RECREIO
RECREIO
1, Na faixa de Gaza vive-se o inominável. Todos
os dias dezenas de palestinianos são mortos quando vão buscar comida. São já
cerca de 56 mil os mortos na faixa de Gaza, desde o 7 de Outubro de 2023,
altura em que o Hamas atacou e fez reféns colonos israelitas. A ira bíblica de
Israel abateu-se sobre os palestinianos, entrincheirados na estreita faixa de
Gaza, entre o mar e o estado de Israel. Dois milhões de pessoas vivendo numa
prisão a céu aberto. O Hamas agora, como outrora a OLP, surge como resposta a
essa situação infra-humana. A criação do estado de Israel deu-se depois do fim
da II Guerra Mundial, ou seja, depois do fim do Holocausto em que os nazis
exterminaram cerca de seis milhões de judeus. A solução final nazi, foi naquela
altura o inominável que palavras como Holocausto pretenderam traduzir. Mas agora
é Israel – melhor dizendo o primeiro-ministro Benjamin Natanyahu – que se
comporta como os nazis. Trata-se de um lento genocídio, pela fome como arma de
guerra, pela falsa ajuda humanitária de uma alegada fundação privada norte-americana,
que é um bando de mercenários pronto a disparar com o exército israelita sobre
os famintos palestinianos. E tudo isto é uma criação da aliança entre Trump e
Natanyahu.
A FORMA JUSTA
O PRINCÍPIO
Dois gregos conversam: Sócrates, talvez, e Parménides.
Convém que nunca saibamos os seus nomes; assim, a história será mais misteriosa e tranquila.
O tema do diálogo é abstracto. Às vezes,
aludem a mitos, dos quais ambos descrêem. As razões que alegam podem abundar em
falácias e nunca intentam um fim.
Não polemicam. Já não querem persuadir, nem
ser persuadidos, não pensam em ganhar ou perder.
Numa só coisa estão de acordo: sabem que o
diálogo é o não impossível caminho para chegar a uma verdade.
Livres do mito e da metáfora, pensam, ou
procuram pensar.
Nunca saberemos os seus nomes.
Esta conversa de dois desconhecidos, num
lugar da Grécia, é o facto capital da História.
Pois já olvidaram a prece e a magia.
Jorge Luis Borges, A Memória de Shakespeare,
trad. Luís Alves da Costa, Vega, 2002, p. 7
Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires (Argentina) em 1899. Foi dos maiores criadores da literatura mundial do século XX. Não recebeu o Nobel nem precisava; o Nobel é que precisava dele. A sua criação de mundos atinge o auge em dois volumes de contos: Ficções e O Aleph.
OLHOS
Falar tão baixo que ninguém ouça, escrever tão pequeno que ninguém leia, esvaziar tanto os ouvidos e os olhos que me achem sumida no chão que piso. Meu eu ausente, comprando casas de porcelana para minha mãe. Coleccionamos casas, pássaros nas molduras e budas mendicantes, que nos olham além da ternura bojuda de um candeeiro em latão dourado a que a mãe passa o lustre todas as segundas. Não temos casas nem asas. Cristo menino é perneta e dorme na almofadinha de veludo rosado que lhe deram para fazer conjunto na vez das palhas. Não repousa, olha-nos de olhos bem abertos de vidro pintado; nunca pude ter berlindes, pois os adultos tinham medo que os engolisse; mas eu não engoliria os olhos do menino magoado. Embate na noite a minha alma e é possível que a tenha trocado por olhos vidrados a um cristo de duas pernas. Gemer tão baixo que todos ouçam, falar tão silenciosamente que ninguém possa dormir, respirar tão pausadamente que até santos acordem e anjos se evadam dos céus. Que outra forma tenho eu de recriar a tua solidão na minha?
Beatriz Hierro Lopes, É Quase Noite, Averno, Lisboa, 2013.
