuncia um novo título de Ana Teresa Pereira, Histórias Policiais, a ser publicado em breve. Uma surpresa será a edição de cinco (5) livros do polémico filósofo esloveno Slavoj Zizek. Para começar, A subjectividade a Vir seguido do Manifesto a Favor da Intolerância. Entre os clássicos, a editora de Francisco Vale vai publicar Andreas de Hugo von Hofmannsthal, o quinto volume dos Contos de Tchékhov e Dias Memoráveis de Walt Whitman. Isto são só algumas das novidades prometidas de duas editoras. Mas as promessas...

sábado, maio 27, 2006

Carlos de Oliveira



SONETO FIEL

Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que se têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.

quarta-feira, maio 17, 2006

IAN CURTIS


Há 26 anos, Ian Curtis, o vocalista e autor das letras dos Joy Division, suicidava-se. Iniciava-se o mito.

Uma voz que nos chega das profundezas mais sombrias, alguém que como Orfeu desceu aos infernos para nos trazer uma beleza aterradora, espasmódica, nocturna como o sol cegante do meio-dia. Voz da lucidez: excesso de luz dirigida.

terça-feira, maio 16, 2006

O BONO DO JORNAL


Este é o número de ontem do The Independent, um dos jornais de referência da Inglaterra. A surpresa aparece no título da primeira página: No news today. Reparando melhor podemos ver, no canto superior esquerdo a foto de Bono. O Independent de ontem foi dirigido por Bono, o músico dos U2 e activistas de várias causas, que trouxe para a edição do jornal Inglês, como a luta contra a sida ou a fome em África. Pode-se ver no fim da primeira página o número de pessoas que morreram de sida e de doenças que em países ocidentais seriam facilmente tratáveis.
Para além destas questões políticas e humanitárias uma outra questão se coloca com esta edição especial do Independent. Ela vem mostrar que o jornalismo de hoje é feito sem imaginação, sem critérios estéticos nem éticos. Foi necessário convidar um músico, ainda que também activista político, mas alguém que não é jornalista, para fazer um jornal completamente diferente, com preocupações comunicativas essenciais. Em Portugal, esta capa faz lembrar o período em que Miguel Esteves Cardoso foi director do ("nosso") Independente. Ou outros tempos do Libération.

segunda-feira, maio 15, 2006

Egito Gonçalves


NOTíCIAS DO BLOQUEIO

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construido,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos em silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e, enquanto a água e os viveres escasseiam,
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.

(in Árvore, nº4, [1953])

quarta-feira, maio 03, 2006

Eugénio de Andrade


AS PALAVRAS INTERDITAS

Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te...E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira.
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
(de As Palavras Interditas)