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segunda-feira, dezembro 06, 2010

Margarida Vale de Gato


DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.

Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar, Mariposa Azual, Lisboa, 2010, p. 9.

Margarida Vale de Gato é tradutora e docente universitária na área da tradução. Mulher ao Mar é o seu primeiro livro de poesia, embora tenha anteriormente publicado alguns poemas em revistas. A inovação poética apresentada neste livro fez de MVG uma das revelações de 2010. Como escreve Hélia Correia no posfácio à 2ª edição de Mulher ao Mar, esta poesia “Não pretende dar origem ao irreconhecível mas ao reconhecível que se estranha, á familiaridade estilhaçada” (p. 73).

segunda-feira, outubro 25, 2010

Teresa M. G. Jardim


TELEVISÃO

A televisão é uma fotografia de guerra
que mexe. É um beijo mais largo que a minha cabeça.
É uma caixa de sabão que não se cansa de lavar mais branco.
E faz muita companhia, a mim, aos livros, ao cão.

O arroz está mais caro. A água e a luz também.
Eu estou mais gorda e não passou na televisão:
a minha televisão é sensível, preocupa-se comigo,
é como se fosse uma pessoa; melhor
que as pessoas amigas que me contam as rugas
e os cabelos brancos, resmungam
por tudo e por nada, calçariam luvas
para apanhar do chão um livro
ou mesmo o meu coração se caísse.

Teresa M. G. Jardim, Jogos Radicais, Assírio & Alvim, 2010, p. 19

Teresa M. G. Jardim nasceu no Funchal em 1960. Nos anos 80 publicou poemas no DN Jovem e no Anuário de Poesia da Assírio & Alvim. Professora e artista plástica, estreia-se em livro com Jogos Radicais. A sua poesia aproxima-se de um quotidiano onde a televisão convive com os gatos e os livros. (A fotografia acima foi retirada da página do facebook da autora).

domingo, agosto 15, 2010

Margarida Ferra


Flores nocturnas

Ouviste ontem à noite
a cadência misteriosa,
outra vez o trabalho
daquela costureira sem idade.
Os pés descalços sobre o pedal,
os braços colados ao pano, frios
e brancos, não têm carne
que possa ferir-se por
acaso ou falta de vista.
Mora dentro das paredes,
edifícios com mais de quinze anos,
e escolheu aqueles
a quem embala e atormenta o sono.

Os pontos regulares, na tua cabeça,
fixam sardinheiras frescas sobre
chitas desmaiadas pela luz do dia
que chagará daqui a nada.

***

Morada

Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.

Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, 2010, pp. 11 e 51.

Margarida Ferra estreia-se na poesia com a publicação deste Curso Intensivo de Jardinagem. Neste livro a autora explora o espaço da casa, de que é exemplo o poema "Morada" aqui publicado, mas sobretudo a segunda secção do livro - "Quatro Divisões". A terceira secção do livro, "Playlist", destoa das outras partes por um certo hermetismo, onde os poemas aparecem como menos conseguidos, o que não impede que este conjunto de poemas tenha excelentes momentos.

quarta-feira, julho 28, 2010

MIGUEL CARDOSO


DIÁLOGOS COM SOPHIA II

Sabemos que a noite
desfia as horas do dia
teceu e a manhã
irrompe irreversível e quase
singular e nada
do que acontece é solitário tudo
é eco e ressoa

E o inumerável é outro nome
para o mundo para o aguçado
revolver dos restos que nos restam
e do que neles resta
do entorpecido músculo do possível

A branda cegueira do inominável é outro nome
para as rugas do tecido de poeira e luz e espanto
da janela que por vezes habitamos em jejum
na manhã que sacode a exactidão
dos nomes e desperta coisa a coisa as ramagens
nítidas as mãos mundanas do que é eterno
e inteiro por instantes

Dos arranhados ecos

do estilhaçar das coisas
já no início estilhaçadas

Uma e outra vez na sucessão dos dias
erguem-se os ombros subitamente

nos intervalos dos tambores
do tempo tão dividido
num gesto fora de tempo e fora de uso
danço tropeço gesticulando para a verdade

Como é estranho tudo
saber – enquanto espero
neste canto do café com um livro
um lápis a luz de soslaio
sobre este canto da mesa –

a pouco

e no pouco saber e
de coisa em coisa
cerrar o punho do tempo
todo o tempo
fiado e desfiado
em torno de um instante

Sabêmo-lo.

