domingo, maio 24, 2009

VICTOR BRAUNER E LUIZA NETO JORGE













UM QUADRO DE BRAUNER

Brauner põe-se a pintar
a procura o fundo apego
do homem à pele do medo

Desfaz as linhas do corpo
como se linhas da mão
dá ao sexo o lugar
que dá à flor

Brauner pinta com a língua
ou outro orgão do amor
o que o braço não podia

tanto é a cor mais dura
com o peso da sabedoria

Mostar um pássaro na mão
é o que Brauner consegue
mas tão somente essa mão
pica no pássaro que a fere

Mostar o orifício oco
da orelha colocada
no lado onde a sentimos
ouvir e morrer calada
sobre o veneno do bico
tentando beijá-lo abri-lo
tentando ouvi-lo escutá-lo

O ser que pode ser
aquilo que Brauner não quer ser
move-se na tela com o medo

de quem perdeu a sombra
num deserto ao meio-dia
uma claustrofobia
do espírito dentro da luz

Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio & Alvim, 1993, pp. 82-83

sábado, maio 09, 2009

I É JORNAL


Numa altura em que os jornais em papel começam a anunciar o seu fim, criar um novo título é uma enorme ousadia. Essa ousadia partiu do grupo sojormedia ao criar o “i”, o diário que foi lançado na passada quinta-feira, dirigido por Martim Avilez Figueiredo. Com um formato menor que os tablóides e agrafado, o “i” inspira-se no modelo do jornal conservador espanhol ABC, e tal como este perece ser um jornal de direita, embora com alguns problemas em afirmar-se como tal. Do ponto de vista gráfico, e de conteúdo aproxima-se de uma revista, ou melhor, de um suplemento como o P2 do Público – e será talvez com o jornal da Sonae que o “i” terá de se confrontar numa guerra que pode decidir a sobrevivência de um ou outro. Porque é duvidoso que o mercado português esteja receptivo a mais um jornal de referência (se se pode considerar o actual Diário de Notícias um jornal de referência).
O que trouxe de novo o “i”? Nos três números já publicados é visível a pretensão de ter uma agenda própria, algo que faltava à imprensa e jornalismo português, muito marcado pelas mesmas notícias repetidas na rádio, nos telejornais e nos jornais. O já referido formato; a vontade por ter exclusivos. O “i” poderia ser um novo Independente, em formato diário (o director e uma subdirectora foram jornalistas do Independente) mas embora se situe num campo político próximo falta-lhe a criatividade de um MEC nos anos oitenta e a qualidade dos colaboradores.O resultado acaba por ser positivo, mas esperava mais. Esperava, sobretudo, para alguém que tem a ousadia de criar um novo jornal diário uma maior preocupação com o lado estético (o que inclui a escrita), colunistas de maior qualidade (esperava pessoas vindas de blogues), uma redacção com nomes mais conhecidos, e um maior destaque para a cultura.

segunda-feira, abril 27, 2009

BIG BROTHER, 8


PODE HAVER UMA DERIVA TOTALITÁRIA EM PORTUGAL?


O que me preocupa não é nenhum dos cenários clássicos das ditaduras do passado, mas sim a deriva autoritária no presente, porque, pela sua inconsciência, desleixo e, nalguns casos, ideias muito erradas sobre a democracia, não possam estar a preparar um mundo que será o ideal para exercer o poder como "mando". Se aparecer alguém que queira "mandar" mais do que deve tem à sua disposição muitos instrumentos que, em plena democracia, lhes estamos a preparar.

(...)

Mas não é apenas a conjuntura, muito dependente das vicissitudes do Primeiro-ministro, é também a estrutura de um estado que está a coleccionar leis e práticas muito pouco democráticas, com pretexto na segurança, no combate à fuga ao fisco, no reforço unilateral dos direitos do estado em detrimento dos direitos dos cidadãos, na rarefacção dos lugares onde o indivíduo é livre sem ser controlado electronicamente em todos os seus actos. Eu nem quero imaginar o que pode fazer uma variante de uma PIDE moderna com os instrumentos e as bases de dados a que pode aceder no estado, desde a do ADN, à da Via Verde, ao Cartão do Cidadão e os seus "números" interligados, com as escutas e procuras na Internet e nos telemóveis, às câmaras de videovigilância que proliferam por todo o lado, etc., etc. De manhã à noite, todo o meu percurso, o dinheiro que gasto, os livros que compro, onde almoço e com quantas pessoas, se passo pela Rua do Carmo, se entro no Sheraton ou se vou a um bar de alterne, que palavras procuro no Google, os bilhetes de avião ou comboio, tudo, tudo, tudo pode hoje ser procurado, sistematizado, devassado. Com o modo como o PS quer acabar com o sigilo bancário, com o crescente fim do ónus da prova pelo estado no fisco e agora em tudo o resto, estamos a construir uma sociedade vigiada e controlada, sempre pelas melhores e mais "eficazes" razões, mas que é um maná para quem começar a abusar da lei.
E mais: se houver uma deriva totalitária ela começará por aí, pela utilização destes novos instrumentos instalados por governantes yuppies sem respeito pelas liberdades, e para quem a palavra "indivíduo" é um anátema e o estado um dogma racional. Todas as comissões reguladoras, todas as "entidades", todas as múltiplas instâncias que nos deviam "proteger" da violação dos nossos dados, defendendo a nossa privacidade, acabarão por ser controladas pelo melhor método, pela escolha das pessoas certas para os lugares certos, pela crescente aprovação de leis que as tornam ineficazes, pela redução ao quixotesco, arcaico e pouco moderno dessas preocupações antiquadas com a liberdade contra a eficácia e comodismo das novas tecnologias.
Neste 25 de Abril preocupa-me estarmos a construir a perfeita sociedade totalitária em plena democracia. A preparar o órgão, a polir a função. Só falta haver alguém que o queira usar, que tem tudo preparado. Por nós.



