As Vinhas da Ira é um
romance de John Steinbeck que teve adaptação cinematográfica de John Ford. O
livro e o filme relatam, e de certa forma testemunham, a vida no campo depois
da grande depressão de 1929. Até 2008 e à falência de um importante banco
norte-americano, a grande depressão de 1929 era um marco histórico, algo que
pairava sobre a economia e os mercados como uma assombração, algo que não podia
voltar a acontecer. Mas aconteceu, e ainda está a acontecer. A partir de 2008
deixou-se de falar da grande depressão de 1929 – afinal os tempos eram outros.
Estes tempos que vivemos são tempos de recalcamento, de varrer para debaixo do
tapete o que é importuno. O que se constata é que em países como Portugal, que
foi dos que mais sofreram com as consequências da crise económica iniciada em
2008, praticamente não existem narrativas dessa mesma crise. Nem a nível
jornalístico, nem a nível artístico. É como se existisse uma censura interna –
ou será mesmo uma censura externa de forma subtil? A verdade é que as empresas
de comunicação social, mesmo as que ainda dão lucro, têm despedido dezenas, ou
mesmo centenas, de jornalistas. Que liberdade sobra para o actual jornalismo fazer
o devido relato da crise? Quanto à vertente artística é mais difícil de
perceber. Escritores, cineastas, músicos, encenadores, apenas por vezes têm
esboçado gestos tímidos. Os novos músicos, com uma ou outra excepção parecem
ter medo que lhes fique colado o rótulo de cantores de intervenção; os cineastas
que estão mais perto de estética do real, como João Canijo, preferem temas como
Fátima; os escritores e poetas, também com uma ou outra excepção, continuam
como se nada se passasse à sua volta, numa torre de marfim. A crise e suas
consequências na vida das pessoas parece ficar sem relato, sem testemunho. Mas
urge insistir, perguntar: porque não temos nós as nossas Vinhas da Ira?
domingo, abril 30, 2017
sexta-feira, março 31, 2017
A ESCUMALHA BANCÁRIA
No início deste século, e nos anos
posteriores, o sector bancário era dos que mais investia em publicidade nos
meios de comunicação social. Existia crédito para tudo, e os clientes dos
bancos quase eram forçados a contrair crédito. A banca vivia à fartazana dos
lucros dos créditos que tinha imposto às pessoas. E a economia não ia mal. Eram
ainda tempos de vacas gordas. Mas sobretudo importa sublinhar que nesses tempos
os bancos, através da concessão de crédito para compra de casa, carro, ou
outros tipos de consumo, se foram apoderando da vida das pessoas.
Foi algo que aconteceu não só em Portugal mas
em quase todos os países capitalistas, a começar, naturalmente, pelos Estados
Unidos. Desta forma selvagem de concessão de crédito, mas também de criar
agressivos produtos bancários, nasceu a crise do sub-prime com a consequente falência
do banco de investimentos Lemham Brothers. Iniciou-se, em 2008, a crise
financeira.
Durante o período pré e pós-crise, os
banqueiros cometeram todo o tipo de atropelos legais (para não falar dos
éticos) que puseram em causa a sustentabilidade dos bancos por eles geridos. É
assim que o BPN vai falir, ao qual se vão juntar o BPP, o BES (tido como um dos
principais bancos portugueses e o mais antigo), o Banif… A lista pode não
acabar aqui. Todo o sistema bancário ficou abalado. Mas o fundamental disto
tudo é que quem pagou a factura de toda esta malvadez e incompetência foram os
contribuintes. Em Dezembro de 2015 o Diário de Notícias estimava em 13 mil
milhões de euros (7,3 por cento do PIB) o dinheiro que o Estado português (ou
seja, os portugueses) deu para salvar bancos. O período contabilizado vai de
2007 a 2015, e o valor já terá aumentado com a recapitalização da CGD.