É preciso reinventar o início

Miguel Cardoso, Que se diga que vi como a faca corta, Mariposa Azual, 2010, pp. 70-71

Que se diga que vi como a faca corta é o primeiro livro de Miguel Cardoso, autor que nasceu em 1976. Já apontado como uma das revelações poéticas do ano, em Miguel Cardoso encontramos uma poesia opaca, que recorre ao poema longo e a uma declarada intertextualidade (de que o poema reproduzido acima é um exemplo).

quinta-feira, março 18, 2010

Rui Lage


V. C. I.

O cântico dos carros sobe do asfalto.
Há quem venha espreitar a recolha do lixo
depois do jantar, enquanto fuma à janela,
respondendo para dentro à voz de criança
que chama no quarto,
ou mais perto,
àquele que diz haver pratos na mesa
por levantar.

Um ecrã em cada lar
emite luz amarela
como vela acesa
em cela de convento.

Rui Lage, Revólver, Quasi Edições, 2006, p. 40.

Rui Lage nasceu no Porto em 1975. É autor de quatro livros de poesia (todos publicados nas Quasi Edições: Antigo e Primeiro (2002), Berçário (2004), Revólver (2006) e Corvo (2009). Traduziu Paul Auster, Samuel Beckett e Pablo Neruda. Foi co-fundador e director da revista Águas Furtadas e é membro da direcção da Fundação Eugénio de Andrade. É actualmente doutorando em Literaturas Românicas na FLUP. Com Jorge Reis-Sá organizou para a Porto Editora a antologia Poemas Portugueses.

quinta-feira, dezembro 31, 2009

Renata Correia Botelho


as amoras caídas e os limos
subindo a encosta, este dia
mudo e a solidão

dos barcos que largam do porto
enquanto dormes

*
o gato espia do telhado
a vida a partir
em cada comboio que passa,

o tempo que se arrasta
na dor metálica dos carris.

é feriado nas mãos,
trago uma canção triste
e o teu rosto no bolso.

*
o vento agita as sombras
na minha mão, lança-me
vultos, um nome em chamas, versos
afiados contra os dedos.

sempre pressenti a distância mínima
entre o poema e o medo
de não saber regressar a casa.

*
já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.

devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome

plantar sílabas frescas
que nos matem a sede

ter um pingo de esperança
na morte depois da vida.

Renata Correia Botelho, poemas de Um Circo no Nevoeiro, Averno, 2009.


Renata Correia Botelho nasceu em 1977 em S. Miguel, Açores, filha do poeta Emanuel Jorge Botelho. Em 2001 publicou Avulsos, por causa (edição de autor, fora do mercado) e em 2009 Um Circo no Nevoeiro (Averno). Tem colaboração nas revistas Magma e Telhados de Vidro. A sua poesia (a avaliar pelo seu último livro), apresenta-se como uma renovação de um lirismo que tem andado arredado das novas poéticas.

sábado, dezembro 12, 2009

Pedro Mexia


ELAS PASSAM

Elas passam, magras estudantes,
julgando-se felizes talvez,
passam e passam, as pernas e os dentes
mostram saúde e altivez

Os jeans ao atravessarem a nave
maior do centro comercial
estreitam a cintura suave
numa falsa aparência virginal.

Vê-las alegra e entristece,
o seu corpo é uma matéria mais pura,
e cada uma, como se soubesse,
mostra-se obstinada e segura.

Passam e passam, são toda uma tarde,
sentinela que em mim sente
esta palha seca que arde,
que às vezes engana, mas não mente.

Poder tê-las sem qualquer dano
e à sua alegre inconsciência,
misturando nos dedos a pele, o pano,
os ossos, a transparência.

A tarde fez-se a hora de regresso,
o coração sussura e quase cai
aos pés das raparigas a quem peço
«de novo, levantando-me, passai»

Pedro Mexia, in Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, Porto, 2009, pp. 2095-2096 ( o poema é retirado do livro "Eliot e Outras Observações", 2003).

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Antes de publicar o seu primeiro livro de poemas (Duplo Império, 1999, edição de autor), foi responsável por uma antologia de poesia que reunia poetas dos anos 80 e 90 - Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, Tomar, 1997. Nesta década publicou os livros de poesia Em Memória (2000), Avalanche (2001), Eliot e Outras Observações (2003), Vida Oculta (2004) e Senhor Fantasma (2007). É crítico literário e cronista do jornal Público, director interino da Cinemateca e participa num programa de debate na TSF (Governo Sombra). Publicou três volumes de crónicas, resultado da sua intensa actividade como Blogger. Em 2002 José Ricardo Nunes inclui PM nos volume 9 Poetas para o Século XXI.

quarta-feira, setembro 09, 2009

Filipa Leal


O HOMEM QUE EXISTIU

I.