José Pacheco Pereira, in Público de 25-04-09 e Abrupto, selecção e sublinhados meus.

sábado, abril 25, 2009

A LIBERDADE NÃO ESTÁ A PASSAR POR AQUI


Quando se fala de liberdade como algo plenamente atingido, algo vai mal no nosso reino. Está-se a escamotear que a liberdade política (e estou tão só a falar da liberdade política, porque a liberdade em sentido lato é impossível de alcançar) é algo que se constrói no dia-a-dia, algo que ameaça subitamente desaparecer perante novos poderes. Existe um discurso político estúpido que dá a liberdade política como algo de completamente adquirido e a censura como algo que acabou com o 25 de Abril. Nada mais errado. Na verdade existem sectores da sociedade portuguesa que nunca foram abalados pela revolução; outros adaptaram-se à democracia espectacular.
Os magistrados são um dos poucos sectores da sociedade portuguesa que se mantêm tão fascista quanto eram antes de 25 de Abril. Alguns acontecimentos, bastante mediatizados, ocorridos nos últimos anos dão-nos a prova disso. No caso Casa Pia, assistiu-se ao linchamento público de alguns membros do Partido Socialista; à prisão preventiva de pessoas que, ou já foram declaradas inocentes, ou ainda aguardam o final do julgamento. Mas o caso Casa Pia veio apenas mostrar como era a justiça portuguesa, como era tão fácil acusar e colocar na cadeia qualquer pessoa. E mesmo depois da revisão do Código do Processo Penal, motivada talvez pelo caso Casa Pia, continua a ser bastante fácil para os magistrados (juízes e Ministério Público) restringir a liberdade de pessoas por simples calúnias. Tudo se passa num sistema paralelo, fortemente corporativo e sedento de um poder que não tem – o poder político. É um sistema onde predomina a mediocridade, a estupidez, a ignorância (qual é a formação dos nossos magistrados? O que é necessário para se ser juiz ou delegado do ministério público? Que formação em Ética, por exemplo, têm estes doutores e doutoras?), a insensibilidade, a ausência de reflexão sobre o sistema judicial, que termina num lugar gerador por excelência de crime: a prisão. A sociedade apenas pede justiça, não quer saber como ela é aplicada, que crimes se cometem nas prisões. É claro que sem o sentimento de segurança não há liberdade – liberdade, por exemplo, de circular na rua à noite. Mas essa é uma questão a que os magistrados estão a leste.
O que importa a determinados magistrados vai para além da sua carreira, de acusar, de vencer processos, por vezes de forma promíscua pelas relações que existem entre Ministério Público e juízes. O que importa a determinados magistrados é alargar o seu campo de acção, fazer da justiça um terreno de salvação de lutas políticas perdidas. Um caso concreto: Maria José Morgado. Esta ex militante maoista dedica-se agora a perseguir corruptos especialmente no futebol. O futebol cheira a um mundo mafioso, de facto. Mas Maria José Morgado, na sua ânsia contra os corruptos, no seu protagonismo, faz demasiado lembrar a sede de sangue que a ex dirigente do PCTP-MRPP teria numa chamada democracia popular como a China.
Outro caso concreto: Cândida de Almeida. A procuradora do DCIAP tornou-se na responsável por um processo demasiado quente: o Freeport. Foi ela quem foi buscar o processo que envolve, ainda que indirectamente, o nome de Sócrates. Ou seja, e se não estou errado, existindo este processo há mais de quatro anos, porque razão Cândida de Almeida o foi “desenterrar” agora, nas vésperas de eleições? Porque o não fez antes? A batata parece quente demais para a procuradora que, arrependida, faz agora a defesa do Primeiro-Ministro. Não podia estar calada? Creio que Cândida de Almeida tem a ilusão que consegue estar acima do Presidente da República: enquanto defender Sócrates, ela está a segurar o governo, se deixar de defender o PM está a demitir o governo.

segunda-feira, abril 20, 2009

J. G. BALLARD (1930-2009)


De J. G. Ballard lembro-me de um documentário transmitido pela RTP-2 onde era visível a denúncia do mundo de betão das cidades dormitórios – um mundo desertificado que Ballard combateu através da sua obra. Não foi só um escritor de ficção científica, mas talvez tenha sido dos escritores de FC que mais notoriedade teve, mercê das adaptações das suas obras literárias ao cinema. Pensar o mundo de hoje implica estar atento ao que a ficção científica nos tem legado, e por isso a obra de Ballard é uma obra para ser pensada. Mas, ao mesmo tempo uma obra para ser usufruída, entre o apocalipse e a utopia.
Do livro As Vozes do Tempo (editado pela Caminho, em 1992, numa saudosa colecção que misturava ficção cientifica e policial) fica aqui o primeiro parágrafo do conto “O jardim do tempo”:
Ao cair da noite, quando a imponente sombra da Villa Palladin cobria o terraço, o conde Axel abandonou a biblioteca e desceu, por entre as flores do tempo, a larga escadaria rococó. A figura alta, imperiosa, com um paletó de veludo preto, um alfinete de gravata em ouro, cintinlando por debaixo da barba estilo George V, e uma bengala firmemente segura na mão de luva branca, observava indiferente as delicadas flores cristalinas. Da sala de música, enquanto a mulher tocava um rondó de Mozart, ouvia-se o som do cravo que ecoava e vibrava nas pétalas translúcidas.

