Falarei da luz que há na luz
na treva que há na treva dessa luz.
Jogarei com as árvores e a terra
toda a infância será ressuscitada.
Direi que o poema é obscuro. Dele
direi que é um sol negro. Da pele
falarei, do mais profundo.
Falarei dos astros com silêncio
e de mim como do mar murmurarei.
Aviso que nada descobrirei.
*
Houvesse frases de atravessar as coisas
intactas. Simultaneidade
de um lado a outro. E que do interior
alguém dissesse que o mundo é oco.
Como um escultor por dentro. Um ser vivo.
Mórula que fosse uma torção da luz.
Uma visão imersa. Como um universo
que se invaginasse. Ou desaparecesse.
Carlos Poças Falcão, Arte Nenhuma (Poesia 1987-2012), Opera Omnia, Guimarães, 2012, pp. 23 e 68
domingo, janeiro 20, 2013
quinta-feira, janeiro 03, 2013
7 ANOS
Este blogue faz hoje 7 anos. No último ano os post têm sido quase exclusivamente sobre política. É uma necessidade nos tempos que vivemos.
segunda-feira, dezembro 31, 2012
LIVROS EM 2012
Crise. Para
além da realidade social, incontornável, provocada por um governo que é o pior
depois do fim do Estado Novo, a palavra crise e o discurso em volta dela criam
ainda mais crise. Como disse W. Burroughs, a linguagem é um vírus. 2012 terá
sido o ano em que este governo de canalhas pôs em prática o processo de
aniquilamento de Portugal. No que respeita ao mundo literário a crise não terá
sido tão evidente – o demissionário secretário de estado da cultura, o
escritor, jornalista e editor Francisco José Viegas, colocou a salvo o livro (e
os seus livros) de uma maior taxa de IVA.
O que é
perceptível é que o comércio do livro é cada vez mais governado pelas leis de
um capitalismo selvagem; que os actores deste comércio são agora grupos que
aglutinam um número grande de editoras; que esses grupos e quem está na sua
chefia nada têm a ver com o mundo literário, restando algumas editoras e
editores independentes. Nada disto é novo. O que este ano apareceu como novo é
a desistência de grandes grupos em relação ao livro em papel. Assim, é possível
ver como nas lojas Fnac que a preocupação não é o livro mas a venda de espaço a
editoras, a venda de leitores de e-books e mesmo de artigos de papelaria.
Parece aliás existir um ódio ao livro, cuja rotação é permanente. Cada vez há
menos livros nas livrarias e as próprias editoras – as dos grandes grupos –
encarregam-se de guilhotinar livros dos seus fundos editoriais. Tudo isto
resulta num enorme empobrecimento. A Amazon parece já não ter livros nos seus
armazéns (pelo menos a Amazon.es): os livros em papel são vendidos por outras
livrarias e o destaque vai para os e-books. Parece que se abre o caminho
desenhado por Ray Bradbury (que morreu este ano) no seu romance de
ficção-científica Fahrenheit 451.
O que se
publicou este ano em Portugal não pode ser desligado das notas anteriores. O best-seller do ano foi marcado pelo
erotismo para donas de casa com As Cinquenta Sombras de Grey (ed. Lua de
Papel) – por cá foram vendidos 120 mil exemplares, o que mostra o poder do
marketing editorial. Foi também o ano em que um engenheiro desempregado, João
Ricardo Pedro, ganhou o Prémio Leya com o seu romance de estreia, O Teu Rosto Será o Último –, um exemplo
para o discurso do primeiro-ministro. Quem tomou uma atitude política e ética em
relação à política de Passos Coelho foi Maria Teresa Horta ao recusar receber
das mãos deste o Prémio D. Dinis da Casa de Mateus pelo romance As Luzes de Leonor. A política não andou
desligada do livro e a polémica em volta da História de Portugal, coordenada
por Rui Ramos, que o Expresso distribuiu em fascículos durante o verão, foi
mais uma evidência disso. Essa polémica, iniciada por Manuel Loof, permitiu
realçar como Rui Ramos procedeu a um branqueamento da política do Estado Novo e
quem apoiou ou se opôs a esse branqueamento.
