sexta-feira, março 31, 2017

A ESCUMALHA BANCÁRIA



 
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No início deste século, e nos anos posteriores, o sector bancário era dos que mais investia em publicidade nos meios de comunicação social. Existia crédito para tudo, e os clientes dos bancos quase eram forçados a contrair crédito. A banca vivia à fartazana dos lucros dos créditos que tinha imposto às pessoas. E a economia não ia mal. Eram ainda tempos de vacas gordas. Mas sobretudo importa sublinhar que nesses tempos os bancos, através da concessão de crédito para compra de casa, carro, ou outros tipos de consumo, se foram apoderando da vida das pessoas.
Foi algo que aconteceu não só em Portugal mas em quase todos os países capitalistas, a começar, naturalmente, pelos Estados Unidos. Desta forma selvagem de concessão de crédito, mas também de criar agressivos produtos bancários, nasceu a crise do sub-prime com a consequente falência do banco de investimentos Lemham Brothers. Iniciou-se, em 2008, a crise financeira.
Durante o período pré e pós-crise, os banqueiros cometeram todo o tipo de atropelos legais (para não falar dos éticos) que puseram em causa a sustentabilidade dos bancos por eles geridos. É assim que o BPN vai falir, ao qual se vão juntar o BPP, o BES (tido como um dos principais bancos portugueses e o mais antigo), o Banif… A lista pode não acabar aqui. Todo o sistema bancário ficou abalado. Mas o fundamental disto tudo é que quem pagou a factura de toda esta malvadez e incompetência foram os contribuintes. Em Dezembro de 2015 o Diário de Notícias estimava em 13 mil milhões de euros (7,3 por cento do PIB) o dinheiro que o Estado português (ou seja, os portugueses) deu para salvar bancos. O período contabilizado vai de 2007 a 2015, e o valor já terá aumentado com a recapitalização da CGD.
Neste antro de crimes em que se envolveram os banqueiros, apenas um esteve em prisão: Oliveira e Costa presidente do BPN, onde avultavam ex-ministros de governos de Cavaco Silva. Alguns, como Dias Loureiro, desapareceram de circulação, outros foram constituídos arguidos, como o “Dono Disto Tudo” Ricardo Salgado, que o máximo que teve foi prisão domiciliária. Estranha-se que os mesmos juízes que prendem políticos preventivamente por indícios, sejam tão brandos quando se trata de banqueiros.
***
Alguém me contava que por volta de 1950 (?), um homem rico, o que então era designado como proprietário rural, ao morrer, tinha em casa 4 mil contos. Para a época era bastante dinheiro. É claro que já existiam bancos, mas o dinheiro que passava por eles era em muito menor escala (percentual) ao que acontece hoje: para quê ter o dinheiro num banco? Hoje toda a economia, mesmo a economia paralela, passa pelos bancos. As pessoas vivem, de certo modo sem consciência disso, reféns dos bancos. O ordenado de um trabalhador – quer seja o salário mínimo ou o do gestor de uma empresa – passa pela banca. E no entanto, neste momento, não há razão para as pessoas terem dinheiro no banco (com excepção das grandes fortunas): os bancos aumentaram as comissões que constituem 40 por cento do seu rendimento e os juros estão a zero. Se a banca não serve para emprestar dinheiro, em condições razoáveis, quando as pessoas precisam, nem para obter ganhos através de poupanças, para que serve a banca? Porque não começar a pensar em extinguir a banca como programa político? Ou, pelo menos, estabelecer um caderno de encargos que se os bancos não os cumprissem implicariam a sua passagem para o Estado ou a sua extinção.
Porque, o que a banca fez nos últimos anos foi destruir a vida de milhares de pessoas. Pessoas que alinharam no canto da sereia do marketing bancário, pessoas que de facto precisavam de uma habitação com dignidade, tal como a nossa Constituição estabelece. Pessoas que de repente ficaram sem emprego, na cavalgada da crise pela ideologia do capitalismo selvagem neoliberal. Pessoas que deixaram de puder pagar a prestação da casa (ou de outros bens) ao banco, e que de repente ficaram sem casa. Curiosamente, ou talvez não, dessas vítimas da crise não houve notícia, nem reportagens nos meios de comunicação social. Enfim, destas vítimas dos bancos e da finança internacional que atacou Portugal e o sul da Europa, não há ainda uma narrativa – jornalística ou literária ou fílmica –, como as Vinhas da Ira de Steinbeck, entre outras narrativas, para a grande depressão de 1929.
Eis o duplo crime da escumalha banqueira: arruinar os bancos que geriam levando a que os contribuintes, através do Estado, dessem quantias astronómicas para salvar esses bancos; levar ao desespero, à miséria, à depressão, ao sem-abrigo milhares de pessoas. E tudo isto feito impunemente, com a subserviência da política perante a banca.