domingo, abril 05, 2009

ANTÓNIO RAMOS ROSA


O GRITO CLARO

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

António Ramos Rosa, Antologia Poética, D. Quixote, 2001, p.41

quarta-feira, março 25, 2009

ALBANO MARTINS


Entre cardos maduros, entre esporas
e espigas loiras duma seara azul,
no bafo sedoso, sincrónico das horas

passam rápidos, sunâmbulos cavalos
ao encontro da música. Perplexas
guitarras acordam e suspendem
a opressa respiração do tempo,
o hálito nocturno, o ritmo
do universo fundido em nossas mãos.

Albano Marins, Frágeis são as Palavras - antologia pessoal, ed. Asa, 2004, p. 23

quinta-feira, março 12, 2009

PARA VOTAR NO MACACO ADRIANO?


[O]s detentores de um Bilhete de Identidade (BI) válido que nunca se recensearam passam a estar automaticamente inscritos na freguesia de residência identificada no BI; os portadores do Cartão de Cidadão ficam também automaticamente inscritos na freguesia "correspondente à morada que tenham indicado no pedido do cartão"; e procedeu-se à inscrição dos jovens com 17 anos, que podem votar se, à data das eleições, completarem 18 anos. No artigo 3.º da lei 27/2008 pode ler-se, no ponto 2, que "todos os cidadãos nacionais, residentes no território nacional, maiores de 17 anos, são oficiosa e automaticamente inscritos na base de dados do recenseamento eleitoral". E mais à frente, no artigo 12.º, ponto 3, define-se que "para efeitos de verificação da identificação, eliminação de inscrições indevidas, por mudança de morada, por óbito ou pela detecção de situações irregulares, a DGAI, em colaboração com as entidades públicas competentes, assegura a interconexão entre a BDRE [base de dados do recenseamento eleitoral] e os outros sistemas de informação relevantes". Contactado pelo PÚBLICO, o director da Administração Eleitoral, Jorge Miguéis, explicou que dos 650 mil novos eleitores mais de 300 mil "são jovens entre os 18 anos e os 25 anos", que, apesar do recenseamento ser obrigatório, nunca se inscreveram nos cadernos eleitorais. Os restantes são eleitores "de outras faixas etárias que nunca se inscreveram", sendo que a maior parte deles "residem no estrangeiro, mas mantêm a residência portuguesa no seu Bilhete de Identidade". Com a norma que institui a inscrição automática no recenseamento (através do Cartão de Cidadão e do BI) o cartão de eleitor deixará de ser emitido. Refira-se, porém, que o número de eleitor não consta do Cartão de Cidadão, pelo que os portadores deste último têm obrigatoriamente de saber o seu número de inscrição eleitoral no caso de quererem exercer o seu direito de voto. Por isso, a DGAI colocou ontem um anúncio nas páginas do PÚBLICO, no qual informa que os cidadãos podem aceder ao seu número de eleitor e respectiva freguesia através do site http://www.recenseamento.mai.gov.pt/ ou enviando uma mensagem por telemóvel para o número 3838.

(Maria José Oliveira, Público, p. 5, edição de 12-03-09)

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

TRADUÇÕES, 1:TRÊS POEMAS DE ANNE SEXTON


QUANDO O HOMEM ENTRA NA MULHER

Quando o homem
entra na mulher,
como a onda batendo contra a costa,
de novo e de novo,
e a mulher abre a boca com prazer
e os seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó
de modo que nunca
possam voltar a separar-se
e a mulher
sobe a uma flor
e engole o seu caule
e Logos aparece
e solta seus rios.

Este homem,
esta mulher,
com a sua dupla fome,
tentaram atravessar
a cortina de Deus,
e por um instante conseguiram,
ainda que Deus
na Sua perversidade
desate o nó.



PALAVRAS

Tem cuidado com as palavras
mesmo as milagrosas.
Pelas milagrosas nós fazemos o melhor possível,
por vezes são como uma multidão de insectos
que não nos deixa uma picada mas um beijo.
Podem ser tão boas como dedos.
Podem ser tão seguras como a rocha
onde te sentas.
Mas também podem ser ao mesmo tempo margaridas e [amachucadas.

Contudo, estou apaixonada pelas palavras.
São pombas que caem do tecto.
São seis laranjas santas pousadas no meu regaço.
São as árvores, as pernas do verão,
e o sol, seu impetuoso rosto.

No entanto, falham-me com frequência.
Eu tenho tantas coisas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.

Mas as palavras não são suficientemente boas,
as erradas beijam-me.
Por vezes voo como uma águia
mas com as asas de uma carriça.