Já no final
do ano o Prémio Pessoa foi atribuído a um pessoano – Richard Zenith, que há
quase duas décadas se ocupa da obra sempre inacabada de Pessoa. Este ano
Richard Zenith editou com Fernando Cabral Martins uma Teoria da Heteronímia, volume de cerca de 400 páginas onde se
recolhem os textos que Pessoa escreveu em volta deste tema, além de uma “tábua
de heterónimos”. Este livro, a que se podem juntar outros como a Prosa de Álvaro de Campos, editado pela
Ática, fazem parte da incomensurável bibliografia de Fernando Pessoa. A Teoria da Heteronímia foi editada pela
Assírio & Alvim, que há mais de uma década edita Pessoa, mas em 2012 a
editora de que foi mentor Manuel Hermínio Monteiro, e depois da morte deste
Manuel Rosa, passou definitivamente para o grupo Porto Editora, sendo o editor
responsável Manuel Alberto Valente. Embora a PE respeite o grafismo e a linha
editorial, a verdade é que se perdeu uma das principais editoras independentes.
Em resposta, Aníbal Fernandes lançou uma nova editora, a Sistema Solar, e
Manuel Rosa a Documenta, editora de livros de arte e sobre arte. É das editoras independentes que chegam os
livros que interessam, editoras como a Relógio d’ Água que entre os livros que
publicou em 2012 destaco os Contos
Escolhidos de Carson McCullers com tradução e escolha de Ana Teresa
Pereira. A mesma Ana Teresa Pereira que venceu – finalmente – o Grande Prémio
de Romance e Novela da APE pela narrativa O
Lago, e este ano publicou Num Lugar
Solitário, livro reescrito, cuja primeira edição data de 1996.
É nas micro
editoras que se vai encontrar grande parte da poesia que se edita. Averno,
Língua Morta, mas também Mariposa Azual, Artefacto, 7 Nós, a “velhinha” & etc,
a artesanal 50 kg ou a Opera Omnia. Nesta última editora reunião Carlos Poças
Falcão vinte e cinco anos de produção poética em Arte Nenhuma (Poesia 1987-2012). O livro, embora editado numa
editora com pouca visibilidade, resgata uma das principais vozes poéticas dos
últimos 25 anos – repare-se, por exemplo, num livro como Três Ritos. Entre os livros publicados pela Averno para este natal,
destaque-se, além do nº 17 da revista Telhados
de Vidro, o volume colectivo Nós,
Desconhecidos e um livro que reúne ensaios de Manuel de Freitas, Pedacinhos de Ossos. No ano da morte de
Manuel António Pina, ficam dois nomes editados pela Mariposa Azual, ainda para
averiguar da sua qualidade: Susana Araújo com Dívida Soberana e Raquel Nobre Guerra com Broto Sato.
Se estes
livros são difíceis de encontrar nas livrarias, no que toca ao ensaio passa-se
algo de semelhante. Que o volume A
Mecânica dos Fluidos/ A Noite do Mundo, reedição das obras completas de
Eduardo Prado Coelho pela INCM, não tenha aparecido nas livrarias é sintomático
desse ódio aos livros que se instala entre pretensos vendedores dos mesmos.
Por último a
questão do acordo (desacordo) ortográfico: em 2012 aumentou o número de editoras
que adoptaram o AO. No entanto, o Brasil ainda recentemente congelou por 3 anos
a entrada em vigor (legislativa) do acordo. Portanto é cada vez mais notório
que o acordo não agrada a ninguém.
A=
Contos
Escolhidos, Carson McCullers, Relógio d’ Água
Arte
Nenhuma, Carlos Poças Falcão, Opera Omnia
E a Noite
Roda, Alexandra Lucas Coelho, Tinta da China
Uma pequena
História da Filosofia, Nigel Warburton, Edições 70
A Terceira
Miséria, Hélia Correia, Relógio d’ Água
Os Primos da
América, Ferreira Fernandes, Tinta da China
B=
As Armas
Imprecisas, António Ramos Rosa, Afrontamento
As Damas do
Século XII (vol. 3), Georges Duby, Teorema
Una Novelita
Lumpen, Roberto Bolaño, Anagrama
Cicatriz
100%, Inês Lourenço,
Sobre os Sonhos,
S. Freud, Texto Editora
C=
O Teu Rosto
Será o Último, João Ricardo Pedro, LeYa
Pedacinhos
de Ossos, Manuel de Freitas, Averno
Telhados de
Vidro /17, VV AA, Averno
Nós, Os Desconhecidos,
VV AA, Averno
Teoria da
Heteronímia, Fernando Pessoa, Assírio & Alvim
Dívida
Soberana, Susana Araújo, Mariposa Azual
Broto Sato,
Raquel Nobre Guerra, Mariposa Azual
Quem Paga o
Estado Social em Portugal, Raquel Varela (org), Bertrand Editora
Mecânica dos
Fluidos / A Noite do Mundo, Eduardo Prado Coelho, INCM
A- Livros publicados e lidos em 2012 (selecção).
B- Livros lidos em 2012, publicados noutros anos (selecção).