O almirante (ou ex-almirante) Henrique
Gouveia e Melo, depois de ter organizado a vacinação de milhões de portugueses
contra a covid, num cenário de ficção científica, tornou-se num mito
sebastianista. Esse mito foi alimentado pelos meios de comunicação social como
candidato às eleições presidenciais de 2026. E eis que o militar submarinista,
já no ano passado, aparecia em primeiro lugar nas sondagens. O próprio Gouveia
e Melo, em entrevistas, não descartou a hipótese de uma candidatura. Agora,
depois do artigo publicado pelo almirante no Expresso de 21 de Fevereiro, não
restam dúvidas que Gouveia e Melo será candidato às próximas eleições
presidenciais. Só falta oficializar a candidatura, como já fez Marques Mendes e
Mariana Leitão (candidata apresentada pela IL).
A
grande questão que se colocava aos comentadores políticos sobre a candidatura
do militar submarinista, era saber quais as suas ideias políticas, como se
posicionava no espectro político: é de esquerda? De direita? Um populista?
Ninguém sabia. Afinal ficamos a saber que o submarinista pesca eleitorado entre
o socialismo e a social-democracia, portanto ao centro que é onde há mais
peixes. Mas porque se interrogavam, antes deste artigo tão minuciosamente
analisado, os comentadores políticos? Será que não sabem o que é o you tube? É
que por lá andam vídeos com as ideias de Gouveia e Melo. As ideias do
submarinista candidato a candidato a presidente da República Portuguesa, enfim
a grande ideia, que poderá fazer de Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e
Melo o novo Infante D. Henrique, é colonizar o mar. Colonizar talvez não seja
bem a palavra certa, mas os peixes não vão gostar. Diz Gouveia e Melo num TEDx
que o “ser humano, antes de ir para o
espaço, vai habitar o mar” e isto antes de 2050, pelos cálculos do militar
agora na reserva. No mesmo TEDx Gouveia e Melo fala de “cidades flutuantes”.
Mais, “vamos passar de um mundo terreno para um mundo oceanocêntrico”. Para o
ex-almirante “não devemos chamar a este planeta Terra, mas Água” porque 2/3 do
planeta é constituído por água. Nesse TEDx, realizado no Porto, Henrique
Gouveia e Melo faz o elogio do Infante D. Henrique, nascido na cidade do Porto.
Este
homem andou durante mais de 40 anos debaixo de água, em submarinos. Em criança
certamente leu as 20 Mil Léguas Submarinas de Jules Verne. Chegou à mais alta patente das forças
armadas, foi empurrado por um vírus para a ribalta mediática, e agora, quer ser
presidente da República. Mais, numa atitude megalómana, quer ser um novo
Infante D. Henrique. Isto é política, ou ficção científica? As duas coisas. Mas
os comentadores políticos só percebem de política em terra. Não são capazes de
ver que temos aqui um Elon Musk (sem saudação nazi) português. O submarinista
mete água? Claro, é uma espécie de Homem da Atlântida (série que passou na tv
portuguesa nos anos 80). Henrique Passaláqua (repare-se neste nome, que contém
áqua = água) é água por todos os lados. Com as sondagens que tem, a simpatia do
eleitorado feminino, já foi eleito presidente, 11 meses antes das eleições. Mas
o que fará um homem da água no palácio de Belém? Será que vai atirar com 10
milhões de portugueses borda fora para ocupar as cidades marítimas ou
flutuantes? Teremos presidências não abertas, mas fechadas dentro do exíguo
espaço de um submarino?
Na
verdade – ou na mentira – o ex-almirante é uma fabricação mediática resultante,
como já foi dito, da vacinação contra a covid. Como tal foi possível? Não é uma
atitude de total irresponsabilidade por parte dos meios de comunicação social
atirar para a corrida presidencial um militar sobre o qual eram – e continuam a
ser – desconhecidas as ideias políticas. Porque Gouveia e Melo atira para um
eleitorado do centro, um espaço muito amplo; porque Gouveia e Melo com a sua
atitude autoritária chegou a ser pensado pelo Chega para ser o candidato
apoiado pelo partido de André Ventura (que também foi uma criação mediática até
se tornar um elefante no meio do parlamento).