Neste antro de crimes em que se envolveram os
banqueiros, apenas um esteve em prisão: Oliveira e Costa presidente do BPN,
onde avultavam ex-ministros de governos de Cavaco Silva. Alguns, como Dias
Loureiro, desapareceram de circulação, outros foram constituídos arguidos, como
o “Dono Disto Tudo” Ricardo Salgado, que o máximo que teve foi prisão
domiciliária. Estranha-se que os mesmos juízes que prendem políticos preventivamente
por indícios, sejam tão brandos quando se trata de banqueiros.
***
Alguém me contava que por volta de 1950 (?),
um homem rico, o que então era designado como proprietário rural, ao morrer,
tinha em casa 4 mil contos. Para a época era bastante dinheiro. É claro que já
existiam bancos, mas o dinheiro que passava por eles era em muito menor escala
(percentual) ao que acontece hoje: para quê ter o dinheiro num banco? Hoje toda
a economia, mesmo a economia paralela, passa pelos bancos. As pessoas vivem, de
certo modo sem consciência disso, reféns dos bancos. O ordenado de um
trabalhador – quer seja o salário mínimo ou o do gestor de uma empresa – passa
pela banca. E no entanto, neste momento, não há razão para as pessoas terem
dinheiro no banco (com excepção das grandes fortunas): os bancos aumentaram as
comissões que constituem 40 por cento do seu rendimento e os juros estão a
zero. Se a banca não serve para emprestar dinheiro, em condições razoáveis,
quando as pessoas precisam, nem para obter ganhos através de poupanças, para
que serve a banca? Porque não começar a pensar em extinguir a banca como
programa político? Ou, pelo menos, estabelecer um caderno de encargos que se os
bancos não os cumprissem implicariam a sua passagem para o Estado ou a sua
extinção.
Porque, o que a banca fez nos últimos anos
foi destruir a vida de milhares de pessoas. Pessoas que alinharam no canto da
sereia do marketing bancário, pessoas que de facto precisavam de uma habitação
com dignidade, tal como a nossa Constituição estabelece. Pessoas que de repente
ficaram sem emprego, na cavalgada da crise pela ideologia do capitalismo
selvagem neoliberal. Pessoas que deixaram de puder pagar a prestação da casa
(ou de outros bens) ao banco, e que de repente ficaram sem casa. Curiosamente,
ou talvez não, dessas vítimas da crise não houve notícia, nem reportagens nos meios
de comunicação social. Enfim, destas vítimas dos bancos e da finança
internacional que atacou Portugal e o sul da Europa, não há ainda uma narrativa
– jornalística ou literária ou fílmica –, como as Vinhas da Ira de Steinbeck,
entre outras narrativas, para a grande depressão de 1929.
Eis o duplo crime da escumalha banqueira:
arruinar os bancos que geriam levando a que os contribuintes, através do
Estado, dessem quantias astronómicas para salvar esses bancos; levar ao
desespero, à miséria, à depressão, ao sem-abrigo milhares de pessoas. E tudo
isto feito impunemente, com a subserviência da política perante a banca.
segunda-feira, fevereiro 27, 2017
PÃO COM MANTEIGA
Entre 1980 e 1983, com intervalos, e mais tarde em 1988, surge na então recentemente criada Rádio Comercial (1979) um programa de humor único para a altura. Chamava-se Pão com Manteiga e era feito por uma equipa liderada por Carlos Cruz (locutor) e José Duarte, Bernardo Brito e Cunha, Eduarda Ferreira, Mário Zambujal e Orlando Neves. Do programa nasceram dois livros. Apresenta-se aqui uma das histórias publicada nesses livros (a fonte é a Antologia do Humor Português organizada por Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos para a Texto Editora em 2008).
O Roque
e a amiga
A amiga pulou da cama, fresca, matinal, ainda
cheia de orvalho, e espreguiçou-se longamente em frente ao espelho.
Deu o primeiro sorriso do dia a Roque, que a
espreitava pelo canto do olho enquanto acendia a beata que apagara cuidadosamente
na noite anterior.
A amiga voltou a olhar o espelho, sempre
sorrindo, e prendeu o cabelo com dois ganchos. Depois, saltou para a balança e
o sorriso apagou-se.
– Que foi? – perguntou Roque.
– Dois quilos a mais… – esclareceu a amiga.