Havia uma íntima surpresa na palavra
do início. Por exemplo: a primeira palavra
mar. Quem a teria escrito?

E a primeira
palavra palavra. Quem teria escrito
palavra pela primeira vez?

Eu buscava nas palavras já escritas a surpresa
do início do poema, e isso era triste
como brincar com coisas mortas.

II.

A melancolia é uma questão do tempo,
disse-me o homem. Era um homem que existia,
normal como os que existem.
Daqueles que não
costumam vir nos poemas
porque não
são centros de metáfora ou de revolução.
Porque não
gritam nunca.
Porque não
dizem não.

Hoje sei.
A melancolia é uma questão de falta
de tempo.

Filipa Leal, O Problema de Ser Norte, Deriva, 2008, pp. 18-19.

Filipa leal nasceu em 1979, no Porto. Estudou jornalismo em Londres (Universidade de Westminster)e literatura na na FLUP, onde obteve o grau de mestre com uma dissertação sobre os Aspectos do Cómico na Poesia de Alexandre O' Neill, Adília Lopes e Jorge de Sousa Braga. Foi jornalista de O Primeiro de Janeiro, onde editou o suplemento "das artes, das letras". A sua obra como poeta inícia-se em 2004 com Talvez os Lírios Compreedam (ed. Cadernos do Campo Alegre), seguido de A Cidade Líquida e Outras Texturas (Deriva, 2006; 2ª edição: 2007), O Problema de Ser Norte (Deriva, 2008) e A Inexistência de Eva (Deriva, 2009) - para além do livro de ficção Lua-Polaroid (Corpos editora, 2003). A sua poesia mereceu a atenção de uma das últimas crónicas de Eduardo Prado Coelho, mas também de António Mega Ferreira ou Francisco José Viegas. Uma das caracteristicas mais evidentes na poesia de Filipa Leal é o uso certeiro do enjambement.

domingo, agosto 02, 2009

Miguel-Manso


«ONDE A NOITE CAI SOBRE ANTUÉRPIA»

há uma tal ventoinha no tecto soprando
um possível começo um hotel um homem
bebendo whisky no balcão do bar

o gelo roça no vidro do copo
o calor atrasa as pás da ventoinha
uma mulher lê uma carta junto à janela sentada
num esquecido cadeirão de vime

é meio -

-dia ouve-se lá fora a claridade de um motor
de automóvel europeu fazendo fazendo a curva de uma rua inquieta
um pouco de cinema algum pó

tem o longínquo nome de Kikwit esta cidade
o nome do hotel não sei - Congo Belga anos cinquenta
a pelicula retrata um tempo colonial

não conheço esta história
sei apenas que a mulher tem um vestido azul
que a carta foi tecida na distância de Antuérpia ao pôr do sol
junto ao porto por um homem que a já não quer

a mulher tem um cigarro ao fim dos dedos a cinza cai
a perna cruzada

o joelho branco apontado ao janelão
que dá para a rua

o homem no balcão é o dono do hotel
é português usa fato gravata impecável no pescoço suado
tem um livro dentro do bolso do casaco e espera alguém
olha a mulher sem olhar a mulher
dentro dela cai a noite sobre Antuérpia
relê sempre a primeira frase que diz

esteve um dia lindo no teu sorriso

das histórias que desconheço gosto muito desta
um lóbi de hotel uma cidade chamada Kikwit nos anos cinquenta
um homem uma mulher ele impaciente em whisky ela
triste em tabaco

não se conhecem nem se vão conhecer
o homem tem um livro no bolso a mulher o coração partido

entre o bar e o cadeirão de vime há um verso impossível

depois alguém entra a porta abre fecha
nesse intervalo um ruído de vozes calor poeira e comércio
invadem a placitude do lugar

o homem pousa enfim o copo no tampo do balcão
a mulher nem repara (esteve um dia lindo no sorriso dela
há muito tempo)

o português dirige a maior simpatia à
personagem que acaba de entrar - é Jacques-Yves Cousteau
o conhecido oceanógrafo francês

trocam cortesias
o gesto do português convida-o a sentar-se
apontando uma das cadeiras
o livro sai do bolso e vai estender-se na mesinha onde
acabam por deter-se