No
artigo publicado no Expresso aparece uma ideia nova: a de demitir o governo
quando este não cumprir com as promessas eleitorais, algo que foi bastante
evidente com o governo de Passos Coelho/Paulo Portas, mas também com governos
anteriores. Aqui é o governo que mete água, e de forma significativa nos
últimos 50 anos de democracia. Confesso que esta ideia me agrada, um candidato a
primeiro-ministro não pode dizer que vai baixar os impostos na campanha
eleitoral e, quando alcançar o poder subir a carga fiscal. Ou seja, não pode
mentir ao seu eleitorado, tem que ser fiel às suas promessas eleitorais.
Mas
no geral, e faltando ainda muito tempo para as eleições presidenciais, mas
tendo em conta as declarações que se podem encontrar no you tube por Gouveia e
Melo, quer pelo facto deste pertencer a uma cultura militar, marcada pela
disciplina, não parece trazer nada de bom para a democracia portuguesa
(bastante fragilizada no mundo de Trump & Musk). Já tivemos a experiência
de um militar na presidência da república, Ramalho Eanes eleito para o primeiro
mandato em 1976, mas esses eram tempos diferentes, e Eanes tinha sido um dos
vencedores do 25 de Novembro de 1975, contra um golpe da extrema-esquerda –
portanto era conhecida a sua posição política. De Gouveia e Melo sabemos que é
um submarinista, e talvez aproveite o cargo de presidente da República – se lá
chegar – para usar a sua “magistratura de influência” no sentido de construir
as “cidades flutuantes”. Uma ideia mirabolante de ficção científica. Uma ficção
científica que estará sempre ao serviço do capitalismo, como o almirante
Gouveia e Melo.
TELEVISÃO
Eu gostava de desenhar. Estava sempre
desenhando. Isso antigamente. Agora perdi a vontade de desenhar, ou melhor, não
sei o que desenhar. Eu desenho tudo, mulheres nuas, homem morto, flor – flor eu
não gostava muito, só do cheiro –, desenhava ruas, letreiros luminosos, pessoas
em volta de uma mesa jantando (ou almoçando), dois sujeitos jogando sinuca
aleijadinho – aleijadinho eu gostava de desenhar, vários tipos de aleijadinho,
sem perna, em cadeira de rodas, sem braço, mas o que eu gostava mesmo era do
aleijadinho com duas muletas e sem as duas pernas. Eu desenhava a cara desse
aleijadinho como a de um homem feliz, feliz porque podia passear pelas ruas,
ainda que fosse de muletas.
Havia uma coisa que eu detestava: desenho
abstrato. «Abstração: uma coisa de difícil compreensão, obscura», diz o
dicionário. Novamente o dicionário: «Abstrato: que não é claro para o espírito,
que é difícil de compreender, de explicar.»
Você desenha uma porcaria que não quer dizer
nada e diz «é uma abstração», e os bestalhões dizem «muito interessante». Será que
essa gente não sabe que arte tem que ter um significado? Tem que exprimir algo?
Voltando ao meu problema. Eu sento à mesa, o
papel e os crayons na frente, e não consigo desenhar. Na verdade, nem sento
mais à mesa. Vou direto pra televisão ver uma das porcarias que exibem.
Falta inspiração? Isso parece coisa religiosa
e eu sou ateu. Falta motivação? O artista precisa de estar motivado? Isso me
parece pueril, uma tolice.
Eu sento à mesa, com o material para desenhar,
espero um minuto. Desenhar o quê? Vou para a poltrona e ligo a televisão. Penso,
amanhã vou desenhar. Mas volto a ver televisão. Vejo televisão todos os dias. Isso
é coisa de débil mental. Mas vejo televisão, e vejo novamente, e novamente, e
novamente. Ver televisão deixa o sujeito maluco.
Compro um revólver, vou dar um tiro na
cabeça.
Mas em vez de dar um tiro na cabeça atiro na
televisão. Vários tiros, destruo aquele monstro.
Não demorou muitos dias para que eu voltasse
a desenhar.
Televisão? Nunca mais. Sem televisão eu
fiquei bom, deixei de ser neurótico, coisa parecida.