Roque deu uma pequena gargalhada.
– E você ri-se! – enfureceu-se a amiga.
E encostando-se à cama perguntou:
– Onde é que está a graça, Roque?
Nova gargalhadinha:
– É que, por este andar, ainda passo a ser
conhecido pelo Roque da pesada…
(Led
Zeppelin, «Rock and Roll»)
terça-feira, janeiro 03, 2017
sábado, dezembro 31, 2016
LIVROS EM 2016
No
ano agora findo certamente publicaram-se, em Portugal, milhares de livros. No
entanto, só uma pequena percentagem desses livros publicados chega às livrarias.
Alguns livros, como a reunião do ensaísmo de Eduardo Lourenço sobre poesia, chegaram
a muito poucas livrarias. Interessa, como sempre, facturar. E para isso nada
melhor do que os livros com personalidades públicas da televisão na capa. De
José Rodrigues dos Santos à inefável Cristina Ferreira. A televisão não acabou
nem foi substituída pela internet, nada melhor que uma visita a uma livraria de
um centro comercial para confirmar este facto. Mas ainda restam alguns lugares
de resistência, pequenas livrarias que vendem os livros da lista aqui publicada
de livros de poesia.
O ano não teve grandes edições. Mas registe-se
um caso importante: a Relógio d’ Água. A editora de Francisco Vale, com mais de
três décadas é um caso singular no panorama editorial português. Do seu
catálogo constam obras e autores fundamentais no cânone. No entanto, a editora
tem dois problemas: 1) a apresentação gráfica, das capas (mal menor) ao tipo de
caracteres (usar num livro caracteres times, iguais aos que estão disponíveis em
qualquer programa word, é um convite ao leitor para se afastar do livro, que
tem que ser um objecto cada vez mais cuidado a nível gráfico); 2) a edição de
dois a três livros por semana, geralmente de grandes autores da literatura. O
leitor perante o catálogo da Relógio d’ Água perde-se, como perante um banquete
que lhe pode provocar uma congestão. O resultado é afastar-se.
Vale a pena assinalar que o que editorialmente
se publica de importante foge aos grandes grupos (Leya e Babel cada vez mais
apagados), e aparecem novas editoras e chancelas como a Elsinore que publicou J.
G. Ballard mas também a prémio nobel Svetlana Alexievich e um livro de um dos
nossos melhores jornalistas: Paulo Moura (Depois do Fim).
No que respeita à poesia, de que aqui tento
apresentar uma lista o mais exaustiva possível do que se publicou em 2016,
certo de erros e omissões, ela vive na generalidade numa clandestinidade
editorial. As obras completas publicadas pela Assírio & Alvim serão uma
excepção, como é o caso da publicação de um grosso primeiro volume da poesia
completa de Ruy Cinatti. Publicar tijolos ao preço de 50 euros por altura do
natal dá, com certeza, rendimento. Da lista que se segue, pode-se concluir que
ainda somos um país de poetas: 13 editoras publicaram mais que um livro de
poesia em 2016, perfazendo, entre reedições e traduções, o número aproximado de
90 livros. Convenhamos que são muitos livros, em tiragens que rondam os 100 ou
200 exemplares.
LIVROS
DE POESIA PUBLICADOS EM 2016
ASSÍRIO
& ALVIM
Helder
Moura Pereira – Golpe de Teatro
Daniel
Jonas – Bisonte
Fernando
Pessoa - English Poetry (selected
and introduced by Richard Zenith)
Fernando
Pessoa – Cancioneiro. Uma antologia (ed. Fernando Cabral Martins e Richard
Zenith)
Sophia
de Mello Breyner Andersen – Ilhas (reed.)
Sophia
de Mello Breyner Andersen -Musa - O Búzio de Cós e Outros Poemas (reed. Pref.
Carlos Mendes de Sousa)
Eugénio
de Andrade – O Outro Nome da Terra (reed. Pref. de Fernando Pinto do Amaral)
Eugénio
de Andrade – Vertentes do Olhar (reed. Pref. de Fernando J. B. Martinho)
Ruy
Belo – Boca Bilingue (reed. Pref. de Gastão Cruz)
Ruy
Belo – Homem de Palavra[s] (reed.)