Mas tento ter cuidado
e ser amável com elas.
As palavras e os ovos devem manipular-se com cuidado.
Uma vez partidas há coisas
impossíveis de reparar.




DEPOIS DE AUSCHWITZ

Raiva
tão negra como um gancho,
alcança-me.
Cada dia,
cada nazi
pega, às oito da manhã, num bebé
e serve-o para o pequeno-almoço
com pão frito.
E a morte olha despreocupada
e limpa a sujidade que tem debaixo das unhas.

O homem é maldade,
digo em voz alta.
O homem é uma flor
que poderia ser queimada,
digo em voz alta.
O homem
é um pássaro cheio de barro
digo em voz alta.

E a morte olha despreocupada
e arranha o ânus.

O homem, com seus pequenos e rosados dedos dos pés,
com seus dedos milagrosos
não é um templo
mas um anexo,
digo em voz alta.
Que o homem nunca mais levante sua chávena de chá.
Que o homem nunca mais escreva um livro.
Que o homem nunca mais calce um sapato.
Que o homem nunca mais eleve seus olhos
numa suave noite de junho.
Nunca. Nunca. Nunca. Nunca. Nunca.
Digo isto em voz alta.

E suplico ao Senhor que não ouça.

Versão dos poemas “When man enters woman”, “Words” e “After Auschwitz” de Anne Sexton (a partir de uma tradução espanhola e do original) por ASM

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

WORLD PRESS PHOTO 2008: EM BUSCA DA CRISE

O fotografo norte-americano Anthony Suau venceu o prémio de melhor fotografia de 2008 do World Press Photo. A imagem mostra um polícia a revistar uma casa abandonada no Ohio, EUA, e faz parte de um trabalho publicado apenas no site da revista Time, em Março do ano passado, sobre a crise económica nos Estados Unidos. O fotografo está há dois meses sem trabalho...

sábado, fevereiro 07, 2009

JOSÉ AMARO DIONÍSIO


FINAL

Sente o coração bater contra o rio onde o rio já não existe. Que pode fazer um homem que desloca a fronteira nos seus passos? São sons que provocam corredores sem saída, e batem no ar, e roem, e voltam para trás, e recomeçam, e por cima há um odor a cadáver no céu em ruínas. Sim, nem de outrora um pouco de vida. É um esplendor de luto, ponto final. E isso paga-se todos os dias, mesmo quando o dia todo se gasta a fugir disso. No caminho taberna a taberna há sempre uma toalha ferida pelo exílio, e a proximidade das vozes só serve para esconder a manhã inútil. Quanto à literatura, francamente, o cheiro da montra não vale esta bifana em Vendas Novas. Acham pouco? Peçam duas.


Fonte do Sol, Outubro de 2007




José Amaro Dionísio, Nada Serve, Averno, 2008, p. 25

sábado, janeiro 31, 2009

LIQUIDADO POLITICAMENTE


Nesta altura, tendo em conta as últimas evoluções do caso Freeport, pode-se dizer, com pouca margem de erro, que Sócrates está liquidado politicamente. Porquê? Porque dificilmente o actual PM poderá sobreviver politicamente, mesmo que a justiça não o acuse, aos factos apresentados pelos meios de comunicação social que fazem um outro tipo de investigação, paralela à investigação judicial, e sobretudo são exímios em acusar. Dificilmente José Sócrates, mesmo não sendo acusado pela justiça, conseguirá “limpar” a sua imagem. A suspeita, a forte suspeita, de corrupção no caso Freeport já se entranhou na imagem de Sócrates. Como poderá o actual PM concorrer às próximas eleições legislativas e continuar a liderar o PS com esta mancha? Torna-se, perante esta situação, evidente a necessidade de eleições antecipadas. A grande incógnita dessas eleições, a ocorrerem, será quem vai ser o novo líder do PS e como vai o eleitorado reagir perante esse líder.

terça-feira, janeiro 06, 2009

3 ANOS


Este blogue fez três anos no passado dia 3. Graças à estupidez e ineficácia da sapo e PT Comunicações não foi possível publicar no dia 3 o post de aniversário.