Mas quando passo na vitrine de uma loja e
vejo um aparelho de televisão confesso que meu coração bate apressado e minha
boca se enche de saliva.
(Rubem Fonseca, Histórias Curtas, Sextante, pp. 67-68)
1, No que respeita à actualidade geral, o ano
de 2024 foi marcado pela continuidade. A guerra na Ucrânia continuou, a guerra
entre Israel e o Hamas também continuou com o genocídio do povo palestiniano
por parte de Israel. A guerra é estúpida, este genocídio praticado por quem
sofreu há 80 anos um dos mais ignóbeis genocídios da história, é profundamente
estupido e desumano. No entanto, não podemos culpar o povo judeu, mas o líder
político do Estado de Israel, Benjamim Natanyahu. A vitória de Donald Trump nas
eleições norte-americanas, em Novembro, foi outro acontecimento que só a partir
de Janeiro de 2025, quando Trump entra em funções, se poderá avaliar. Mas, este
segundo mandato parece vir a ter uma diferença: a presença de Elon Musk na
administração de Trump. Musk é um dos homens mais ricos do mundo, um excêntrico
perigoso que sonha conquistar Marte, e que comprou a rede social Twitter e a
transformou no X. Mas, ainda recentemente Musk apoiou a extrema-direita alemã
da AfD, o que mostra que a extrema-direita que vai ganhando eleições um pouco
por todo o mundo, tem do seu lado o homem mais rico do mundo. E isso torna o
mundo mais perigoso do que nunca, porque desenha uma distopia (Musk está
também, como outros multimilionários de Sillicon Valey, apostado na IA, e num
estranho dispositivo para implantar na mente humana). Por cá, a nova AD ganhou,
por escassa margem sobre o PS, as eleições legislativas, formando Luís
Montenegro um governo PSD-CDS. Lucília Gago abandonou, por fim de mandato, a
PGR e, de certa forma “deu” a António Costa o lugar de Presidente do Conselho
Europeu.
2, 2024 foi um ano de tantos centenários que
o V centenário do nascimento de Luís de Camões ia sendo esquecido. Do ponto de
vista editorial, Isabel Rio Novo andava há já cinco anos a preparar uma
biografia de Camões: Fortuna, Caso, Tempo e Sorte (Contraponto, 2024),
um grosso volume de mais de 700 páginas resume a vida do autor d’ Os
Lusíadas. Frederico Lourenço (que tem vindo a publicar uma tradução “laica”
da Bíblia, traduzida a partir do grego) organizou uma antologia da poesia
camoniana, Camões – Uma Antologia (Quetzal, 2024), onde metade do volume
de cerca de 600 páginas é ocupado com comentários do professor da Universidade
de Coimbra. Registe-se ainda a publicação do teatro de Camões, num volume com “prefácio,
fixação de texto e notas” de Sérgio Guimarães de Sousa, editado pela Assírio
& Alvim. Para quem quiser ler toda a obra de Camões, ela está publicada na
E-Primatur, em três volumes, organizados por Maria Vitalina Leal de Matos. No
campo mediático, Jorge Reis-Sá (que este ano publicou a reunião da sua poesia
no volume Prado do Repouso – edição A Casa dos Ceifeiros), tem vindo a
apresentar na RTP 3, o programa 1000xCamões, onde conversa com figuras de
várias áreas sobre a poesia camoniana. A RTP 2 optou pela leitura dos 10 cantos
de Os Lusíadas feita em outros tantos episódios. As comemorações vão
estender-se até 2026 e têm um carácter político (como não podia deixar de ser,
tratando-se de Camões): a nova ministra da cultura, Dalila Rodrigues, nomeou
José António Bernardes, em substituição da anterior comissária, Isabel Marnoto.
Para já, o governo AD destina 2,2 milhões de euros, para comemorar Camões, no
OE para o ano de 2025.