José de
Almada Negreiros – Poemas Escolhidos
António
Osório – A Felicidade da Luz
Ruy
Cinatti – Obra Poética I (ed. org. por Luís Manuel Gaspar com col. de Joana
Matos Frias e Peter Stilwell)
Adília
Lopes – Bandolim
Luís
Filipe Castro Mendes - Outro Ulisses Regressa a Casa
Filipa
Leal – Vem à Quinta-Feira
Adélia
Prado – Tudo o que existe louvará
Saint-John
Perse - Habitarei o meu nome (Antologia; sel. e trad. de João Moita)
Matsuo
Bashô – O Eremita Viajante [haikus – obra completa] (org. e versão portuguesa
Joaquim M. Palma)
Rabindranath
Tagore – A Asa e a Luz [aforismos. poemas breves] (Trad. Joaquim M. Palma]
Kabir -
O Nome Daquele que não tem Nome (versões de Jorge de Sousa Braga)
Joana
Matos Frias (Sel. e apresentação) Passagens – poesia, artes plásticas
AVERNO
Adília
Lopes – Capilé
Adília
Lopes – Z / S
Nunes
da Rocha - Cordoaria Nacional
AA VV –
Telhados de Vidro nº 21
António
Barahona - Ocarina
Jorge
Roque - Tresmalhado
Ana
Paula Inácio - Anónimos do Século XXI
MARIPOSA
AZUAL
Mariano
Alejandro Ribeiro – Antes da Iluminação – Mariposa azual
Marta
Bernardes – Ícaro
Yvette
K. Centeno – Poemas com Endereço
DERIVA
Ricardo Gil Soeiro - Palimpsesto
António Alves Martins - Cidades Materiais
DERIVA
Ricardo Gil Soeiro - Palimpsesto
António Alves Martins - Cidades Materiais
COMPANHIA
DAS ILHAS
Rui
Almeida – Muito, menos
AA VV –
Poesia, um dia. Poetas em Ródão
João
Candeias – Nervo
Catarina
Costa – A Ração da Noite
Rui
Baião - Noizz
Inês
Lourenço – O Jogo das Comparações
R. Lino
–Políptico
DOUDA
CORRERIA
Margarida
Vale de Gato – Lançamento – Douda Correria
Miguel
Martins – Pince-nez
Nuno
Moura – Clube dos Haxixins
João
Paulo Esteves da Silva – Tâmaras
Raquel
Nobre Guerra – Senhor Roubado
Catarina
Santiago Costa – Tártaro
Marco
Galrito – O Livro Português dos Mortos
Carla
Diacov - Ninguém vai poder dizer que eu não disse, Vol.1
Catarina
Costa – Chiaroscuro
Rui
Azevedo Ribeiro – Fechado para Mudança de Ramo – 50 kg
RELÓGIO
D’ ÁGUA
Rainer
Maria Rilke – Elegias de Duino (Trad. José Miranda Justo) – Relógio d’ Água
T. S.
Eliot – Poemas Escolhidos (Trad. Gualter Cunha, João Almeida Flor, Rui Knopfli)
Manoel
de Barros – Poesia Completa
Bob
Dylan – Tarântula (Trad. Vasco Gato)
Lawrence
Ferlinghetti – A Poesia como Arte Insurgente (Trad. Inês Dias)
Rui
Nunes – Crisálida
Herberto
Helder – Letra Aberta – Porto Editora
Fernando
Pinto do Amaral – Manual de Cardiologia – Dom Quixote
Alberto
Pimenta - Nove fabulo, o mea vox. De novo falo, a meia voz – Pianola
A
Dasilva O. – O Poeta Choupe la Peace – Casa-Museu A. Dasilva O.