Cousteau aceita a caneta do português
abre na folha de rosto escreve o seu nome
debaixo do nome desenha um peixe

a mulher amachuca um pouco mais a carta
no gesto de a guardar na mala
levanta-se sai do hotel

consigo vê-la dobrando o edifício à direita
não sei para onde levou o começo de um choro
não sei onde leva aquela rua
desconheço toda a geografia da cidade africana

bem como o fim desta história
apenas que Cousteau subiu para um dos quartos
que o português sentado sorriu na direcção do tecto
com o livro encostado ao peito
desapertou um pouco a gravata
soube-lhe bem o inexistente sopro da ventoinha

**

JAPÃO Nº4

usou as mãos como contraponto luminoso da face
centenas de anos antes e depois de no Japão
chamarem a isso Reiki

Miguel-Manso, Contra a Manhã Burra, Mariposa Azual, 2ª ed., pp. 19-21 e 50, 2009.

Miguel-Manso nasceu em 1979. Em 2008 publicou dois livros em edição de autor - Contra a Manhã Burra e Quando Escreve Descalça-se -, que não passaram despercebidos à crítica atenta de poesia que o consagrou (justamente) como revelação de 2008 (António Guerreiro no Expresso). Mercê do título, os seus dois livros foram reeditados pela Mariposa Azual e Trama. A poesia de Miguel-Manso convoca uma pluralidade de "formas", do poema narrativo ao poema culturalista, do poema longo ao poema de um só verso, que acabam por se tornar numa lufada de ar fresco (podendo evoluir para uma corrente de ar) na poesia portuguesa desta década.

segunda-feira, maio 25, 2009

José Mário Silva


méxico 86

Erecções inoportunas,
bigodinho ridículo,
poluções nocturnas,
tropeços, tristeza,
tantos embaraços.
O corpo crescia, brusco
desatinado dos ossos, difícil
de encaixar na harmonia
do mundo. Enquanto
isso, um relâmpago
azul atravessava,
em ziguezague,
o longínquo relvado
do estádio AZteca.
*
formiga

«Pai, anda cá», diz a minha filha.
Pela parede branca sobe uma formiga,
minúscula, muito lenta, obstinada.
A minha filha encolhe o corpo
pequenino para olhar. Não sei se é
a primeira vez que vê uma formiga;
mas é, parece-me, a primeira vez
que se apercebe da enorme diferença
de escala que a separa do insecto.
A minha filha acompanha a subida
heróica da formiga pela parede
branca, vira-se para mim, sorri.
É nesse espaço subitamente tenso,
criado entre a alegria infantil da
descoberta e o esforço irracional
da formiga, que nasce o poema,
mesmo se eu já desisti dele para
limpar o ranho que a minha filha,
absorta, deixou chegar até à boca.

José Mário Silva, Luz Indecisa, Oceanos, 2009. Poemas retirados das páginas 23 e 41, respectivamente.
José Mário Silva nasce em 1972, em Paris. Licenciado em Biologia é jornalista, coordenador da secção Livros do Expresso e colunista da revista Ler. Mantém ainda o blogue sobre livros Bibliotecário de Babel. Publicou os livros de poesia Nuvens & Labirintos (Gótica, 2001) e Luz Indecisa (Oceanos, 2009), além do livro de narrativas curtas Efeito Borboleta e outras histórias (Oficina do Livro, 2008).

quinta-feira, dezembro 25, 2008

Daniel Jonas


O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.

O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali destendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo

quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.

Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica ali a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.

Daniel Jonas nasceu no Porto em 1973. Publicou quatro livros de poesia: O Corpo está com o Rei (AEFLUP, 1997), Moça Formosa, Lençois de Veludo (Cadernos do Campo Alegre, 2002), Os Fantasmas Inquilinos (Cotovia, 2005, do qual se retirou o poema aqui publicado) e Sonótono (Cotovia, 2007, com o qual recebeu o Prémio Pen Clube de Poesia em ex-aequeo com Helder Moura Pereira). Como dramaturgo é autor da peça Nenhures (Cotovia, 2008). Na função de tradutor verteu para português, entre outros, O Paraíso Perdido de Milton e recentemente Ao Arrepio de Joris-Karl Huysmans, ambas as traduções para a Livros Cotovia.