segunda-feira, fevereiro 27, 2017

PÃO COM MANTEIGA

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Entre 1980 e 1983, com intervalos, e mais tarde em 1988, surge na então recentemente criada Rádio Comercial (1979) um programa de humor único para a altura. Chamava-se Pão com Manteiga e era feito por uma equipa liderada por Carlos Cruz (locutor) e José Duarte, Bernardo Brito e Cunha, Eduarda Ferreira, Mário Zambujal e Orlando Neves. Do programa nasceram dois livros. Apresenta-se aqui uma das histórias publicada nesses livros (a fonte é a Antologia do Humor Português organizada por Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos para a Texto Editora em 2008).

O Roque e a amiga

A amiga pulou da cama, fresca, matinal, ainda cheia de orvalho, e espreguiçou-se longamente em frente ao espelho.
Deu o primeiro sorriso do dia a Roque, que a espreitava pelo canto do olho enquanto acendia a beata que apagara cuidadosamente na noite anterior.
A amiga voltou a olhar o espelho, sempre sorrindo, e prendeu o cabelo com dois ganchos. Depois, saltou para a balança e o sorriso apagou-se.
– Que foi? – perguntou Roque.
– Dois quilos a mais… – esclareceu a amiga.
Roque deu uma pequena gargalhada.
– E você ri-se! – enfureceu-se a amiga.
E encostando-se à cama perguntou:
– Onde é que está a graça, Roque?
Nova gargalhadinha:
– É que, por este andar, ainda passo a ser conhecido pelo Roque da pesada…


(Led Zeppelin, «Rock and Roll»)

sábado, dezembro 31, 2016

LIVROS EM 2016

No ano agora findo certamente publicaram-se, em Portugal, milhares de livros. No entanto, só uma pequena percentagem desses livros publicados chega às livrarias. Alguns livros, como a reunião do ensaísmo de Eduardo Lourenço sobre poesia, chegaram a muito poucas livrarias. Interessa, como sempre, facturar. E para isso nada melhor do que os livros com personalidades públicas da televisão na capa. De José Rodrigues dos Santos à inefável Cristina Ferreira. A televisão não acabou nem foi substituída pela internet, nada melhor que uma visita a uma livraria de um centro comercial para confirmar este facto. Mas ainda restam alguns lugares de resistência, pequenas livrarias que vendem os livros da lista aqui publicada de livros de poesia.
O ano não teve grandes edições. Mas registe-se um caso importante: a Relógio d’ Água. A editora de Francisco Vale, com mais de três décadas é um caso singular no panorama editorial português. Do seu catálogo constam obras e autores fundamentais no cânone. No entanto, a editora tem dois problemas: 1) a apresentação gráfica, das capas (mal menor) ao tipo de caracteres (usar num livro caracteres times, iguais aos que estão disponíveis em qualquer programa word, é um convite ao leitor para se afastar do livro, que tem que ser um objecto cada vez mais cuidado a nível gráfico); 2) a edição de dois a três livros por semana, geralmente de grandes autores da literatura. O leitor perante o catálogo da Relógio d’ Água perde-se, como perante um banquete que lhe pode provocar uma congestão. O resultado é afastar-se.
Vale a pena assinalar que o que editorialmente se publica de importante foge aos grandes grupos (Leya e Babel cada vez mais apagados), e aparecem novas editoras e chancelas como a Elsinore que publicou J. G. Ballard mas também a prémio nobel Svetlana Alexievich e um livro de um dos nossos melhores jornalistas: Paulo Moura (Depois do Fim).
No que respeita à poesia, de que aqui tento apresentar uma lista o mais exaustiva possível do que se publicou em 2016, certo de erros e omissões, ela vive na generalidade numa clandestinidade editorial. As obras completas publicadas pela Assírio & Alvim serão uma excepção, como é o caso da publicação de um grosso primeiro volume da poesia completa de Ruy Cinatti. Publicar tijolos ao preço de 50 euros por altura do natal dá, com certeza, rendimento. Da lista que se segue, pode-se concluir que ainda somos um país de poetas: 13 editoras publicaram mais que um livro de poesia em 2016, perfazendo, entre reedições e traduções, o número aproximado de 90 livros. Convenhamos que são muitos livros, em tiragens que rondam os 100 ou 200 exemplares.

