A visão do céu era ainda mais fantástica do que aquela que tinha tido no balão de observação durante a Primeira Guerra Mundial. As pessoas eram ainda mais pequenas e chegavam mesmo a não existir. Quanto mais se sobe, mais as pessoas desaparecem. Os governos não sabem que as pessoas existem, de tão em cima que estão. Falam do povo, mas é uma entidade abstracta, tal como nós falamos de Deus. Ninguém, lá do alto da governação, sabe se o povo realmente existe, é uma questão de fé. Chega-se até a descrever as suas características e a temê-lo, mas nunca ninguém o viu, senão uns místicos que desceram ao nosso nível e que acabaram descredibilizados e ridicularizados. O místico diz que o povo sofre e que é preciso mais justiça e que cada pessoa tem uma vida e não são uma Unidade, mas que são, isso sim, pessoas realmente separadas umas das outras, com existência própria. Ele, como um profeta do fim dos tempos, avisa os seus congéneres de que o povo pode ser perigoso e pode derrubar coisas muito altas. É preciso não esquecer, diz ele com o dedo esticado para baixo, que, por mais alta que seja uma árvore, o seu tronco mantém-se ao alcance de um machado. Mas ninguém dá ouvidos ao mistico que viajou até à terra e a sua carreira política termina imediatamente e de forma ultrajante.
Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Caminho, 2011, pp.147-8
Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Caminho, 2011, pp.147-8
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