sábado, dezembro 20, 2008

António Carlos Cortez


PINTURA

Monet tens a impressão da realidade
e ela não pode ser de outro modo
Misturas na tela as cores primárias
como hoje a pintora no seu atelier
traçando a negro a figura humana

A poesia é talvez o momento
em que a pintura é exercida
de outra forma Um défice de realidade
nos olhos Nesse tempo o poema
surge para um dizer novo

António Carlos Cortez nasceu em Lisboa em 1976. Escreve sobre poesia no Jornal de Letras e tem artigos publicados nas revistas Relâmpago e O Escritor. Como poeta estreou-se em 1999 com Ritos de Passagem a que se seguiram Um Barco no Rio (2002), A Sombra no Limite (2004) e À Flor da Pele (2007) do qual se retirou o poema que aqui apresentamos. É ainda autor de um livro de crítica de poesia: Nos Passos da Poesia (2005).

quinta-feira, abril 03, 2008

Ana Paula Inácio


Este poema tem como hipotexto
o Florbela Espanca espanca de Adília Lopes
e o Livro de Mágoas da Florbela
não me interessa quanto valem
na cotação da bolsa literária -
ainda não gozei nenhuma e
bolsa que me interesse
só mesmo a do canguru
mas tu não és minha mãe
nem meu pai, ou tia, ou
irmão, pseudo-Electra -
nem do seu mainstream.
Este poema é dedicado
à minha amiga Mónica
que faz ioga aos sábados de manhã,
cabeleireiro e depilação 2 vezes por mês
(cf. poema anterior)
luta contra uma auto-estima precária
mas sabe o que quer
quando lourifica o cabelo
como 43, 33 % das mulheres
com idade > 40 anos,
licenciadas,
em Portugal,
no ano de 2004:

«falar, falar, falar
a este àquele
a toda a gente
e não falar a ninguém»

«Bom dia, meu amor» ou
«Bonjour, tristesse»
como dizia Françoise Sagan
ao seu amante
trocado
por falsos versos.


Ana Paula Inácio nasceu no Porto em 1966. Publicou dois livros de poesia, As Vinhas do Meu Pai (Quasi, 2000) e Vago Pressentimento Azul por Cima (Ilhas, 2000), e um de contos, Os Invisíveis (Quasi, 2002). O poema aqui publicado faz parte do número 9 da revista Telhados de Vidro (Novembro de 2007).

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Bénédicte Houart


engoli uma gaivota anteontem
tinha um travo a mar muito suportado essa gaivota que
já lá vai
despenhando-se garganta abaixo
um acidente tão desejado
num pequeno corpo tão desastrado
embora por vezes uma gaivota desatine
ou quase
a alegria do afogado quando regressa à tona de água

Bénédicte Houart, Reconhecimento, Angelus Novus e Cotovia, col. Inimigo Rumor, 2005, p. 13.

Bénédicte Houart nasce na Bélgica em 1968. Foi docente de Estética na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Reconhecimento é o seu primeiro, e até agora único, livro de poesia.

terça-feira, novembro 27, 2007

Manuel de Freitas


O SOM DAS VÍRGULAS


para o Jorge Gomes Miranda

Deixa estar, Jorge, é demasiado

tarde: já não nos livramos da

imerecida glória de sermos

grupo, constelação, movimento

-"nós" que, a bem dizer,

nunca acreditamos em nada disso.


Sempre de vozes tontas e ruído

alarve precisou o mundo. Mas agora

imitam os políticos, delegam poder

naquilo que nenhum poder aufere -

a poesia - esses que em jornais

e outras cátedras matariam pai e mãe

para chegar a palcos grosseiros

em que nem actores conseguem ser.


E até dizem que prestamos vassalagem

a quem simplesmente nos ensinou

por onde não devíamos seguir

-à distância dos livros, na pulsão

do irrespirável e, anos depois, do afecto.

Há várias maneiras de preferir um descampado.


Porque a poesia, Jorge, só interessa

- se é que interessa - quando nos visita

"com a urgencia de quem verte

cubos de gelo num copo de whisky".

Tão parecida com "o vírus do amor"

que faz do corpo o único lugar.


Mas para quê falar-te disto?

Disseste-o melhor, assim:

"nada é a poesia

prelúdio de outras ruínas

nunca afirmadas".


Não te inquietes, pois, com arrumadores

de versos. A morte corrigirá todas

as vírgulas, mesmo as que lá não estavam.
Manuel de Freitas, Telhados de Vidro, nº3, ed. Averno.