LIVROS DE POESIA PUBLICADOS EM 2016

ASSÍRIO & ALVIM
Helder Moura Pereira – Golpe de Teatro
Daniel Jonas – Bisonte
Fernando Pessoa - English Poetry (selected and introduced by Richard Zenith)
Fernando Pessoa – Cancioneiro. Uma antologia (ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith)
Sophia de Mello Breyner Andersen – Ilhas (reed.)
Sophia de Mello Breyner Andersen -Musa - O Búzio de Cós e Outros Poemas (reed. Pref. Carlos Mendes de Sousa)
Eugénio de Andrade – O Outro Nome da Terra (reed. Pref. de Fernando Pinto do Amaral)
Eugénio de Andrade – Vertentes do Olhar (reed. Pref. de Fernando  J. B. Martinho)
Ruy Belo – Boca Bilingue (reed. Pref. de Gastão Cruz)
Ruy Belo – Homem de Palavra[s] (reed.)
José de Almada Negreiros – Poemas Escolhidos
António Osório – A Felicidade da Luz
Ruy Cinatti – Obra Poética I (ed. org. por Luís Manuel Gaspar com col. de Joana Matos Frias e Peter Stilwell)
Adília Lopes – Bandolim
Luís Filipe Castro Mendes - Outro Ulisses Regressa a Casa
Filipa Leal – Vem à Quinta-Feira
Adélia Prado – Tudo o que existe louvará
Saint-John Perse - Habitarei o meu nome (Antologia; sel. e trad. de João Moita)
Matsuo Bashô – O Eremita Viajante [haikus – obra completa] (org. e versão portuguesa Joaquim M. Palma)
Rabindranath Tagore – A Asa e a Luz [aforismos. poemas breves] (Trad. Joaquim M. Palma]
Kabir - O Nome Daquele que não tem Nome (versões de Jorge de Sousa Braga)
Joana Matos Frias (Sel. e apresentação) Passagens – poesia, artes plásticas

AVERNO
Adília Lopes – Capilé
Adília Lopes – Z / S
Nunes da Rocha - Cordoaria Nacional
AA VV – Telhados de Vidro nº 21
António Barahona - Ocarina
Jorge Roque - Tresmalhado
Ana Paula Inácio - Anónimos do Século XXI

MARIPOSA AZUAL
Mariano Alejandro Ribeiro – Antes da Iluminação – Mariposa azual
Marta Bernardes – Ícaro
Yvette K. Centeno – Poemas com Endereço

DERIVA
Ricardo Gil Soeiro - Palimpsesto
António Alves Martins - Cidades Materiais

COMPANHIA DAS ILHAS
Rui Almeida – Muito, menos
AA VV – Poesia, um dia. Poetas em Ródão
João Candeias – Nervo
Catarina Costa – A Ração da Noite
Rui Baião - Noizz
Inês Lourenço – O Jogo das Comparações
R. Lino –Políptico