terça-feira, dezembro 30, 2008

LIVROS DE 2008


Musil, Pessoa e Herberto Helder marcaram, no campo editorial, o ano que agora finda. De Musil a Dom Quixote deu à estampa, em tradução de João Barrento, esse grande romance (pelo menos no número de páginas) que é O Homem sem Qualidades. Sobre Pessoa, que em finais de 2005 passou a domínio público, e do qual se comemoraram este ano os 120 anos do nascimento, foram lançadas uma série de edições importantes e monumentais, tal como a obra do poeta. José Blanco publicou na Assírio & Alvim a ciclópica bibliografia Pessoana em dois volumes de mais de mil páginas; em finais de Novembro a editorial Caminho publicou o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins e com a colaboração de cerca de 80 especialistas em Pessoa e no Modernismo (quer literário quer nas artes plásticas). Teresa Sobral Cunha publicou, na Relógio d’ Água, a sua versão desse livro maior da literatura portuguesa que é o Livro do Desassossego (recorde-se que esta pessoana participou na edição princeps do Livro, editada em 1982, sob a organização de Jacinto do Prado Coelho). E como a arca de Pessoa parece não ter fundo, Ana Maria Freitas organizou para a Assírio & Alvim as “novelas policiárias” do poeta sob o título Quaresma Decifrador. O ano Pessoano contou ainda com um congresso e um polémico leilão de uma parte do espólio do poeta dos heterónimos.
Se Pessoa é a figura mais importante da literatura portuguesa do século XX, há quem não tenha dúvidas em considerar Herberto Helder como a segunda figura. Ora este ano, e depois de um silêncio de 14 anos, Herberto voltou a publicar um livro com originais. A Faca não Corta o Fogo – súmula & inédita (Assírio & Alvim) terá sido o livro mais procurado do ano, esgotando a tiragem de três mil exemplares numa semana.
Em ano de crise na economia o mercado livreiro e editorial esteve agitado. Paes do Amaral, antigo patrão da TVI, mudou-se para os livros (embora do que goste realmente é de corridas de automóveis) e formou o grupo Leya que adquiriu editoras de peso no mercado livreiro como a Dom Quixote, a Caminho e a Asa. A estratégia agressiva do grupo causou polémica na Feira do Livro. Já no mercado livreiro um mega-projecto de livraria, a Byblos, acabou por falir enquanto a FNAC acabava com os descontos de 10 por cento.
Mas voltemos aos livros publicados em 2008. No que respeita ao romance Maria Velho da Costa publicou Myra (Assírio & Alvim), Mafalda Ivo Cruz apareceu com O Cozinheiro Alemão (Relógio d’ Água), Teresa Veiga, uma autora bastante discreta, publicou o livro de contos Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín (Cotovia), e continuando com mulheres, Ana Teresa Pereira publicou dois livros: O Fim de Lizzie (BI) e O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Relógio d’ Água). Dois mil e oito foi também ano de Saramago e Lobo Antunes. Do Nobel, tivemos A Viagem do Elefante (Caminho), e do pretendente ao Nobel, Arquipélago da Insónia (Dom Quixote).
Na poesia portuguesa, para além do já destacado livro de Herberto Hélder, a colheita não terá sido das piores mas também não foi das melhores. Mesmo assim tivemos Armando Silva Carvalho com O Amante Japonês (Assírio & Alvim), Nuno Júdice com A Matéria do Poema (Dom Quixote), Luís Quintais com Mais Espesso que a Água (Cotovia), Manuel Gusmão com A Terceira Mão, o regresso que se saúda de Fátima Maldonado com Vida Extenuada (& etc) ou ainda a consolidação de um novo nome para a poesia portuguesa do século XXI: Bénédicte Houart com Vida: Variações (Cotovia). E, já agora a referência a três revistas: a Telhados de Vidro, que fez cinco anos de uma cuidada e criteriosa publicação, a Relâmpago que preserva a memória de Luís Miguel Nava dedicando números bi-anuais a alguns dos maiores poetas portugueses e também a temáticas relacionadas com a poesia, e a Criatura, revista que revelou novos poetas. Na poesia traduzida assinale-se o trabalho que a Cotovia vem fazendo (a editora de André Jorge comemorou este ano 20 anos de actividade) na tradução de clássicos – desta vez Pedro Braga Falcão traduziu as Odes de Horácio.
Na ficção traduzida, e para além do já referido Homem Sem Qualidades, há uma série de autores a referir, muitos dos quais foram alvo de destaque da cada vez mais parca imprensa literária portuguesa. Julio Cortázar com Rayuela (Cavalo de Ferro), Roberto Bolaño com Os Detectives Selvagens (Teorema), ou ainda, para continuarmos no mesmo idioma, Bomarzo do argentino Manuel Mujica Lainez foram alguns dos autores mais festejados pelo jornalismo cultural que se vai fazendo por cá. Mas também houve, entre muitos outros, dois livros de Thomas BernhardCorrecção (Fim de Século) e Árvores Abatidas (Assírio) – e mais de Robert Walser, Histórias de Amor (Relógio d’ Água), livro de micro-narrativas ou micro-ficção num ano em que se publicou a Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa (Exudus) resultado, em parte, da blogosfera.
E para terminar, ou quase, o ensaio. Do que me lembro e do que constato por outros balanços, o ensaio (reunindo neste grupo livros de filosofia, ciências sociais, etc) tem vindo a perder terreno no mercado editorial. Refiro apenas dois títulos: Mil Planaltos de Gilles Deleuze e Félix Guatarri (Assírio & Alvim) e Camaradas – uma história mundial do comunismo de Robert Service (Europa-América). E lembro-me agora dois livros de George Steiner e um de Harold Bloom, Onde Está a Sabedoria (Relógio d’ Água).
Esta tentativa de fazer o balanço dos livros que se publicaram em 2008 é, como todos os balanços, imcompleta. Haveria muito mais para dizer, outros livros para acrescentar a esta já longa lista.










quinta-feira, dezembro 25, 2008

Daniel Jonas


O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.

O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali destendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo

quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.

Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica ali a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.

