segunda-feira, maio 25, 2009

José Mário Silva


méxico 86

Erecções inoportunas,
bigodinho ridículo,
poluções nocturnas,
tropeços, tristeza,
tantos embaraços.
O corpo crescia, brusco
desatinado dos ossos, difícil
de encaixar na harmonia
do mundo. Enquanto
isso, um relâmpago
azul atravessava,
em ziguezague,
o longínquo relvado
do estádio AZteca.
*
formiga

«Pai, anda cá», diz a minha filha.
Pela parede branca sobe uma formiga,
minúscula, muito lenta, obstinada.
A minha filha encolhe o corpo
pequenino para olhar. Não sei se é
a primeira vez que vê uma formiga;
mas é, parece-me, a primeira vez
que se apercebe da enorme diferença
de escala que a separa do insecto.
A minha filha acompanha a subida
heróica da formiga pela parede
branca, vira-se para mim, sorri.
É nesse espaço subitamente tenso,
criado entre a alegria infantil da
descoberta e o esforço irracional
da formiga, que nasce o poema,
mesmo se eu já desisti dele para
limpar o ranho que a minha filha,
absorta, deixou chegar até à boca.

José Mário Silva, Luz Indecisa, Oceanos, 2009. Poemas retirados das páginas 23 e 41, respectivamente.
José Mário Silva nasce em 1972, em Paris. Licenciado em Biologia é jornalista, coordenador da secção Livros do Expresso e colunista da revista Ler. Mantém ainda o blogue sobre livros Bibliotecário de Babel. Publicou os livros de poesia Nuvens & Labirintos (Gótica, 2001) e Luz Indecisa (Oceanos, 2009), além do livro de narrativas curtas Efeito Borboleta e outras histórias (Oficina do Livro, 2008).

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