C- Livros publicados em Portugal em 2012 e que poderia ter lido se.
domingo, dezembro 16, 2012
BANDITISMO NO PODER
Este governo
não é só criminoso porque está a atirar pessoas para a miséria, porque está a
desmantelar o Estado Social – saúde, segurança social, educação – que é o
suporte de vida de muita gente em Portugal; este governo não é só criminoso
porque rouba as reformas aos pensionistas, o resultado de uma vida de trabalho
para sobreviver com alguma dignidade; este governo não é só criminoso porque
está a fazer retrocessos nunca vistos no regime laboral, levando os direitos
dos trabalhadores para o nível do salazarismo, criando um desemprego que para
muita gente – os que têm mais de 30, 40 anos – será para o resto das suas
vidas. Este governo é também criminoso porque está a liquidar, a privatizar, as
últimas empresas que na maior parte dos estados democráticos estão nas mãos do
Estado porque tanto a nível simbólico como económico e estratégico devem
pertencer ao Estado. Ora sobre este processo de últimas privatizações, de que a
EDP foi o primeiro exemplo, começa-se a levantar um pouco do véu de nebulosidade.
O Público de hoje, sobre a escandalosa privatização da TAP ao preço da chuva,
revela como o energúmeno ministro Relvas reuniu há mais de um ano com o tal Efromovich,
o único interessado em comprar a TAP, e como este Efromovich está ligado a
outro vigarista brasileiro, José Dirceu envolvido no escândalo do mensalão, de
quem Relvas é amigo. Ou seja, começa a ser claramente notório que este governo
é constituído, quer no sentido moral, político e constitucional, mas também
agora no sentido jurídico por um bando de criminosos. Sobre o “dr.” Relvas, e
pelo seu currículo, não restam dúvidas que mais tarde ou mais cedo, terá o
destino dos amigos de Cavaco do BPN. Sobre os outros, Coelho, Gaspar, Borges,
Mota Soares, Nuno Crato (veja-se a reportagem da TVI sobre os colégios da empresa GPS), é necessário que os cidadãos se mobilizem, que acordem outra vez,
e sigam o exemplo da Islândia.
terça-feira, dezembro 04, 2012
"UM ABAIXO-ASSINADO QUE VAI CONTRA O ESTADO DE DIREITO E AS REGRAS ELEMENTARES DA DEMOCRACIA"
Maria João
Rita Filomena Pinto da Cunha de Avilez Van Zeller, nascida em 1945 numa família
da aristocracia lisboeta. Conhecida como jornalista (Expresso, SIC, RTP, agora)
e escritora (uma biografia sobre F. Sá-Carneiro, entrevistas com Mário Soares,
etc) pelo singelo nome de Maria João Avilez. O Van Zeller, pormenor de não despicienda
importância, é o nome de casada, que lhe deu a semente para mais quatro Van
Zeller’s verem a luz deste mundo cão. Ora a D. Maria João Rita Filomena Pinto
da Cunha de Avilez Van Zeller foi chamada a fazer serviço público na RTP-1 aos
Domingos à noite, depois do Telejornal, num programa cujo título é Termómetro Político. Acompanham-na nesse programa o director do Diário de Notícias, João Marcelino,
o director do Jornal de Negócios, Pedro Santos Guerreiro e o moderador Carlos
Daniel. O programa consiste em dar notas a 4 figuras políticas e comentar a
razão das notas. Concorre com a actuação do professor Marcelo na TVI. Sobre a
pluralidade do programa, se os nomes não fossem suficientes, bastava ver uma
pequena amostra. Mas o programa tem picos que demonstram o carácter dos intervenientes,
neste caso de Maria João Avilez. Afirma a excelsa aristocrata jornalista no
último programa sobre a carta dirigida ao primeiro-ministro cujo primeiro
signatário foi Mário Soares: “Um abaixo-assinado que vai contra o Estado de
Direito e as regras elementares da democracia”. Portanto, para a senhora dona Maria
João quando um grupo de cidadãos num Estado democrático escreve ao
primeiro-ministro para este abandonar as políticas que estão a liquidar a
economia, ou demitir-se, isso é um acto contra o Estado de Direito. Será contra
o estado como o concebe a senhora Van Zeller – mas esse já não é um Estado de
direito, mas tão só de direitos para alguns privilegiados – os Van Zeller’s
deste mundo cão.
domingo, novembro 25, 2012
FERNANDO GANDRA
Os caminhos mudam de aspecto
quando os fazemos ao contrário.
Há dias em que há os homens e há
as coisas e em que não me venham falar de deus
deste tempo ou da minha geração.