3, Mas no que diz respeito a centenários,
2024 não foi só o de Camões. Dois importantes poetas portugueses nasceram há
100 anos: António Ramos Rosa e Alexandre O’ Neill. De O’ Neill a Assírio &
Alvim republicou dois livros, Tempo de Fantasmas (primeira edição de
1951) e No Reino da Dinamarca (primeira edição 1958). Sobre Alexandre O’
Neill há ainda uma exposição, “No Reino de O’ Neill”, comissariada por Joana
Meirim (que publicou o ensaio Uma Carta à Posteridade, Jorge de Sena e
Alexandre O’ Neill – Imprensa Nacional, 2024) e que conta com um texto
inédito de Adília Lopes intitulado “O’ Neill e a tia da aletria”. Quanto a
António Ramos Rosa, poeta essencial da poesia portuguesa, mas também um teórico
da própria poesia, alguém que publicou cerca de cem livros, caiu um absoluto
silêncio e esquecimento sobre o seu centenário. A Assírio & Alvim tem vindo
a publicar a sua obra, de que já foram publicados dois volumes (em 2018 e
2020), e existe uma antologia, Poesia Presente (Assírio &
Alvim, org. de Maria Filipe Ramos Rosa, com prefácio de J. Tolentino Mendonça).
Já sobre Franz Kafka, nome monstruoso da literatura mundial, não houve por cá
esquecimentos editoriais. Destaque-se, entre as várias obras publicadas os Contos,
Parábolas, Fragmentos (Relógio d’ Água, com tradução de António Sousa
Ribeiro, ver lista) e o primeiro volume (O Artista da Fome, tradução de
Bruno C. Duarte) de 3 com que a E-Primatur pretende publicar toda a prosa breve
do autor de O Processo. E ainda o centenário do nascimento de Bernardo
Santareno, talvez o melhor dramaturgo português do século XX.
4, O Porto é hoje uma cidade
descaracterizada. A culpa, como em muitas outras cidades europeias, é do
turismo. Isso levou a uma especulação imobiliária que está a transformar a
cidade, o que fez com que a Livraria Latina, fundada em 1942, e pertencente
desde há vários anos ao grupo Leya, fechasse. A Livraria Latina situava-se no
número 1 da Rua de Santa Catarina, uma artéria pedonal, de comércio de rua, das
mais movimentadas do Porto. Foi uma das principais livrarias do Porto,
juntamente com a saudosa Livraria Leitura e a Livraria Lello – que das três, e
graças à arquitectura do edifício onde está, se tornou num lugar de
peregrinação turística. Mais à frente, na mesma Rua de Santa Catarina,
funcionava, desde há cerca de 25 anos, uma loja da FNAC que este ano fechou.
Uma das características desta loja (replicada noutras), era funcionar como uma
biblioteca: as pessoas iam à FNAC, escolhiam um livro e sentavam-se num dos
sofás que por lá existia (se houvesse lugar). Algo replicado por algumas
livrarias. A FNAC, quando apareceu em Portugal foi algo de novo: podiam-se
comprar discos, filmes e livros no mesmo espaço. Nessa altura, a Internet dava
os primeiros passos, e os computadores – mesmo portáteis – tinham uma gaveta
para colocar o cd com disco ou filme. Hoje, curiosamente, é o livro que
sobrevive aos cd’s de discos e filmes, substituídos por plataformas on-line.
Portanto, o livro resiste, um objecto com séculos. Com séculos talvez se
encontrem alguns exemplares de livros que fazem parte da Biblioteca Municipal
do Porto. Este ano fechou para obras de alargamento, com um projecto de
arquitectura de Eduardo Souto Moura. Prevê-se que reabra daqui a quatro ou
cinco anos. Ora, tendo em conta que é a segunda maior biblioteca portuguesa,
com depósito legal, que só lá se encontram livros e jornais essenciais para
investigações académicas ou pessoais, é de lamentar que não se arranjasse uma
solução em que a biblioteca continuasse a funcionar. Afinal Souto Moura não é
um dos principais arquitectos mundiais?