Bénédicte
Houart – Vida Variações III – Livros Cotovia
TEA FOR
ONE
Luís de
Brito – Jejum – Tea for one
Ricardo
Tiago Moura – Pequena Indústria
ARTEFACTO
Vasco
Gato – Primeiro Direito
Luís
Falcão - Bruma Luminosíssima
Miguel
Filipe Mochila – Tempo da impaciência
LÍNGUA
MORTA
Jorge
Sousa Braga (versões e traduções) – Sombras brancas
AA VV –
Apartamentos
AA VV –
A Pedra-Que-Mata (Poesia Japonesa)
Frederico
Pedreira – Fazer de Morto
Vasco
Gato – Lacre, Correspondência afectiva
António
Amaral Tavares - Movimento de Terras
Miguel
Alexandre Marquez – Coda
Rui
Ângelo Araújo – A Origem do Ódio
IMPRENSA
NACIONAL - CASA DA MOEDA
Eucanaã
Ferraz – Poesia (1990-2016)
José
Gardeazabal – História do Século XX
Rui
Lage – Estrada Nacional
LICORNE
Rumi –
O Círculo do Amor
Paulo
Pego / Sónia Aniceto – Entre-Tecidos
João
Carlos Raposo Nunes – Brancura
Sofia
Martinez / Adriana Crespo – Poemagens
Isabel
Aguiar – Eu Amo Tarkovski
Eduardo
Quina – Corpo: labirintos
DO LADO
ESQUERDO
João
Vasco Coelho – Zero-a-zero
AA VV –
Casa
Pablo
Garcia Casado – Faróis Acessos à Procura do Oceano (Trad. Maria Sousa)
Leonor
Castro Nunes / Marcos Foz – A Bifurcação dos Ossos
Hal
Sirowitz – Como Eles Costumavam Dizer (Trad. Maria Sousa)
Bénédicte
Houart / Juliana Martins (fotografias) – Há Dias II
TINTA
DA CHINA
Cláudia
R. Sampaio – Ver no Escuro – Tinta da China
António
Carlos Cortez – A Dor Concreta
Miguel
Cardoso – Víveres
ENSAIO
E FICÇÃO – Uma pequena lista
Ruben
Fonseca – Histórias Curtas – Sextante
José
Gil – Ritmos e Visões – Relógio d’ Água
Annemarie
Schwarzenbach – Todos os Caminhos Estão Abertos – Relógio d’Água
Eduardo
Lourenço – Tempo e Poesia (ed. aumentada)– Fundação Calouste Gulbenkian
Ana
Teresa Pereira – Karen – Relógio d’ Água
Lídia
Jorge – O Amor em Lobito Bey -Dom Quixote
Camilo
Castelo Branco – Camiliana – Círculo de Leitores
Paulo
Varela Gomes – Passos Perdidos – Tinta da China
Lucia
Berlin – Manual para Mulheres de limpeza – Alfaguera
AA VV –
Textos e Pretextos 20: Literatura e Futebol (Revista do Centro de Estudos Comparatistas
da FLUL)
terça-feira, novembro 29, 2016
UM PALHAÇO NA CASA BRANCA
E de
repente, na noite eleitoral americana de 8 de novembro, tudo mudou. O
impossível, que era completamente possível mas os média não queriam ver,
aconteceu: Donald Trump ganhou a corrida à casa branca como a tartaruga ganhou
à lebre. A Europa não percebeu como foi possível a derrota de Hillary Clinton –
nem ela percebeu. O escândalo ainda dura. Os próximos quatro anos podem ser
perigosos para o mundo com um palhaço de implante capilar esquisito à frente do
mais importante país do mundo. Como foi possível, continuam a interrogar-se os
americanos bem-pensantes. Donald Trump tinha tudo contra ele: desde as
sondagens que davam a vitória à senhora Clinton, até todos os disparates
xenófobos, racistas e sexistas que afirmou durante a campanha. Para além disso
Trump é um homem de negócios, sem experiência política – o que vai ele fazer na
casa branca? Como é possível que alguém tão patético como Trump seja presidente
dos Estados Unidos? Como pode um palhaço ter o código do maior arsenal nuclear
do mundo? Enfim, multiplicam-se as interrogações. Mas embora a maioria dos
americanos não tenha votado nele – Trump ganhou porque o sistema antiquado e
imperfeito, mas tão valorizado pelos europeus, da democracia americana assim o
permite –, demasiados americanos votaram nele. Porquê? Porquê tanta gente a
aderir a um discurso como o de Trump depois de há quatro anos terem reelegido Barak
Obama? A pergunta parece não ter resposta. Ainda mais se a tudo isto juntarmos
o facto dos média norte-americanos (e claro, dos europeus) estarem a favor Hillary
Clinton. Perante este último facto, parece-me estarmos frente a uma estranha
desobediência mediática colectiva. Ou seja, muitos eleitores votaram contra as
elites. O problema é que as elites não parecem perceber que são um problema – é
contra elas que aparecem os discursos populistas. E o problema real que o mundo
vai enfrentar, com ou sem elites, com ou sem populismo é o de ter Donald Trump
na Casa Branca.