Daniel Jonas nasceu no Porto em 1973. Publicou quatro livros de poesia: O Corpo está com o Rei (AEFLUP, 1997), Moça Formosa, Lençois de Veludo (Cadernos do Campo Alegre, 2002), Os Fantasmas Inquilinos (Cotovia, 2005, do qual se retirou o poema aqui publicado) e Sonótono (Cotovia, 2007, com o qual recebeu o Prémio Pen Clube de Poesia em ex-aequeo com Helder Moura Pereira). Como dramaturgo é autor da peça Nenhures (Cotovia, 2008). Na função de tradutor verteu para português, entre outros, O Paraíso Perdido de Milton e recentemente Ao Arrepio de Joris-Karl Huysmans, ambas as traduções para a Livros Cotovia.

sábado, dezembro 20, 2008

António Carlos Cortez


PINTURA

Monet tens a impressão da realidade
e ela não pode ser de outro modo
Misturas na tela as cores primárias
como hoje a pintora no seu atelier
traçando a negro a figura humana

A poesia é talvez o momento
em que a pintura é exercida
de outra forma Um défice de realidade
nos olhos Nesse tempo o poema
surge para um dizer novo

António Carlos Cortez nasceu em Lisboa em 1976. Escreve sobre poesia no Jornal de Letras e tem artigos publicados nas revistas Relâmpago e O Escritor. Como poeta estreou-se em 1999 com Ritos de Passagem a que se seguiram Um Barco no Rio (2002), A Sombra no Limite (2004) e À Flor da Pele (2007) do qual se retirou o poema que aqui apresentamos. É ainda autor de um livro de crítica de poesia: Nos Passos da Poesia (2005).

quarta-feira, dezembro 10, 2008

MANOEL DE OLIVEIRA: 100 ANOS


O que espanta em Manoel de Oliveira, para além da obra cinemetográfica, são os 100 anos. Em plena actividade, Oliveira permanece como se o tempo não tivesse passado por ele; como se a sua vida fosse um filme realizado por ele: planos longos, fixos, personangens entre Camilo e Agustina que não são do nosso tempo. Em Manoel de Oliveira encontramos vida e obra cristalizadas num fotograma, como se o tempo não existisse, como se a água do rio deixasse de correr. Talvez seja isso a juventude.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

EMILY DICKINSON (3 POEMAS)


Como se o mar apartando-se
Mostrasse um outro mar -
E esse - um outro - e dos Três
Apenas se pudesse suspeitar -

De Sucessões de Mares -
Adversos à Costa -
Eles próprios a Margem de Mares por ser -
A eternidade - é Isso -

*

Esta é a minha carta ao Mundo
Que nunca Me escreveu -
As Notícias simples que a Natureza contou -
Com branda Majestade

A sua Mensagem está destinada
A mãos que não consigo ver -
Pelo Seu amor - Afáveis - camponesas -
Julguem-me brandamente - a Mim

*

O Cérebro - é mais amplo do que o Céu -
Pois - colocai-os lado a lado -
Um o outro irá conter
Facilmente - e a Vós - também -

O Cérebro é mais fundo do que o mar -
Pois - considerai-os - Azul e Azul -
Um o outro irá absorver -
Como as esponjas - à Água - fazem -

O Cérebro é apenas o peso de Deus -
Pois - Pesai-os - Grama a Grama -
E eles só irão diferir - se tal acontecer -
Como a Sílaba do Som -

Emily Dickinson, Esta é a minha carta ao mundo e outros poemas, Trad. Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, col. Gato Maltês, 1997, pp. 33, 53 e 61.

sexta-feira, novembro 28, 2008

CLAUDE LÉVI-STRAUSS: 100 ANOS

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss faz hoje 100 anos. E está vivo para assistir ao seu centenário. Talvez mais vivo que a sua teoria estruturalista, mas isso é outra questão.

quinta-feira, novembro 20, 2008

DAVID LYNCH



BOB'S BIG BOY

Costumava ir ao restaurante Bob's Big Boy praticamente todos os dias desde a metade dos anos setenta até ao início dos oitenta. Pedia um batido, sentava-me e pensava.
Existe uma certa segurança em refletir num restaurante. Podemos tomar o nosso café ou batido e partir para zonas estranhas e obscuras e regressar sempre à segurança do restaurante.

TERAPIA

Fui a um psiquiatra uma vez. Estava a fazer uma coisa que se tinha tornado um padrão na minha vida e pensei: Bem, devia ir falar com um psiquiatra. Quando entrei na sala, perguntei-lhe: «Acha que este processo poderia, de alguma maneira, danificar a minha criatividade?» E ele respondeu: «Bem, David, tenho que ser sincero: acho que sim.» Apertei-lhe a mão e fui-me embora.

David Lynch, Em Busca do Grande Peixe, Estrela Polar, 2008

domingo, novembro 02, 2008

O GOVERNO DO CAMARADA SÓCRATES NACIONALIZOU O BPN

Os trabalhadores do sector bancário, e outros populares, manifestaram hoje, nas ruas de Lisboa, o seu regozijo pelo reinicio das nacionalizações da banca, depois do camarada ministro das finanças, Teixeira dos Santos, ter anunciado a nacionalização do BPN.

