
terça-feira, setembro 14, 2010
segunda-feira, agosto 23, 2010
dixit: Fernando Sobral sobre a desertificação do interior do país

701 não é o novo número de emergência nacional. É o número que decreta a desertificação do País.
O ministério que defende esta chacina em nome da modernidade e da eficiência pensa que as escolas são "call centers". O fim das escolas cumpre o que os fogos iniciaram: asfixia económica e socialmente os que ainda vivem no interior. O que se pretende é o fim do interior. Desde há anos que se quer transformar Portugal num País de litoral onde o resto é paisagem. Esta decisão do Ministério da Educação é um decreto de suicídio assistido de muitas aldeias deste pobre território. Como é possível decretar, de Lisboa, que crianças vão começar a fazer 50 quilómetros por dia para ir para escolas melhor equipadas? É a mesma política que decreta a morte da floresta nacional. Nenhuma explicação é suficiente para aquilo que se está a fazer perante o silêncio da sociedade que, mais uma vez, encolhe os ombros. Maria de Lurdes Rodrigues iniciou esta política com a pose de Madame Min. Isabel Alçada cumpre-a com sorriso de Cinderella. Esta última forma dói mais, porque parece que a ministra troça do País e que isso lhe dá um secreto gozo. Quando se fala da revisão constitucional esta decisão ministerial mostra como o Estado deixou de cumprir a sua função de ser garante da educação de todos os portugueses. Sobretudo daqueles que não garantem maiorias parlamentares. É espantoso como não se escutam os deputados eleitos por Viseu (o mais atingido), unidos no interesses dos seus, a clamar contra este atentado. Não admira: quem os elege são as direcções nacionais...
Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 23. 08. 2010, última página.
O ministério que defende esta chacina em nome da modernidade e da eficiência pensa que as escolas são "call centers". O fim das escolas cumpre o que os fogos iniciaram: asfixia económica e socialmente os que ainda vivem no interior. O que se pretende é o fim do interior. Desde há anos que se quer transformar Portugal num País de litoral onde o resto é paisagem. Esta decisão do Ministério da Educação é um decreto de suicídio assistido de muitas aldeias deste pobre território. Como é possível decretar, de Lisboa, que crianças vão começar a fazer 50 quilómetros por dia para ir para escolas melhor equipadas? É a mesma política que decreta a morte da floresta nacional. Nenhuma explicação é suficiente para aquilo que se está a fazer perante o silêncio da sociedade que, mais uma vez, encolhe os ombros. Maria de Lurdes Rodrigues iniciou esta política com a pose de Madame Min. Isabel Alçada cumpre-a com sorriso de Cinderella. Esta última forma dói mais, porque parece que a ministra troça do País e que isso lhe dá um secreto gozo. Quando se fala da revisão constitucional esta decisão ministerial mostra como o Estado deixou de cumprir a sua função de ser garante da educação de todos os portugueses. Sobretudo daqueles que não garantem maiorias parlamentares. É espantoso como não se escutam os deputados eleitos por Viseu (o mais atingido), unidos no interesses dos seus, a clamar contra este atentado. Não admira: quem os elege são as direcções nacionais...
Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 23. 08. 2010, última página.
domingo, agosto 15, 2010
Margarida Ferra