DOUDA CORRERIA
Margarida Vale de Gato – Lançamento – Douda Correria
Miguel Martins – Pince-nez
Nuno Moura – Clube dos Haxixins
João Paulo Esteves da Silva – Tâmaras
Raquel Nobre Guerra – Senhor Roubado
Catarina Santiago Costa – Tártaro
Marco Galrito – O Livro Português dos Mortos
Carla Diacov - Ninguém vai poder dizer que eu não disse, Vol.1
Catarina Costa – Chiaroscuro

Rui Azevedo Ribeiro – Fechado para Mudança de Ramo – 50 kg

RELÓGIO D’ ÁGUA
Rainer Maria Rilke – Elegias de Duino (Trad. José Miranda Justo) – Relógio d’ Água
T. S. Eliot – Poemas Escolhidos (Trad. Gualter Cunha, João Almeida Flor, Rui Knopfli)
Manoel de Barros – Poesia Completa
Bob Dylan – Tarântula (Trad. Vasco Gato)
Lawrence Ferlinghetti – A Poesia como Arte Insurgente (Trad. Inês Dias)
Rui Nunes – Crisálida

Herberto Helder – Letra Aberta – Porto Editora

Fernando Pinto do Amaral – Manual de Cardiologia – Dom Quixote

Alberto Pimenta - Nove fabulo, o mea vox. De novo falo, a meia voz – Pianola

A Dasilva O. – O Poeta Choupe la Peace – Casa-Museu A. Dasilva O.

Bénédicte Houart – Vida Variações III – Livros Cotovia

TEA FOR ONE
Luís de Brito – Jejum – Tea for one
Ricardo Tiago Moura – Pequena Indústria

ARTEFACTO
Vasco Gato – Primeiro Direito
Luís Falcão - Bruma Luminosíssima
Miguel Filipe Mochila – Tempo da impaciência

LÍNGUA MORTA
Jorge Sousa Braga (versões e traduções) – Sombras brancas
AA VV – Apartamentos
AA VV – A Pedra-Que-Mata (Poesia Japonesa)
Frederico Pedreira – Fazer de Morto
Vasco Gato – Lacre, Correspondência afectiva
António Amaral Tavares - Movimento de Terras
Miguel Alexandre Marquez – Coda
Rui Ângelo Araújo – A Origem do Ódio

IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA
Eucanaã Ferraz – Poesia (1990-2016)
José Gardeazabal – História do Século XX
Rui Lage – Estrada Nacional

LICORNE
Rumi – O Círculo do Amor
Paulo Pego / Sónia Aniceto – Entre-Tecidos
João Carlos Raposo Nunes – Brancura
Sofia Martinez / Adriana Crespo – Poemagens
Isabel Aguiar – Eu Amo Tarkovski
Eduardo Quina – Corpo: labirintos

DO LADO ESQUERDO
João Vasco Coelho – Zero-a-zero
AA VV – Casa
Pablo Garcia Casado – Faróis Acessos à Procura do Oceano (Trad. Maria Sousa)
Leonor Castro Nunes / Marcos Foz – A Bifurcação dos Ossos
Hal Sirowitz – Como Eles Costumavam Dizer (Trad. Maria Sousa)
Bénédicte Houart / Juliana Martins (fotografias) – Há Dias II

TINTA DA CHINA
Cláudia R. Sampaio – Ver no Escuro – Tinta da China
António Carlos Cortez – A Dor Concreta
Miguel Cardoso – Víveres


ENSAIO E FICÇÃO – Uma pequena lista

Ruben Fonseca – Histórias Curtas – Sextante
José Gil – Ritmos e Visões – Relógio d’ Água
Annemarie Schwarzenbach – Todos os Caminhos Estão Abertos – Relógio d’Água
Eduardo Lourenço – Tempo e Poesia (ed. aumentada)– Fundação Calouste Gulbenkian
Ana Teresa Pereira – Karen – Relógio d’ Água
Lídia Jorge – O Amor em Lobito Bey -Dom Quixote
Camilo Castelo Branco – Camiliana – Círculo de Leitores
Paulo Varela Gomes – Passos Perdidos – Tinta da China
Lucia Berlin – Manual para Mulheres de limpeza – Alfaguera
AA VV – Textos e Pretextos 20: Literatura e Futebol (Revista do Centro de Estudos Comparatistas da FLUL)