segunda-feira, outubro 20, 2008

O EFEITO HERBERTO HELDER


A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita vem interromper cerca de catorze anos de silêncio, no que diz respeito a inéditos, por parte de Herberto Helder. O último livro de originais do poeta foi publicado em 1994, Do Mundo, na Assírio & Alvim. Ora esta quebra do silêncio num dos poetas mais fortes da poesia portuguesa contemporânea originou um efeito paradoxal e estranho no que diz respeito à relação do poeta e da poesia com o mundo da comunicação social.
Sabe-se o quanto Herberto Helder é um poeta secreto, recusando entrevistas ou prémios literários. O autor de A Colher na Boca foge da fama e numa conhecida invocação escreve: “meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”. Ora, paradoxalmente, e suponho, contra o desejo do poeta, o lançamento do seu livro A Faca Não Corta o Fogo tomou aspectos pouco usuais num livro de poesia. Primeiro foi o anúncio da saída do livro, principalmente em alguns blogues que avançaram com poemas inéditos que não eram inéditos; depois, a atenção dada pelos poucos jornais que ainda escrevem sobre poesia (JL, Público e Expresso). Com a distribuição dos três mil exemplares do livro, constatou-se que estes eram insuficientes para a procura e o livro rapidamente esgotou. Este facto originou notícias nos jornais e televisões. Ou seja: a poesia que só tem lugar nos telejornais aquando da morte de algum poeta significativo (Cesariny, Fiama, Eugénio de Andrade) era agora, paradoxalmente, tema pelo facto do mais “obscuro” dos poetas portugueses vivos ter publicado um livro. Curiosamente, o último livro de António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, lançado ao mesmo tempo, e esse sim com pretenções a best-seller, era relegado para um lugar secundário.
Talvez Herberto Helder não consiga ser um poeta assim tão obscuro. Ou o desejo de se manter nessa obscuridade e silêncio o torne uma presa fácil da lógica mediática que procura tudo o que foge à norma. E nessa lógica mediática a norma é querer aparecer a todo o custo.

sexta-feira, outubro 17, 2008

HERBERTO HELDER - A FACA NÃO CORTA O FOGO (DOIS POEMAS)


Aparas gregas de mármore em redor da cabeça,
torso, ilhargas, membros e nos membros,
rótulas, unhas,
irrompem da água escarpada,
o vídeo funciona,
água para trás, crua, das minas,
tu próprio crias pêso e leveza,
luz própria,
levanta-os com o corpo,
cria com o corpo a tua própria gramática,
o mundo nasce do vídeo, o caos do mundo, beltà, jubilação, abalo,
que Deus funciona na sua glória electrónica

*
a acerba, funda língua portuguesa,
língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
escorchá-la viva, a cabra!
transá-la?
nenhum autor, nunca mais, nada,
se a mão termica, se a técnica dessa mão,
que violência, que mansuetude!
que é que se apura da língua múltipla:
paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
que se foda a língua, esta ou outra,
porque o errado é sempre o certo disso

Herberto Helder, A faca não corta o fogo, Assírio & Alvim, 2008, págs. 159 e 170

sábado, outubro 11, 2008

J.-M. G. LE CLÉZIO: O NOBEL PARA UM "ÍNDIO BRANCO"


Não sei muito bem como é possível, mas a verdade é esta: sou um índio. Não o sabia antes de ter encontrado os Índios, no México e no Panamá. Sei-o agora. Não sou talvez um índio muito bom. Não sei cultivar o milho nem afeiçoar uma piroga. O peiote, o mescal ou a chicha mastigada sobre mim não exercem grande efeito. Mas quanto ao resto, quanto à maneira de andar, de falar, de amar ou de ter medo, posso dizer o seguinte: quando encontrei esses povos índios, eu, que não julgava por aí além ter família, senti-me como se de repente tivesse conhecido milhares de pais, de irmãos e de esposas.

J.M.G. Le Clézio, Índio Branco, trad. de Júlio Henriques, Fenda, 1989, p.7

domingo, outubro 05, 2008

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES


É manhã
abro a porta da cozinha
a das traseiras da casa de campo.
Encaro a manhã.
O caseiro diz bom-dia
um cão aproxima-se de mim
e do pão com manteiga.
Desço de pé as escadas.
As escadas são de pedra.
Considero a manhã quente.
Não há nuvens
e o sol está lá em cima
no céu.
É domingo.
e uns tantos gatos amarelos
brincam com as ervas altas.
Considero a manhã quente
tiro a camisola
olhando de relance para um bando de pombos
sento-me
quase me deito num banco de madeira
distante já da casa.
Não vou ler agora este livro de poemas.
Uma voz suada pelo calor
chamou o meu nome
mas agora eu não vou responder.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues,O Valete do Sétimo Naipe, Editora Corpos, 2ª ed., 2005, p. 43.

domingo, setembro 28, 2008

MACHADO DE ASSIS


Há 100 anos morria o escritor brasileiro Machado de Assis (1939-1908). Autor de inúmeros contos, poemas, crónicas, peças de teatro e de romances como Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, Joaquim Maria Machado de Assis foi considerado pelo crítico norte-americano Harold Bloom como o maior escritor afro-descendente de todo o mundo e um dos cem mais da História da literatura de todos os tempos. Esta afirmação do autor de O Cânone Ocidental, apesar de valer o que vale na sua subjectividade, coloca em K. O. Eça de Queiroz (ou Camilo Castelo Branco) numa disputa sobre o maior autor de língua portuguesa do século XIX. Autodidacta, mestiço, membro da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis foi além da ironia e humor em romances e contos: utilizou a sua obra literária como uma forma surpreendente de reflexão filosófica na linha de um Diderot. Um exemplo disso é o conto (ou novela) O Alienista (1882), uma crítica à psiquiatria e ao positivismo da época, quase um século antes do movimento anti-psiquiatria e das obras de Foucault, Deleuze e Thomas Szasz. Do final de O Alienista fica um pequeno excerto:



Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e cura de si mesmo. (...). Alguns chegam ao ponto de conjecturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí.

sexta-feira, setembro 26, 2008

GEORGE ORWELL (A QUINTA DOS ANIMAIS)




Era agora evidente o que sucedera aos rostos dos porcos. Os animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.