Flores nocturnas
Ouviste ontem à noite
a cadência misteriosa,
outra vez o trabalho
daquela costureira sem idade.
Os pés descalços sobre o pedal,
os braços colados ao pano, frios
e brancos, não têm carne
que possa ferir-se por
acaso ou falta de vista.
Mora dentro das paredes,
edifícios com mais de quinze anos,
e escolheu aqueles
a quem embala e atormenta o sono.
Os pontos regulares, na tua cabeça,
fixam sardinheiras frescas sobre
chitas desmaiadas pela luz do dia
que chagará daqui a nada.
***
Morada
Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, 2010, pp. 11 e 51.
Margarida Ferra estreia-se na poesia com a publicação deste Curso Intensivo de Jardinagem. Neste livro a autora explora o espaço da casa, de que é exemplo o poema "Morada" aqui publicado, mas sobretudo a segunda secção do livro - "Quatro Divisões". A terceira secção do livro, "Playlist", destoa das outras partes por um certo hermetismo, onde os poemas aparecem como menos conseguidos, o que não impede que este conjunto de poemas tenha excelentes momentos.
Ouviste ontem à noite
a cadência misteriosa,
outra vez o trabalho
daquela costureira sem idade.
Os pés descalços sobre o pedal,
os braços colados ao pano, frios
e brancos, não têm carne
que possa ferir-se por
acaso ou falta de vista.
Mora dentro das paredes,
edifícios com mais de quinze anos,
e escolheu aqueles
a quem embala e atormenta o sono.
Os pontos regulares, na tua cabeça,
fixam sardinheiras frescas sobre
chitas desmaiadas pela luz do dia
que chagará daqui a nada.
***
Morada
Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.
Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, 2010, pp. 11 e 51.
Margarida Ferra estreia-se na poesia com a publicação deste Curso Intensivo de Jardinagem. Neste livro a autora explora o espaço da casa, de que é exemplo o poema "Morada" aqui publicado, mas sobretudo a segunda secção do livro - "Quatro Divisões". A terceira secção do livro, "Playlist", destoa das outras partes por um certo hermetismo, onde os poemas aparecem como menos conseguidos, o que não impede que este conjunto de poemas tenha excelentes momentos.
quarta-feira, agosto 04, 2010
RUI PIRES CABRAL
SHIRLEY ANN EALES
Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas
e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto
e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde
insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que tu? Não sei quem és
nem onde estas agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.
Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005, pp. 21-22
quarta-feira, julho 28, 2010
MIGUEL CARDOSO

DIÁLOGOS COM SOPHIA II
Sabemos que a noite
desfia as horas do dia
teceu e a manhã
irrompe irreversível e quase
singular e nada
do que acontece é solitário tudo
é eco e ressoa
E o inumerável é outro nome
para o mundo para o aguçado
revolver dos restos que nos restam
e do que neles resta
do entorpecido músculo do possível
A branda cegueira do inominável é outro nome
para as rugas do tecido de poeira e luz e espanto
da janela que por vezes habitamos em jejum
na manhã que sacode a exactidão
dos nomes e desperta coisa a coisa as ramagens
nítidas as mãos mundanas do que é eterno
e inteiro por instantes
Dos arranhados ecos
do estilhaçar das coisas
já no início estilhaçadas
Uma e outra vez na sucessão dos dias
erguem-se os ombros subitamente
nos intervalos dos tambores
do tempo tão dividido
num gesto fora de tempo e fora de uso
danço tropeço gesticulando para a verdade
Como é estranho tudo
saber – enquanto espero
neste canto do café com um livro
um lápis a luz de soslaio
sobre este canto da mesa –
a pouco
e no pouco saber e
de coisa em coisa
cerrar o punho do tempo
todo o tempo
fiado e desfiado
em torno de um instante
Sabêmo-lo.
É preciso reinventar o início
Miguel Cardoso, Que se diga que vi como a faca corta, Mariposa Azual, 2010, pp. 70-71
Que se diga que vi como a faca corta é o primeiro livro de Miguel Cardoso, autor que nasceu em 1976. Já apontado como uma das revelações poéticas do ano, em Miguel Cardoso encontramos uma poesia opaca, que recorre ao poema longo e a uma declarada intertextualidade (de que o poema reproduzido acima é um exemplo).
Sabemos que a noite
desfia as horas do dia
teceu e a manhã
irrompe irreversível e quase
singular e nada
do que acontece é solitário tudo
é eco e ressoa
E o inumerável é outro nome
para o mundo para o aguçado
revolver dos restos que nos restam
e do que neles resta
do entorpecido músculo do possível
A branda cegueira do inominável é outro nome
para as rugas do tecido de poeira e luz e espanto
da janela que por vezes habitamos em jejum
na manhã que sacode a exactidão
dos nomes e desperta coisa a coisa as ramagens
nítidas as mãos mundanas do que é eterno
e inteiro por instantes
Dos arranhados ecos
do estilhaçar das coisas
já no início estilhaçadas
Uma e outra vez na sucessão dos dias
erguem-se os ombros subitamente
nos intervalos dos tambores
do tempo tão dividido
num gesto fora de tempo e fora de uso
danço tropeço gesticulando para a verdade
Como é estranho tudo
saber – enquanto espero
neste canto do café com um livro
um lápis a luz de soslaio
sobre este canto da mesa –
a pouco
e no pouco saber e
de coisa em coisa
cerrar o punho do tempo
todo o tempo
fiado e desfiado
em torno de um instante
Sabêmo-lo.
É preciso reinventar o início
Miguel Cardoso, Que se diga que vi como a faca corta, Mariposa Azual, 2010, pp. 70-71
Que se diga que vi como a faca corta é o primeiro livro de Miguel Cardoso, autor que nasceu em 1976. Já apontado como uma das revelações poéticas do ano, em Miguel Cardoso encontramos uma poesia opaca, que recorre ao poema longo e a uma declarada intertextualidade (de que o poema reproduzido acima é um exemplo).
terça-feira, julho 13, 2010
FÁTIMA MALDONADO