terça-feira, novembro 29, 2016

UM PALHAÇO NA CASA BRANCA

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E de repente, na noite eleitoral americana de 8 de novembro, tudo mudou. O impossível, que era completamente possível mas os média não queriam ver, aconteceu: Donald Trump ganhou a corrida à casa branca como a tartaruga ganhou à lebre. A Europa não percebeu como foi possível a derrota de Hillary Clinton – nem ela percebeu. O escândalo ainda dura. Os próximos quatro anos podem ser perigosos para o mundo com um palhaço de implante capilar esquisito à frente do mais importante país do mundo. Como foi possível, continuam a interrogar-se os americanos bem-pensantes. Donald Trump tinha tudo contra ele: desde as sondagens que davam a vitória à senhora Clinton, até todos os disparates xenófobos, racistas e sexistas que afirmou durante a campanha. Para além disso Trump é um homem de negócios, sem experiência política – o que vai ele fazer na casa branca? Como é possível que alguém tão patético como Trump seja presidente dos Estados Unidos? Como pode um palhaço ter o código do maior arsenal nuclear do mundo? Enfim, multiplicam-se as interrogações. Mas embora a maioria dos americanos não tenha votado nele – Trump ganhou porque o sistema antiquado e imperfeito, mas tão valorizado pelos europeus, da democracia americana assim o permite –, demasiados americanos votaram nele. Porquê? Porquê tanta gente a aderir a um discurso como o de Trump depois de há quatro anos terem reelegido Barak Obama? A pergunta parece não ter resposta. Ainda mais se a tudo isto juntarmos o facto dos média norte-americanos (e claro, dos europeus) estarem a favor Hillary Clinton. Perante este último facto, parece-me estarmos frente a uma estranha desobediência mediática colectiva. Ou seja, muitos eleitores votaram contra as elites. O problema é que as elites não parecem perceber que são um problema – é contra elas que aparecem os discursos populistas. E o problema real que o mundo vai enfrentar, com ou sem elites, com ou sem populismo é o de ter Donald Trump na Casa Branca.

domingo, outubro 30, 2016

A GERINÇONÇA OU “O QUE ELES QUEREM É TACHO”