Redonda é a água em que o barco se recreia
porque é em parte a mesma que caiu nos guarda-chuvas.
Obediente aos príncipios o parque desenvolve-se
coloridamente. A simetria tubular das árvores
forma uma ogiva onde se narra a elaboração
de alguns atritos. Cresce uma mesa onde se
fumam sementes mais vertiginosas. Os cães
juntam-se para passearem as suas biografias
de ócio e só se distanciam para dar luta
à presença guerreira dos insectos.
Um incêndio pensativo alarga a beleza das mães
cuja flor final às vezes se acende.
Estão de costas para o cisne que atravessa o lago
vestido de almirante. Seria uma boa ideia
se a tivessem tido.
quando os fazemos ao contrário.
Há dias em que há os homens e há
as coisas e em que não me venham falar de deus
deste tempo ou da minha geração.
Redonda é a água em que o barco se recreia
porque é em parte a mesma que caiu nos guarda-chuvas.
Obediente aos príncipios o parque desenvolve-se
coloridamente. A simetria tubular das árvores
forma uma ogiva onde se narra a elaboração
de alguns atritos. Cresce uma mesa onde se
fumam sementes mais vertiginosas. Os cães
juntam-se para passearem as suas biografias
de ócio e só se distanciam para dar luta
à presença guerreira dos insectos.
Um incêndio pensativo alarga a beleza das mães
cuja flor final às vezes se acende.
Estão de costas para o cisne que atravessa o lago
vestido de almirante. Seria uma boa ideia
se a tivessem tido.
Fernando Gandra, O Lado do Cisne, Gota de Água - INCM, col. Plural, 1984, p. 17.
Fernando Gandra nasceu em 1947, Silves. Publicou As Forças Amadas (em colaboração com Helder Moura Pereira, 1981), O Lado do Cisne (1984) e os ensaios Para uma Arquelogia do Discurso Imperial (1978), O Eterno Contorno (1987 e 1997) e O Sossego Como Problema (2008).
sexta-feira, novembro 09, 2012
BARDAMERKEL (Coro da Achada)
Bardamerkel
(do pobre Beethoven)
Bardamerkel
bardamerkel
bardamerkel
bardamer...
... da finança é marioneta
lacaia do capital
bardamerkel
bardamerkel
essas contas cheiram mal
do banqueiro é amiguinha
ai a santa austeridade
bardamerkel
bardamerkel
erro de contabilidade
o cavaco faz-lhe uma vénia
dá-lhe prendas de natal
bardamerkel
bardamerkel
autoclismo é essencial
ei-lo agora D. Coelhinho
primeiro de portugal
bardamerkel
bardamerkel
de joelhos serviçal
vens-me ao bolso, apertas-me o cinto
e já se vê o fundo ao tacho
bardamerkel
bardamerkel
acho que vais água abaixo
pensámos fazer-te uma vaia
mas talvez o avião caia
bardamerkel
bardamerkel
não somos da tua laia
pró coelho uma cenoura
e o chicote anda de fraque
bardamerkel
bardamerkel
tu não vales mais que um traque
ela passa aqui de visita
faz a notícia do jornal
bardamerkel
bardamerkel
sê mal vinda ao curral
(via you tube, pelo coro da Achada)(do pobre Beethoven)
Bardamerkel
bardamerkel
bardamerkel
bardamer...
... da finança é marioneta
lacaia do capital
bardamerkel
bardamerkel
essas contas cheiram mal
do banqueiro é amiguinha
ai a santa austeridade
bardamerkel
bardamerkel
erro de contabilidade
o cavaco faz-lhe uma vénia
dá-lhe prendas de natal
bardamerkel
bardamerkel
autoclismo é essencial
ei-lo agora D. Coelhinho
primeiro de portugal
bardamerkel
bardamerkel
de joelhos serviçal
vens-me ao bolso, apertas-me o cinto
e já se vê o fundo ao tacho
bardamerkel
bardamerkel
acho que vais água abaixo
pensámos fazer-te uma vaia
mas talvez o avião caia
bardamerkel
bardamerkel
não somos da tua laia
pró coelho uma cenoura
e o chicote anda de fraque
bardamerkel
bardamerkel
tu não vales mais que um traque
ela passa aqui de visita
faz a notícia do jornal
bardamerkel
bardamerkel
sê mal vinda ao curral
quarta-feira, outubro 24, 2012
A CIÊNCIA CONDENADA
Um tribunal
italiano condenou seis sismólogos a seis anos de prisão, por estes terem subestimado
a ocorrência do sismo que em 2009 matou cerca de três centenas de pessoas em
Áquila. A decisão deste tribunal, inédita, foi criticada por todo o mundo
científico. E, no entanto, ela mostra a relação que a sociedade actual mantém
com a ciência. Depois da “morte de Deus” anunciada por Nietzsche, Comte ergueu
o seu positivismo em que a ciência se tornava na nova religião. Esta nova
religião está bem viva nos nossos dias: a ciência é a esperança e a verdade –
da medicina á meteorologia. E apesar da constatação diária das falhas destas
duas ciências, a ciência avança, apoiada pelos meios de comunicação social. Cada
disciplina científica vai alargando o seu campo, procurando mais que
explicações (sempre provisórias) para a realidade que em última instância não
podemos conhecer. O que pretendem as ciências é afirmar o seu poder. Talvez
seja hora de juntarmos ao poder económico-político-mediático o poder tecnocientífico.