domingo, outubro 30, 2016
A GERINÇONÇA OU “O QUE ELES QUEREM É TACHO”
A
solução de um governo de esquerda, inédita na democracia portuguesa de governos
constitucionais, a que Paulo Portas chamou “geringonça”, leva quase um ano à
frente do país. É certo que é um governo PS, em que o Bloco e o PCP apenas dão
o apoio parlamentar, mas mesmo assim não deixa de ser inédita esta geringonça.
Mas a questão fundamental reside em saber em quê este governo mudou o país
nestes quase doze meses. Havia muito a esperar de um governo PS, e muito mais
de um governo PS apoiado pelo BE e pelo PCP. Esperava-se que as medidas draconianas
impostas pelo governo anterior de Passos Coelho fossem invertidas,
principalmente a nível das políticas fiscais. Ora nada disso aconteceu: o colossal
aumento de impostos, anunciado pelo então ministro das finanças Vítor Gaspar,
continua em vigor, sem que os escalões de IRS sejam alterados. Na verdade, o
governo de António Costa criou mais impostos a juntar aos que tinham sido
inventados pelo governo PSD/CDS. Este
governo, com o apoio da chamada esquerda radical tem vivido de uma ou outra
reposição que em nada muda a crise criada pelos especuladores do grande capital
com a ajuda de uma direita neoliberal traidora de Portugal. Essa direita que
quis prescindir da soberania nacional para entregar o país a uma troika de
interesses capitalista. E as pessoas, que deviam ser o cerne de um governo, que
se lixem.
O
certo é que a crise continua, a dívida externa não diminuiu, o desemprego se
baixou foi à custa de medidas criadas pelos centros de emprego para riscar os
desempregados que não cumprem as ordens atentatórias da sua dignidade. As
prestações sociais, como o RSI continuam em valores indignos; há pessoas – algumas
centenas, pelo menos – cujo rendimento é zero, vivendo da ajuda e dependência de
familiares ou amigos. O país não recuperou do empobrecimento imposto pelo
governo de Passos Coelho e pela troika.
Perante
isto o Bloco de Esquerda e o PCP, cuja atitude até aqui tinha sido sempre
crítica de tudo, murcharam. Vão tecendo uma ou outra crítica, mas no essencial
apoiam o governo de António Costa, com uma disciplina militar. BE e PCP estão
por isso irreconhecíveis. E assim a geringonça funciona, perante uma oposição
impotente que é responsável pela criação da crise que vivemos.
Porque
mesmo que a palavra crise tenha deixado de ser usada no discurso mediático, é
esse o sentimento que continua a vigorar entre os portugueses – o país continua
em crise. A direita fez tudo para que a crise se instalasse na cabeça das
pessoas, e por consequência na economia real. Conseguiu. Graças ao governo
Passos Coelho, instalou-se uma mentalidade austeritária em Portugal que
prolonga a anemia económica. É uma mentalidade salazarenta que mostra que o
ditador ficou entranhado no país como uma nódoa.