5, Os prémios literários fazem naturalmente
parte do mundo literário (já o podia dizer o senhor de La Palisse). Há prémios
de dois tipos: os de reconhecimento de uma obra literária, e os que premeiam
inéditos, ou seja, neste caso aspirantes a escritores ou escritores que
procuram publicar uma obra e ter uma distinção. Entre os dois tipos de prémios
há um fosso, com variantes. Mas, na generalidade os prémios literários servem
para homenagear figuras da literatura (Camões, Vergílio Ferreira, Agustina
Bessa-Luís ou mesmo Ernesto Sampaio, no caso português). O Nobel da literatura
foi este ano para a escritora sul-coreana Han Kang, de 53 anos (uma das mais jovens a
receber o Nobel da literatura), o Prémio Camões foi para a poetisa brasileira
Adélia Prado, o Prémio José Saramago (inéditos) foi para Francisco Mota Saraiva
(que em 2023 tinha ganho o prémio literário revelação Agustina Bessa-Luís), o
Vergílio Ferreira (inéditos) para António Garcia Barreto. Enfim, será longa a
lista de premiados com os vários prémios que dão a possibilidade de publicar a
obra a concurso, para além do autor em alguns casos também receber uma
(pequena) importância pecuniária. No entanto, algo surpreende quanto ao prémio
de Melhor Livro de Poesia atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores.
Foi para o poeta Jorge Gomes Miranda (JGM) pelo livro Emoções Artificiais
(2023, Gradiva). Em entrevista de JGM ao jornal Público ficamos a saber que se
trata de um livro sobre a tecnologia, a Inteligência Artificial, a robótica. O
autor, que iniciou a sua actividade como poeta em meados da década de 1990, diz
na referida entrevista, “Esperemos que os robôs do futuro sejam mais humanos do
que certos humanos”. Essa humanização dos robôs pode ser constatada nos poemas
que estão disponíveis on-line. Será um livro tecnofílico, mais surpreendente por ser um livro de poesia que pelo tema abordado, que na ficção científica
vem de longe, de Mary Shelley que em 1818 publicou Frankenstein. Que numa
altura em que a realidade parece ultrapassar a ficção científica, sejamos
acolhedores do que enforma o pós-humano, que não é senão o pior do humano, numa
lógica capitalista, é algo, no mínimo, estranho. Ou ingénuo.
Segue-se,
abaixo, uma lista de livros; uns lidos, outros desejos de leitura.
POESIA
Adília Lopes – Dobra (Assírio & Alvim)
José Carlos Barros – Taludes Instáveis (Dom
Quixote)
Ana Hatherly – Tisanas (Assírio & Alvim,
org. Ana Marques Gastão)
Filipa Leal – Adrenalina (Assírio &
Alvim)
Sebastião da Gama – O Inquieto Verbo do Mar –
Poesia Reunida (Assírio & Alvim)
Marcos Foz – Enublado Dizes (Bestiário)
Nuno Moura – Cantos (Douda Correria)
T. S. Eliot – A Terra Devastada (Assírio
& Alvim, trad. Jorge Vaz de Carvalho)
FICÇÃO
Ana Teresa Pereira – Como Numa História de
William Irish (Relógio d’ Água)
Teresa Veiga – Vermelho Delicado (Tinta da
China)
Stefan Zweig – Amok (Relógio d’ Água)
Knut Hamsun – Fome (Relógio d’ Água)
Thomas Bernhard – Antigos Mestres (comédia)
(Documenta)
Jon Fosse – Uma Brancura Luminosa (Cavalo de
Ferro)
Franz Kafka – Contos,
Parábolas, Fragmentos (Relógio d’ Água)
NÃO-FICÇÃO
AA VV – História Global da Literatura
Portuguesa (Temas e Debates)
AA VV – O Que Lêem os Escritores (Tinta da
China)
AA VV – Adília Lopes: do Privado ao Político
(Documenta)
Yuval Noah Harari – Nexus (Elsinore)
Maurice Nadeau – História do Surrealismo
(Assírio & Alvim)
Wenceslau de Moraes – Paisagens da China e do
Japão (Livros de Bordo)
António Marques – Paz (Edições 70)
Peter Singer – Libertação Animal, Hoje
(Edições 70)
João Barrento – Os Infinitos Modos da Palavra – Caminhos e metamorfoses da poesia portuguesa contemporânea (Companhia das Ilhas)