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A solução de um governo de esquerda, inédita na democracia portuguesa de governos constitucionais, a que Paulo Portas chamou “geringonça”, leva quase um ano à frente do país. É certo que é um governo PS, em que o Bloco e o PCP apenas dão o apoio parlamentar, mas mesmo assim não deixa de ser inédita esta geringonça. Mas a questão fundamental reside em saber em quê este governo mudou o país nestes quase doze meses. Havia muito a esperar de um governo PS, e muito mais de um governo PS apoiado pelo BE e pelo PCP. Esperava-se que as medidas draconianas impostas pelo governo anterior de Passos Coelho fossem invertidas, principalmente a nível das políticas fiscais. Ora nada disso aconteceu: o colossal aumento de impostos, anunciado pelo então ministro das finanças Vítor Gaspar, continua em vigor, sem que os escalões de IRS sejam alterados. Na verdade, o governo de António Costa criou mais impostos a juntar aos que tinham sido inventados pelo governo PSD/CDS.  Este governo, com o apoio da chamada esquerda radical tem vivido de uma ou outra reposição que em nada muda a crise criada pelos especuladores do grande capital com a ajuda de uma direita neoliberal traidora de Portugal. Essa direita que quis prescindir da soberania nacional para entregar o país a uma troika de interesses capitalista. E as pessoas, que deviam ser o cerne de um governo, que se lixem.
O certo é que a crise continua, a dívida externa não diminuiu, o desemprego se baixou foi à custa de medidas criadas pelos centros de emprego para riscar os desempregados que não cumprem as ordens atentatórias da sua dignidade. As prestações sociais, como o RSI continuam em valores indignos; há pessoas – algumas centenas, pelo menos – cujo rendimento é zero, vivendo da ajuda e dependência de familiares ou amigos. O país não recuperou do empobrecimento imposto pelo governo de Passos Coelho e pela troika.
Perante isto o Bloco de Esquerda e o PCP, cuja atitude até aqui tinha sido sempre crítica de tudo, murcharam. Vão tecendo uma ou outra crítica, mas no essencial apoiam o governo de António Costa, com uma disciplina militar. BE e PCP estão por isso irreconhecíveis. E assim a geringonça funciona, perante uma oposição impotente que é responsável pela criação da crise que vivemos.
Porque mesmo que a palavra crise tenha deixado de ser usada no discurso mediático, é esse o sentimento que continua a vigorar entre os portugueses – o país continua em crise. A direita fez tudo para que a crise se instalasse na cabeça das pessoas, e por consequência na economia real. Conseguiu. Graças ao governo Passos Coelho, instalou-se uma mentalidade austeritária em Portugal que prolonga a anemia económica. É uma mentalidade salazarenta que mostra que o ditador ficou entranhado no país como uma nódoa.
Volto à geringonça. O que ela mostra são duas coisas essenciais: 1) que mesmo entre partidos da chamada esquerda radical, Bloco de Esquerda e PCP, que tinham uma atitude essencialmente crítica, chega uma altura em que a sede do poder é maior. E para isso estão dispostos a engolir sapos, a abdicar das soluções que apresentavam (como a renegociação da dívida) em favor de um lugar ao lado do poder que talvez, se a solução geringonça funcionar, pode vir a tornar-se num lugar no poder, uma cadeira no governo. Como a história do Bloco prova, na política nunca se pode ser eternamente Peter Pan. 2) Não correspondendo esta solução a uma real melhoria da vida dos portugueses, e agora que todos os partidos com representação parlamentar passaram pelo poder, sem apresentarem soluções para a vida das pessoas, mas sobretudo interessados no poder pelo poder, seguindo o conselho de Maquiavel, como reagirão os votantes em próximas eleições? Os portugueses são cordatos, conservadores mesmo quando votam no Bloco ou no PCP – a tal nódoa ou nuvem salazarista que paira sobre o país – e não têm comportamentos “perigosos” como os islandeses. Mas o que fica de uma democracia parlamentar quando se perde a confiança nos partidos que estão no hemiciclo? Fica, talvez, a expressão popular que é uma atitude e crítica anarquista a este sistema político: “o que eles querem é tacho”.  

sexta-feira, setembro 30, 2016

TEXTOS E PRETEXTOS - LITERATURA E FUTEBOL

Ao número 20 a revista Textos e Pretextos (do Centro de Estudos Comparatistas da FLUL) abordou a temática da literatura e do futebol. A revista conta com ensaios de António Sá Moura, Norberto do Vale Cardoso e Nuno Domingos; textos (depoimentos, pequenas ficções, crónicas) de Álvaro Magalhães, Eric Nepomuceno, Gonçalo M. Tavares, Inês Fonseca Santos, João Assis Pacheco, Jorge Almeida e Nuno Amado, Rui Miguel Tovar e Ruy Castro. A terminar uma entrevista ao escritor brasileiro Nelson Rodrigues e uma bibliografia sobre literatura e futebol.

quarta-feira, agosto 31, 2016

AUGUSTO MONTERROSO

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A TARTARUGA E AQUILES

Finalmente, segundo o cabograma, na semana passada a Tartaruga chegou à meta.
Em conferência de imprensa declarou modestamente que sempre temeu perder, já que o seu rival lhe pisou os calcanhares o tempo todo.
De facto, uma décima-milésima-trilionésima de segundo depois, com uma seta e amaldiçoando Zenão de Eleia, chegou Aquiles.
Augusto Monterroso, A ovelha negra e outras fábulas, Angelus Novus, 2008, p. 31