Volto
à geringonça. O que ela mostra são duas coisas essenciais: 1) que mesmo entre
partidos da chamada esquerda radical, Bloco de Esquerda e PCP, que tinham uma
atitude essencialmente crítica, chega uma altura em que a sede do poder é
maior. E para isso estão dispostos a engolir sapos, a abdicar das soluções que
apresentavam (como a renegociação da dívida) em favor de um lugar ao lado do
poder que talvez, se a solução geringonça funcionar, pode vir a tornar-se num
lugar no poder, uma cadeira no governo. Como a história do Bloco prova, na
política nunca se pode ser eternamente Peter Pan. 2) Não correspondendo esta
solução a uma real melhoria da vida dos portugueses, e agora que todos os
partidos com representação parlamentar passaram pelo poder, sem apresentarem
soluções para a vida das pessoas, mas sobretudo interessados no poder pelo
poder, seguindo o conselho de Maquiavel, como reagirão os votantes em próximas
eleições? Os portugueses são cordatos, conservadores mesmo quando votam no
Bloco ou no PCP – a tal nódoa ou nuvem salazarista que paira sobre o país – e não
têm comportamentos “perigosos” como os islandeses. Mas o que fica de uma
democracia parlamentar quando se perde a confiança nos partidos que estão no hemiciclo?
Fica, talvez, a expressão popular que é uma atitude e crítica anarquista a este
sistema político: “o que eles querem é tacho”.
sexta-feira, setembro 30, 2016
TEXTOS E PRETEXTOS - LITERATURA E FUTEBOL
Ao número 20 a revista Textos e Pretextos (do Centro de Estudos Comparatistas da FLUL) abordou a temática da literatura e do futebol. A revista conta com ensaios de António Sá Moura, Norberto do Vale Cardoso e Nuno Domingos; textos (depoimentos, pequenas ficções, crónicas) de Álvaro Magalhães, Eric Nepomuceno, Gonçalo M. Tavares, Inês Fonseca
Santos, João Assis Pacheco, Jorge Almeida e Nuno Amado, Rui Miguel Tovar
e Ruy Castro. A terminar uma entrevista ao escritor brasileiro Nelson Rodrigues e uma bibliografia sobre literatura e futebol.
quarta-feira, agosto 31, 2016
AUGUSTO MONTERROSO
A TARTARUGA E AQUILES
Finalmente, segundo o cabograma, na semana passada a Tartaruga chegou à meta.
Em conferência de imprensa declarou modestamente que sempre temeu perder, já que o seu rival lhe pisou os calcanhares o tempo todo.
De facto, uma décima-milésima-trilionésima de segundo depois, com uma seta e amaldiçoando Zenão de Eleia, chegou Aquiles.
Augusto Monterroso, A ovelha negra e outras fábulas, Angelus Novus, 2008, p. 31
domingo, julho 10, 2016
CAMPEÕES EUROPEUS
Durante longos anos a grande referência em termos de selecção nacional foi o 3º lugar no Mundial de Inglaterra, com uma selecção onde predominava Eusébio. Depois, há 32 anos, em França, foi uma derrota nas meias-finais com uma selecção de que faziam parte jogadores esquecidos mas grandioso no futebol português (Fernando Gomes, Chalana, Bento, Frasco, Sousa, Jordão, Néné, Oliveira... nem todos jogaram em 1984, mas todos fazem parte de uma geração grandiosa do futebol português). Depois houve Figo, Futre e outros; a final perdida frente à Grécia em casa há 12 anos. E agora, quando no início deste Euro 2016, Portugal não era apontado como favorito; quando o seleccionador Fernando Santos disse que só regressava a Portugal no dia 11 e todos se riram. Hoje o "impossível" realizou-se: Portugal tornou-se campeão da Europa, dessa Europa onde é chamado de porco, dessa Europa que políticamente nos quer impôr sanções.
Esta vitória da selecção nacional em França, frente à França, tem um relevo desportivo de décadas, mas também um relevo político e social de décadas. É como que uma vingança pelo sofrimento de mais de um milhão de migrantes que, por vezes nas piores condições foram ganhar a vida para terras gaulesas (veja-se o exemplo da mala de cartão de Linda de Suza, as barracas onde em finais dos anos 60 os portugueses viviam nas mais precárias condições).
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