1, Se era com esta frase, "Anda um espectro pela Europa" com que se iniciava o Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, e escrito por Marx e Engels, cerca de 170 anos depois podemos dizer que anda um espectro pela Europa, mas não é em nada o do comunismo. Esse espectro, que não é novo, é o do fascismo, ou pelo menos de partidos de extrema-direita que começam a tomar o poder em vários países europeus. Giorgia Meloni, e o seu partido Irmãos de Itália (FdI) venceram, no passado Domingo, 25, as eleições legislativas, com cerca de 26 por cento da votação, o que lhes permite liderar um governo em coligação com a Força Itália de Berlusconi, e a Liga de Salvini. A direita e a extrema-direita juntam-se para governar. Em Itália, onde o fascismo nasceu, por Mussolini - e se enterrou com ele - algo dele ressurge, na figura carismática de Giorgia Meloni. Mas como podemos averiguar o quanto Meloni é fascista? Ela que já elogiou Mussolini e já o repudiou, que pretende, ou pelo menos pretendia, fazer uma revisão da Constituição, mas não a poderá fazer porque a direita não tem maioria de dois terços; ela que defende os valores que Salazar defendia: Deus, pátria e família, mas é uma mulher e já foi deputada e ministra num governo de Berlusconi - algo impensável para os tempos do velho fascismo.
2, No caso específico de Itália, temos que nos lembrar que durante anos, ao contrário da generalidade das democracias, governadas ao centro, a Itália teve como principais partidos dois extremos; a democracia cristã e o partido comunista. O facto de em Itália ficar o Vaticano, a sede da Igreja católica, não será alheio a este quadro partidário. Mas depois, com a queda do comunismo a leste, entrou em cena o populismo de Berlusconi, antes que a adjectivação de populista tivesse entrado no vocabulário político-jornalístico. Eram os anos 90, a máfia continuava a ser uma tradição que mancha a sangue esse belo país, e a corrupção entre política e negócios ia para além da cosa nostra. Berlusconi está há 28 anos na política, muitos dos quais como primeiro-ministro; Meloni foi sua ministra. Mas nada disto - uma contextualização histórica - explica que esse novo espectro da extrema-direita tenha caído sobre a Itália. No El País alguém lembrava que a Itália tem uma esquerda fraca - é uma tentativa de explicação. A verdade é que este não é um fenómeno italiano. Para já inclui a Hungria, a Polónia, e recentemente a Suécia, mas já o vimos no poder nos Estados Unidos, e ainda mora no Brasil, de onde deverá ser despejado em breve e onde fez mais estragos. E esquecia-me das Filipinas, e talvez de outros países que interessam pouco aos média ocidentais.
3, Pier Paolo Pasolini de quem se cumpre este ano o centenário do nascimento, tem um famoso texto onde fala do desaparecimento dos pirilampos causado pela luz artificial que invade o tempo nocturno. Mas também pelo avanço do capitalismo, nomeadamente nos pesticidas que invadiram os terrenos rurais. Pasolini, comunista, cristão e homossexual, assassinado por um ragazo di vita na praia de Ostia, era o mais lucido e polémico intelectual italiano. Ele, há cerca de 50 anos já tinha visto o fascismo, que talvez nunca tenha desaparecido completamente da sociedade italiana, assim como o nazismo não desapareceu completamente da Alemanha ou da Áustria (veja-se a denuncia feita pelo escritor Thomas Bernhard), nem o salazarismo de Portugal. Ele talvez tivesse uma explicação bastante lúcida para o fenómeno Meloni e outros. Ou talvez nos seus textos e entrevistas encontremos essa explicação.
4, Penso que a ascensão da extrema-direita, um pouco por toda a Europa, tem que ser vista como um fenómeno em toda a sua extensão. O espectro do "fascismo" (permita-se as aspas para designar algo que não pode ser situado nos velhos fascismos de Mussolini, Franco ou Salazar) pode ser visto a partir de um enfraquecimento do centro político, ou seja, da social-democracia, entendida aqui também como socialismo democrático. Isso é visível no caso francês com o desaparecimento do Partido Socialista. Mas em França, Macron conseguiu preencher esse centro, evitando que Le Pen chegasse a presidente da República. O facto de França ser um regime presidencial, onde o governo é nomeado pelo presidente, também tem ajudado a que a família Le Pen, de evidente extrema-direita, não tenha tomado o poder. Mas se isso ainda não aconteceu, poderá vir a acontecer. De facto, o espectro paira sobre quase toda a Europa.
