Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.
Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.
Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
o teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?
(de Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, 2011, p. 7, originalmente publicado em Os Livros de 2003)
Manuel
António Pina tinha a ideia que chegou (chegamos) demasiado tarde. O seu primeiro
título de poesia, invulgarmente longo, Ainda não é o fim nem o princípio do
mundo calma é apenas um pouco tarde, expressa essa ideia. Jornalista durante 30 anos no jornal
mais popular do Porto, o Jornal de Notícias, M. A. Pina destacou-se na escrita
de crónicas – ocupou nos últimos tempos, com uma verve feroz contra toda a
injustiça, a ultima página do JN -, e também na escrita para crianças. Mas se
estas actividades de escrita o tornaram conhecido, foi na poesia – que dizia
ser inútil e não ter mais de 300 leitores – que a sua arte de escrita mais
profundamente penetrou no (des)conhecimento do mundo. O Prémio Camões
consagrou-o em 2011, destacando-o entre os poetas dos anos 70, antes da doença
o abater e a morte deixar de ser “um problema de estilo”. Para além da família,
amigos, leitores e conhecidos, deixa alguns gatos mais sós.
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