CANÇÃO PARA O PRESIDENTE DO BURKINA, THOMAS SANKARA TRAÍDO PELO SEU AMIGO BLAISE COMPAORÉ
Sankara tinha um amigo
chamado Compaoré
Sankara tinha o reino
mais pobre do continente
e chamava-lhe «a pátria dos homens íntegros»
Campaoré era a sombra de Sankara
e Sankara desvendou o seu nome verdadeiro
a um companheiro de armas
esquecendo que nem os deuses o fazem.
E no Olimpo negro todos riram de Sankara –
o da alma orgulhosa –
por não ter resguardado a sua própria sombra.
***
UM FADO
Quem viu barcos
ir ao fundo
tem nos olhos a certeza
aposta firme na boca
Quem viu barcos trazer escravos
munições e artifícios
figueira brava na costa
açoite preso no riso
Quem viu barcos
magoá-lo,
ferros, lavas e palmeiras
descrê santos e novenas,
nega laços, destrói cercos,
toma ventos por lareiras.
Fátima Maldonado, Cadeias de Transmissão, Frenesi, 1999, pp. 166 e 169
terça-feira, junho 22, 2010
CABAZADA E FUZILAMENTOS

Ontem a selecção nacional venceu a Coreia do Norte por 7-0. Resultado histórico contra um pais que não é deste planeta. A Coreia do Norte é uma espécie de monarquia estalinista de Kim's, um buraco negro entre as nações da terra: quem lá entra, por exemplo como jornalista terá poucas hipóteses de sair de lá vivo para contar o que viu, se quiser fazer mesmo um trabalho jornalístico. Um pais como este governado pelo querido líder Kim Jong-Il, é capaz de tudo. O jogo de ontem foi transmitido em directo pela televisão estatal norte-coreana, ao contrário do jogo com o Brasil, transmitido em diferido. Ora se o jogo foi mesmo transmitido em directo sem nenhuma decalage que permitisse ao realizador da emissão cortar os sete golos de Portugal, os norte-coreanos que têm o privilégio de ter uma televisão viram em directo a humilhação de uma nação que para propaganda interna deve dominar o mundo. Tudo isto faz-me pensar no destino dos jogadores da Coreia do Norte. O que os espera quando chegarem à sua querida pátria estalinista, depois da humilhação que Portugal lhes infligiu? Receio o pior, o fuzilamento. Imagino que enquanto os portugueses festejavam ontem os sete golos, estivessem a festejar também os fuzilamentos do coreanos, como se a metáfora fuzilar a baliza se tornasse literal. E um dia o deus demente, o grande líder Kim resolve ripostar com armas nucleres (não contra Portugal, mas contra o pais que esteja mais à mão, talvez a inimiga Coreia do Sul)
segunda-feira, junho 21, 2010
JOSÉ SARAMAGO 1922-2010