5, O centro político não tem dado respostas aos problemas das pessoas, antes tem-se comportado, por vezes, como uma forma de governar contra as pessoas. Caso paradigmático disso foi o governo PSD/ CDS liderado por Passos Coelho, que à boleia da crise financeira iniciada em 2008, estabeleceu uma política, em conjunto com a troika, que retirou direitos sociais há muito adquiridos pelos portugueses. Por outro lado, a esquerda, com a excepção do PCP que tem perdido terreno pela sua posição em relação à guerra na Ucrânia, tem enveredado por causas fracturantes como os direitos LGBT +, a eutanásia, ou mesmo os direitos dos animais. Ou seja, em Portugal, como em Espanha e noutros países, a esquerda é cada vez mais uma esquerda caviar, preocupada com os direitos e causas dos seus membros e ignorando os direitos daqueles que têm vidas precárias: os assalariados com o salário mínimo, os beneficiários do parco RSI e aqueles que nada recebem, vivendo da ajuda da família ou mesmo sendo atirados para a rua em condições de sem-abrigo. Estas pessoas, principalmente os desempregados de longa duração, não interessam em nada a esquerda - muito menos à direita. São como se não fossem sujeitos políticos, ou nem sequer sujeitos tout cour.
6, O cenário que se esboça é o de um alargamento deste espectro da extrema-direita, em coligações com partidos da direita moderada. Espanha terá eleições legislativas no próximo ano. O PP, partido tradicional da direita tem vindo a ganhar um espaço que perdeu, mas isso talvez não seja suficiente para governar com maioria absoluta. Por isso equaciona-se uma aliança eleitoral que inclua o Vox, o partido de extrema-direita. O mesmo acontece em Portugal se pensarmos no que podem ser as eleições legislativas de 2026. O PS apresenta já um significativo desgaste, apesar de governar sozinho com maioria absoluta. Ora, é de conjecturar que daqui a 4 anos esse desgaste será ainda maior, e a direita terá maioria absoluta, na qual se incluiria o Chega que é já o terceiro maior partido português (uma sondagem SIC/Expresso, revelada hoje, dá 11 por cento ao Chega).
7, É necessário sublinhar que o partido de extrema-direita portuguesa é um dos mais radicais da Europa, defendendo a castração química, a prisão perpétua, o fim de apoios sociais, a perseguição dos ciganos e outras minorias étnicas. Ou seja, o Chega defende medidas mais gravosas das que foram executadas no Estado Novo por Salazar e Caetano. A seu lado tem um partido ultra-liberal, a Iniciativa Liberal, que basicamente defende o fim do Estado social. Juntando a isto um PSD como o de Passos Coelho, baseado nas doutrinas económicas de Milton Friedman, teríamos o pior e mais extremista governo, um cocktail da mais reaccionária extrema-direita. Apesar de em Portugal serem necessários 2/3 para mudar a Constituição - e as medidas defendidas pelo Chega são completamente anticonstitucionais - este cenário deve ser pensado séria e antecipadamente, para que não venha a ocorrer.
8, As democracias europeias liberais começam a estar em risco com este espectro da extrema-direita que percorre a Europa; a União Europeia também (embora seja um projecto demasiado tecnocrático). Numa Europa onde já não se fazem golpes de Estado (embora tudo seja possível), o objectivo último desta extrema-direita não é só chegar a liderar governos, mas obter uma maioria que lhe permita fazer revisões constitucionais que iriam alterar o Estado de direito em que vive a generalidade dos países europeus. A direita italiana não conseguiu isso. Mas o líder da extrema-direita portuguesa tem sido claro quanto a esse objectivo. São as democracias que estão em perigo, como no caso do Brasil, onde a possível derrota de Bolsonaro, pode degenerar na tentativa de um golpe de Estado, como aconteceu, de certa forma nos Estados Unidos, aquando da derrota de Trump.
9, O século XXI começa a ser um século ameaçador, perigoso - um pouco como o século XX há cem anos. Mas esse perigo não reside apenas numa reemergência dos fascismos. A par da extrema-direita, temos como ameaças as alterações climáticas e o mundo digital dominado por um conjunto de muito grandes empresas, sedentas dos nossos dados que também colocam a nossa liberdade e privacidade em perigo. Nada disto está separado, pelo contrário, anda tudo ligado.
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