segunda-feira, setembro 30, 2024

Os fugitivos


 

1, Sábado, 7 de setembro, de manhã, Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus. Cinco reclusos, 4 dos quais tidos como os mais perigosos desta prisão de alta segurança, fogem com a ajuda de duas escadas e três elementos que se encontravam no exterior. Fuga mediática – um dos fugitivos, um argentino, foi condenado no seu país por rapto e possível homicídio; fuga possibilitada pela inépcia dos guardas prisionais.

2, A partir deste facto temos várias abordagens que vão da político-sindical sobre o estatuto dos guardas prisionais às teorias de Foucault e Deleuze sobre as “sociedades disciplinares” (Foucault) e as “sociedades de controle” (Deleuze), ou ao questionamento das prisões como forma de a sociedade punir aqueles que fogem às suas regras (mais uma vez Foucault, principalmente em Vigiar e Punir, mas também Angela Davis), ou, ainda, um campo ficcional onde aparecem filmes e séries como Bonnie e Clyde (1967, realização de Arthur Penn) ou a série Prison Break (2005), ou na literatura, Jean Genet – o escritor criminoso, “a criança criminosa” –, ou um conto de Elisabeth Bishop (Prisão), ou um poema de Oscar Wilde…

3, O ex-ministro da cultura e de novo comentador político, Pedro Adão e Silva, escrevia a 10 de Setembro no Público, que “temos presos a mais e não guardas a menos”. E adiantava números: “entre os 47 países do Conselho da Europa, temos o valor mais elevado para a duração média de penas de prisão, com uns notáveis 30 meses (a média é de 12)”. Na verdade, se formos ver o que se tem passado nos últimos anos, o que encontramos é um excesso da aplicação da prisão preventiva. Como se fosse uma vingança por parte dos juízes por Portugal ter um dos códigos penais mais leves, pelo menos no que respeita ao limite de penas – 25 anos. Ora, para além destes números estatísticos, importa saber em que condições os presos cumprem a privação da liberdade nas prisões portuguesas. Porque nem sequer todos os condenados são culpados. Na edição em que o jornal Público noticiava a fuga dos cinco reclusos de Vale de Judeus, apresentava também uma grande reportagem com Diana Ríos Rengifo, uma indígena peruana que tem lutado pela preservação da Amazónia. Mas a sua luta foi interrompida em Portugal, quando foi encontrada na sua bagagem cocaína. Com uma criança de pouco meses, Diana passeia-se por uma ala da prisão de Santa Cruz do Bispo, onde estão outras mulheres e outras crianças. Não é o facto de ter sido mãe ou o de ter sido uma activista pela preservação da Amazónia que a tornam inocente do tráfico de droga, mas pelo documentário de 20 minutos realizado pelo Público, tudo leva a crer que Diana Ríos Rengifo é uma vítima, que não sabia nem tinha intenção de fazer tráfico de droga. A despenalização do consumo de estupefacientes, veio, de forma completamente justa, retirar muita gente das cadeias.

4, Residirá nestes fugitivos uma semente de mal, sobretudo no argentino? Talvez, mas essa questão levar-nos-ia para a complexa questão do mal. Mas o que se poderá dizer sobre a população que ocupa as 49 cadeias portuguesas? Vidas precárias? Vidas interrompidas? Vidas encerradas num labirinto – por vezes de desespero? O filósofo Giorgio Agamben recuperou a figura do direito romano arcaico do Homo Saccer, aquele que pode ser morto sem que o assassino seja castigado. É isso que também se passa nas prisões, quer por parte da falta de cuidado de guardas e outros funcionários para com os presos, quer por parte dos presos entre si. As prisões são o local por excelência do crime. Repare-se: se juntarmos um alargado grupo de homens (ou mulheres, embora a população prisional portuguesa seja maioritariamente feminina), onde está desde o incriminado, embora na realidade inocente; o preso preventivo; o preso homicida com personalidade violenta; o preso por corrupção ou de “colarinho branco”, etc, temos um caldo de violência. Essa violência também existe no outro lado, nos guardas prisionais e demais pessoal que faz parte da prisão como instituição. Na verdade, o mundo carcerário é um mundo do qual a sociedade, e sobretudo o poder político (tanto à direita como à esquerda), nada quer saber. Não importa que um preso mate outro, que por falta de cuidados médicos um preso venha a morrer, que um preso se suicide numa prisão onde talvez não exista um psicólogo. Nada disto importa, embora a filosofia em Portugal seja, ao contrário da dos Estados Unidos, de reinserção social da pessoa presa depois desta cumprir a pena – existe mesmo um Instituto de Reinserção Social.

5, Mas, na manhã daquele 7 de Setembro de 2024, os alarmes tocaram – na prisão de Vale de Judeus e pouco depois nas televisões. A fuga de presos de um Estabelecimento Prisional é algo que desencadeia todo um espectáculo – raro, por isso mesmo mais precioso. O director da Polícia Judiciária, tão solicito como um James Bond à portuguesa, veio logo dar uma conferência de Imprensa onde apresentou os rostos dos fugitivos, desfigurados por uma desumanidade que os pretendia colocar no lugar do monstro, e realçou que os fugitivos eram bastante perigosos. Repare-se e repita-se: perigosos, perigosos, perigosos… porque nunca é de mais realçar que andam cinco perigosos fugitivos a monte. Assim se faz a “instalação do medo” (título certeiro de um livro de Rui Zink). Fechem as janelas, tranquem bem as portas, mantenham-se em casa.

6, Mas existe uma questão real sobre as prisões. Michel Foucault, nos anos 1970 com o seu livro Vigiar e Punir – Nascimento das Prisões (ed. portuguesa Edições 70), também por essa altura com um activismo político sobre as prisões tornou a prisão um lugar a ser pensado pelas ciências humanas (pelo menos). Também a activista e filósofa Angela Davis, a partir de uma perspectiva da luta pelo direito dos negros nos Estados Unidos (onde a maioria da população prisional é negra), mas também de uma luta contra o capitalismo, tem questionado as prisões. O seu livro As Prisões Estão Obsoletas? (editado originalmente em 2003, com edição portuguesa da editora Antígona em 2022) coloca questões radicais. A fuga de Vale de Judeus teve pelo menos o mérito de colocar os holofotes sobre uma prisão e o universo prisional em Portugal. Daí a revelar a realidade desse universo vão alguns passos. Mas o questionar, para que servem as prisões? ou, como o título do livro de Angela Davis faz de modo talvez mais certeiro, As Prisões Estão Obsoletas?, é já algo de outra ordem, mais difícil de alcançar – porque implica pensar, sair de certezas pré-determinadas de uma cultura. Isso não obsta a que exista já um movimento anti-carcerário.

Ao cimo imagem divulgada pela GNR, com a cara dos 5 fugitivos. 

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