George Orwell, A Quinta dos Animais, trad. Paulo Faria, Antígona, 2008, p. 132

terça-feira, setembro 09, 2008

CESARE PAVESE


O INSTINTO

O homem velho, desenganado de tudo,
da soleira da porta, sob o sol cálido,
observa o cão e a cadela a satisfazerem o instinto.

Sobre a sua boca desdentada perseguem-se as moscas.
A sua mulher há muito que morreu. Também ela,
como todas as cadelas, não queria saber disso,
mas não lhe faltava o instinto. O homem velho cheirava o ar
- ainda tinha dentes -, a noite vinha,
metiam-se na cama. Era bonito o instinto.

O que agrada no cão é a grande liberdade
De manhã à noite vagueia pela rua;
e ora come, ora dorme, ora monta cadelas:
não espera sequer pela noite. Raciocina
com o faro, e os cheiros que sente são seus.

O homem velho recorda-se de uma vez
em que o fez como os cães, de dia, no meio duma seara.
Já não sabe com que cadela, mas lembra-se do grande sol
e do suor e da vontade de nunca mais acabar.
Era como numa cama. Se os anos voltassem,
gostaria de o fazer sempre no meio duma seara.

Desde a rua uma mulher e pára a olhar;
o padre passa e volta-se. Na praça pública
pode-se fazer tudo. E até a mulher,
que tem pudor em voltar-se para o homem, pára.
Só um rapaz não tolera o jogo
e faz chover pedras. O homem velho indigna-se.

(Cesare Pavese, Trabalha Cansa, Trad. e Introdução de Carlos Leite, Cotovia, 1997, pp. 265-267)

Cesare Pavese nasceu há precisamente cem anos em Santo Stefano Belbo; estudou em Turim, tendo apresentado uma tese sobre Walt Whitman. Pertenceu ao Partido Comunista Italiano e trabalhou como tradutor para a editorial Einaudi. Poeta e ficcionista, dele estão traduzidos para português vários livros como o seu diário, Ofício de Viver, ou as narrativas A Lua e as Fogueiras, Férias de Agosto, A Praia, O Verão, A Guitarra Quebrada, O Diabo sob as Colinas, Noites de Festa (estas últimas editadas nos anos 60 e 70 estão esgotadas). A sua poesia está compilada no volume Trabalhar Cansa (Cotovia). Suicidou-se a 27 de Agosto de 1950.

sexta-feira, agosto 29, 2008

COPY & PASTE (1) - A. Guerreiro sobre Agamben


Para percebermos o alcance deste ensaio de Agamben [Bartleby - escrita da potência], devemo-nos referir a um dos seus conceitos mais recentes: o de «inoperosità», inoperância, o processo que consiste em desactivar a obra, seja ela humana ou divina, Não se trata de uma inacção, mas da actividade de desactivar. Isso é, no fundo, o que faz a poesia, que desactiva a linguagem da comunicação; e esse é também o dispositivo ético que Agamben propõe para tornar inoperantes as operações da máquina despolitizada da economia do poder. A inoperância, diz algures Agamben, é a substância política do Ocidente. Só ela é capaz de restituir a linguagem de que fomos expropriados. Bartleby, com a sua fórmula, é a figura dessa restituição.

António Guerreiro, "A potência da linguagem", excerto da recensão a Bartleby - escrita da potência de Giorgio Agamben, Expresso-Actual de 23.08.2008, p. 26

sexta-feira, agosto 01, 2008

É O FIM?


Hoje, pela primeira vez em 140 anos, O Primeiro de Janeiro não saí para a rua. Em editorial, na edição de ontem, a directora, Nassalete Miranda, despede-se “até para a semana”, mas tudo indica que a regressar o jornal apenas volte em Setembro como diário gratuito depois de uma reconversão gráfica. Para já foram despedidos os 30 trabalhadores do jornal, ainda com salários em atraso.
Durante anos, sob a direcção de Manuel Pinto de Azevedo (director entre 1946 e 1976), o PJ foi um dos principais jornais portugueses, opositor ao salazarismo. Nos anos 80 o jornal entrou em decadência, de que resultou um despedimento em larga escala em 1991 e a iminência do encerramento do jornal. Adquirido pelo empresário Eduardo Costa, o jornal têm nos últimos anos tentado recuperar algum do seu passado glorioso. Está neste caso o suplemento “Das artes, das letras”, publicado à segunda-feira, que pode ser considerado o único suplemento literário da imprensa portuguesa. De facto, o Janeiro acolheu nas suas páginas alguns dos maiores escritores portugueses. E pelo jornal que esteve durante décadas sediado num magnífico prédio da rua de Santa Catarina, no Porto, onde hoje funciona mais um centro comercial do grupo Sonae, também passaram alguns dos melhores jornalistas de Porto.
Depois do encerramento, há três anos d’ O Comércio do Porto, jornal igualmente histórico para a cidade do Porto e para o país, e de A Capital, espera-se que o Janeiro apareça em Setembro.