Depois de tudo o que foi dito, escrito, mostrado, pouco há a dizer. Li apenas quatro livros de Saramago e gostei. Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, principalmente destes. Depois Saramago passou a ser para mim um produto de marketing: os grandes espositores nas livrarias, as polémicas que ajudavam a vender (quer se queira quer não ajudavam). Entre Saramago - ou Lobo Antunes - e Margarida Rebelo Pinto ou José Rodrigues dos Santos, existe uma diferença talvez abissal, mas o marketing livreiro que tudo engole e vomita com estrelas resplandecentes, também tudo nivela pela mesma escala. Por isso sempre que saia um livro de Saramago passava ao lado. E não é agora, depois de todo este folclore fúnebre que vou ler Saramago. Reconheço uma importância em Saramago pelo autodidatismo, talvez uma certa rudeza que à medida que ai descobrindo o mundo da cultura não se deixava possuir pela fineza deste. Era um camponês, um operario. Foi assim que sempre pensou, como um camponês alentejano que desconfiava da metafísica depois de a conhecer. Permaneceu fiel às origens, como Genet.
terça-feira, junho 15, 2010
JORGE GOMES MIRANDA

AUTO-RETRATO
Nos outros livros, em verdade, afirmei
aquilo que neste, claramente, coloco em dúvida:
a tenaz esperança de um mundo capaz de escapar
ao eterno alinhamento de violência e impiedade.
Findo um milénio de pássaros agonizantes,
e no início de outro, tudo vejo capitular
de novo: a cidade de ninguém, abatida
por construções clandestinas, desabamentos;
entre amigos, vocábulos de aspereza
comprometendo o entendimento;
negrura sem interrupção e homicida
nos gestos que dantes reflectiam o amor;
a perda lancinante do conhecimento
da poesia às mãos de ressentidos e diletantes.
Jorge Gomes Miranda, in Este Mundo, Sem Abrigo, Relógio d' Água, 2003, p.11.
Nos outros livros, em verdade, afirmei
aquilo que neste, claramente, coloco em dúvida:
a tenaz esperança de um mundo capaz de escapar
ao eterno alinhamento de violência e impiedade.
Findo um milénio de pássaros agonizantes,
e no início de outro, tudo vejo capitular
de novo: a cidade de ninguém, abatida
por construções clandestinas, desabamentos;
entre amigos, vocábulos de aspereza
comprometendo o entendimento;
negrura sem interrupção e homicida
nos gestos que dantes reflectiam o amor;
a perda lancinante do conhecimento
da poesia às mãos de ressentidos e diletantes.
Jorge Gomes Miranda, in Este Mundo, Sem Abrigo, Relógio d' Água, 2003, p.11.
quarta-feira, maio 19, 2010
LUÍS QUINTAIS

X
(L.W. intensamente negro sobre quadro riscado)
Desprezasse o conhecimento
e o terrível sentir de uma palavra moral.
A guerra consigo mesmo,
esse combate mortal, jogava-se, não nas trincheiras
(as trincheiras seriam apenas um expediente
para o vazio que em si parecia contemplá-lo)
mas no seu oco, nessa incerteza que o percorria,
que merecia ser ferida, golpeada,
numa espécie de ódio de si mesmo
que lhe diziam envenenar a alma vienense,
cujos golpes seriam um desvio
para outra coisa, um degrau abandonado,
uma clareza consentida e de partilha improvável.
Riscava a palavra dor no quadro negro
que intensamente lhe tomava o olhar
quando escutava um dos dilectos,
ele que sempre odiara discípulos, e aqui
estava ele, a avaliar a dor do mundo
através de um relance sobre a inviolável
gramática da perplexidade.
Luís Quintais, "X", in Riscava a palavra dor no quadro negro, Livros Cotovia, 2010. (Respigado daqui)
Subscrever:
Mensagens (Atom)