A história do século passado demonstra como a ciência esteve no melhor e no
pior, da penicilina à bomba nuclear. Podemos dizer que sem ciência viveríamos num
mundo muito pior, um mundo onde a civilização moderna estaria em causa. Mas é
também a ciência que nos ameaça, criando mecanismos que nos escravizam e
controlam perante o poder. A condenação dos seis sismógrafos italianos resulta
sobretudo do estatuto de verdade, como uma verdade teológica, infalível, a que
a ciência ascendeu. E nesse sentido, pode-se dizer que se fez justiça (e
jurisprudência), e que a justiça, no sentido grego antigo de que falava Sophia
de Mello Breyner Andersen num dos seus poemas, se impôs a um dos poderes que
governa o mundo. Lamentável é que os cientistas não percebam que esta
condenação devia ser objecto de reflexão sobre a sua actividade.
sexta-feira, outubro 19, 2012
MANUEL ANTÓNIO PINA (1943-2012)
Arte Poética
Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.
Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.
Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
o teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?
(de Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, 2011, p. 7, originalmente publicado em Os Livros de 2003)
Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.
Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.
Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
o teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?
(de Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, 2011, p. 7, originalmente publicado em Os Livros de 2003)
Manuel
António Pina tinha a ideia que chegou (chegamos) demasiado tarde. O seu primeiro
título de poesia, invulgarmente longo, Ainda não é o fim nem o princípio do
mundo calma é apenas um pouco tarde, expressa essa ideia. Jornalista durante 30 anos no jornal
mais popular do Porto, o Jornal de Notícias, M. A. Pina destacou-se na escrita
de crónicas – ocupou nos últimos tempos, com uma verve feroz contra toda a
injustiça, a ultima página do JN -, e também na escrita para crianças. Mas se
estas actividades de escrita o tornaram conhecido, foi na poesia – que dizia
ser inútil e não ter mais de 300 leitores – que a sua arte de escrita mais
profundamente penetrou no (des)conhecimento do mundo. O Prémio Camões
consagrou-o em 2011, destacando-o entre os poetas dos anos 70, antes da doença
o abater e a morte deixar de ser “um problema de estilo”. Para além da família,
amigos, leitores e conhecidos, deixa alguns gatos mais sós.
sábado, outubro 13, 2012
CONDE DE MONSARAZ
OS BOIS
Na doce paz da tarde que declina
após a faina sob um sol ardente,
vão os bois reconhendo lentamente
pelas vias desertas da campina.
Atravessam depois a cristalina
ribeira e ao flébil som de água corrente
bebem sedentos, demoradamente,
numa sensual beleza que os domina.
Mas quando, fartos d' água, erguendo as frontes,
os beiços escorrendo, olham os montes
e ouvem cantar ao alto os rouxinois,
eu fico-me a cismar, calado e triste,
que um mundo de impressões, que uma alma existe
nos olhos enigmáticos dos bois!
Conde de Monsaraz (António de Macedo Papança) (1852-1913), Poemas Portugueses, p. 886. O poema foi originalmente publicado no livro Musa Alentejana (1908).
Na doce paz da tarde que declina
após a faina sob um sol ardente,
vão os bois reconhendo lentamente
pelas vias desertas da campina.
Atravessam depois a cristalina
ribeira e ao flébil som de água corrente
bebem sedentos, demoradamente,
numa sensual beleza que os domina.
Mas quando, fartos d' água, erguendo as frontes,
os beiços escorrendo, olham os montes
e ouvem cantar ao alto os rouxinois,
eu fico-me a cismar, calado e triste,
que um mundo de impressões, que uma alma existe
nos olhos enigmáticos dos bois!
Conde de Monsaraz (António de Macedo Papança) (1852-1913), Poemas Portugueses, p. 886. O poema foi originalmente publicado no livro Musa Alentejana (1908).
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