Este ano
pouco ou nada mudou no que ao comércio dos livros e sua edição diz respeito. É
certo que quando a Porto Editora conseguiu, não se sabe por que carga de água
ou fogo, editar com a sua chancela o último livro de Herberto Helder, houve a
percepção, por parte de algumas das mais brilhantes cabeças da pátria, de que
se estava a abusar do maior poeta português vivo. Ou então que o poeta tinha
finalmente enlouquecido, como há desde quase cinquenta anos vinha ameaçando
(veja-se o início do conto “Estilo” do livro Os Passos em Volta, ou algumas
passagens de Photomaton & Vox). Verdade que o livro, A Morte sem Mestre,
esgotadíssimo, não agradou a alguns críticos, a quem certa linguagem erótica,
vinda do vate octogenário, talvez tenha escandalizado. Diferente seria quando
uma ex-jornalista, com carácter de urgência, resolveu escrever em terras
alentejanas, numa cozinha, enquanto o verão passava, um livro que utilizava uma
linguagem vernacular muito idêntica à do nosso tão celebrizado vate H H.
Entenda-se, então, uma coisa: o que uma senhora pode escrever (e dizer) não é o
mesmo que um velho de 80 anos pode. Porque a senhora, dona das suas curvas, faz
com o seu sexo o que lhe apetece; tem os amantes que quer e ninguém tem nada a
ver com isso – muito menos os amantes. Já do velho vate, só fica bem o flirt
com a morte. Mesmo porque algumas palavras, ditas ou escritas por varão, podem
configurar o crime nefasto de assédio sexual. Portanto, mesmo em questões
literárias, e numa altura em que o autor regressou, como um Lázaro da tumba
estruturalista, há que ter todo o cuidado, quando se é um macho branco e
heterossexual, mesmo que de um país que esteve sob o domínio da obscena troika.
É claro que
muitos mais livros se publicaram ao longo de 2014, com o grande destaque para o
lixo do costume, de editores idiotas e livreiros imbecis – com as honrosas
excepções, como em tudo. A situação de destruição que o país vive veio dar
fôlego a um género que em Portugal tinha pouca expressão: os livros de jornalismo,
ou para tentar ser mais exacto
grandes reportagens em livro. Diria que finalmente. Finalmente há jornalistas
que escrevem sobre o que sabem fazer, o que fazem no dia-a-dia, mas de uma
forma mais prolongada, com mais caracteres. Mas desengane-se que isto acabou
com a lógica do jornalista-vedeta que escreve o seu romance anualmente. Não. E
para o confirmar tivemos mais livros de José Rodrigues dos Santos e de Miguel
Sousa Tavares. Mas os livros que tentam desmascarar o jogo de cadeiras por
detrás do poder político, ou quem são os Donos de Portugal, ou aprofundar a
história do BES, são livros de reportagem e investigação que faziam falta,
principalmente se atentarmos que o panorama mediático português é dominado por
grupos empresariais pouco interessados em que a verdade seja publicada nos seus
jornais – e muito menos nas televisões. Temos assim que na falta de um
jornalismo plural – em Portugal, ao contrário do que existe em França ou mesmo
na Espanha, não há jornais de esquerda, tentando todos parecer um enorme bloco
central jornalístico – cabe a jornalistas independentes fazer vir ao de cima a
verdade que se esconde nas pequenas notícias. Jornalistas como Paulo Pena (a
colaborar agora com o Público), autor de Jogos
de Poder – Toda a verdade sobre os bancos portugueses e a forma como criaram a
dívida que todos temos de pagar (esfera dos livros) ou mesmo investigadores
como Gustavo Cardoso, entre outros, têm feito esse trabalho. Trata-se, por
vezes, de escrever aspectos da história recente de Portugal que só no formato
livro podem ganhar inteligibilidade. Outras vezes é tão só uma forma de ter
ainda mais projecção mediática e ganhar algum dinheiro fazendo favores à
ideologia que nos governa ou apresentando propostas dúbias (veja-se o caso do
jornalista da SIC José Gomes Ferreira).
Nas actuais
circunstâncias, em que as livrarias parecem lojas de chinês, ou talvez em que
as livrarias podiam tornar-se lojas de chinês, já que apenas procuram o lucro
de forma acéfala, há que encontrar outros lugares e outras formas de leitura
que fazem uma ponte entre o passado e o futuro. Não é preciso ser um leitor
exigente para perceber que se ganha muito mais, em todos os aspectos,
frequentando e sendo leitor de bibliotecas – a única coisa que se perde é o
livro que uma vez lido tem de ser devolvido. As bibliotecas, mesmo as
municipais, são formas de um encontro feliz com os livros como objectos de
saber, de reflexão e de gozo. Porque as bibliotecas são lugares de encontro com
o passado, com livros marcantes da nossa literatura, filosofia, história ou
outros saberes e sabores. E ali estão esses livros já marcados pelo tempo, já
lidos, sublinhados (e ler um livro sublinhado, de uma biblioteca, é entrar em
diálogo com alguém que desconhecemos). Talvez que esta crise tenha aumentado o
número de leitores em bibliotecas, evitando a decadência das mesmas, esses
lugares que ainda restam de silêncio e murmúrio (para além das Igrejas). Mas,
infelizmente, as bibliotecas representam o passado.
O futuro
apresenta-se através das tecnologias de comunicação digital. É a internet o
grande repositório de saber, não só de um saber tosco, inexacto, que de certa
forma cria uma nova epistemologia, mas também de alguns dos mesmos livros que
se encontram nas bibliotecas. No entanto, a mudança de uma leitura analógica
(digamos assim) para uma leitura digital é um processo complexo – desde os
hábitos dos leitores até direitos de autor. E é também uma nova questão da
ética de leitura: já não se trata de ler por prazer ou por dever (por exemplo),
mas de ler contra o sistema ou a favor do sistema – e ai a questão volta ao
início, entre o lixo e o luxo – independentemente do meio.
Livros
esquecidos de 2014 – uma (pequena) lista
João César Monteiro – Obra Escrita 1,
Livraria Letra Livre
João Urbano – Revoada, ed. Nada
Dulce Maria Cardoso – Tudo são Histórias de
Amor, tinta-da-china
Paulo Varela Gomes – Hotel, tinta-da-china
Luís Filipe de Castro Mendes – A Misericórdia
dos Mercados, Assírio & Alvim
Daniela Arbex – Holocausto Brasileiro, Guerra
e Paz
Giorgio Agamben – A Potência do Pensamento,
Relógio d’ Água
Paulo da Costa Domingos - «Voici la poésie ce
matin et pour la prose il y a les jornaux », Averno
Sem comentários:
Enviar um comentário