domingo, julho 10, 2016

CAMPEÕES EUROPEUS

 
Durante longos anos a grande referência em termos de selecção nacional foi o 3º lugar no Mundial de Inglaterra, com uma selecção onde predominava Eusébio. Depois, há 32 anos, em França, foi uma derrota nas meias-finais com uma selecção de que faziam parte jogadores esquecidos mas grandioso no futebol português (Fernando Gomes, Chalana, Bento, Frasco, Sousa, Jordão, Néné, Oliveira... nem todos jogaram em 1984, mas todos fazem parte de uma geração grandiosa do futebol português). Depois houve Figo, Futre e outros; a final perdida frente à Grécia em casa há 12 anos. E agora, quando no início deste Euro 2016, Portugal não era apontado como favorito; quando o seleccionador Fernando Santos disse que só regressava a Portugal no dia 11 e todos se riram. Hoje o "impossível" realizou-se: Portugal tornou-se campeão da Europa, dessa Europa onde é chamado de porco, dessa Europa que políticamente nos quer impôr sanções.
Esta vitória da selecção nacional em França, frente à França, tem um relevo desportivo de décadas, mas também um relevo político e social de décadas. É como que uma vingança pelo sofrimento de mais de um milhão de migrantes que, por vezes nas piores condições foram ganhar a vida para terras gaulesas (veja-se o exemplo da mala de cartão de Linda de Suza, as barracas onde em finais dos anos 60 os portugueses viviam nas mais precárias condições).

quinta-feira, junho 30, 2016

VASCO GONÇALVES

 
É verdade que, em toda a nossa história, houve sempre portugueses que, por espírito mesquinho de classe, estiveram de cócoras diante do estrangeiro, prontos a sacrificarem  os interesses da Pátria a interesses não-nacionais. Todos nós conhecemos os nomes de tais homens, e execrámo-los. Durante séculos e séculos, como bicho dentro da maçã, o partido castelhano corrompeu e desfibrou o País até levar aos opróbios de 1580; mais perto de nós, foram os integralistas (ora de imitação francesa, ora de figurino germanófilo e nazi) que se entregaram à mesma tarefa. Hoje, erguem-se vozes a cantar loas à Europa - não à Europa dos trabalhadores, claro, mas à Europa dos monopólios e das sociedades multinacionais. Ontem, houve quem servisse Castela contra a arraia miúda; hoje há quem há quem deseje colocar as classes laboriosas portuguesas na situação de fogueiros da fornalha da Europa capitalista...

Vasco Gonçalves, excerto de discurso de 18 de Agosto de 1975 em Almada (era então primeiro-ministro), in Exortação aos Poetas, col. Memória Perecível, da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 2015, p. 39

terça-feira, maio 31, 2016

AND THE CAMÕES GOES TO... RADUAN NASSAR

 
    A obra de Raduan Nassar, o vencedor do Prémio Camões 2016, é mínima: apenas três pequenos livros, Lavoura Arcaica (1975), Um Copo de Cólera (1978) e Menina a Caminho (1997), todas as obras editadas em Portugal pela Relógio d´Água e Cotovia. No entanto, para uma obra em prosa sobreviver ao tempo e o seu autor ser considerado um dos maiores escritores brasileiros, ombreando com nomes como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, temos que estar perante uma prosa fortíssima. 
    Foi isso mesmo que entendeu o júri deste ano do Prémio Camões constituído por Miguel Honrado (secretário de estado da Cultura), Paula Morão e Pedro Mexia (por Portugal), Flora Sussekind e Sérgio Alcides do Amaral (pelo Brasil), Lourenço do Rosário (Moçambique) e Inocência Mata (São Tomé).
    Raduan Nassar nasceu em 1935, em Pindorama (S. Paulo), filho de pais de origem libanesa. Após frequentar vários cursos universitários, sem concluir nenhum, começou a interessar-se pela literatura e pela agricultura - chegou a presidir à Associação Brasileira de Criadores de Coelhos. Nos anos 1970 publica os dois livros fundamentais da sua escassa obra, depois abandona a literatura para se dedicar em exclusivo à agricultura. 
    Recentemente Raduan Nassar apareceu em público para apoiar a destituída presidente do Brasil, Dilma Roussef.