quinta-feira, outubro 31, 2024

Eduardo Prado Coelho: o último intelectual

 


Eduardo Prado Coelho (EPC) foi, principalmente nos anos 1980 e 1990 e ainda no início deste século, o intelectual por excelência. Sendo também professor universitário, não era, no entanto, um académico fechado na produção de papers para os seus pares. O seu mundo era muito mais cosmopolita que o mundo por vezes fechado e compartimentado da universidade. Era um mundo de vastos interesses: da literatura (contemplando a poesia, o romance, o ensaio), da política (sobre a qual fez análise, mas também participou através da escrita, da militância e de cargos que ocupou), do cinema ou das ciências da comunicação – área onde leccionou, mas também da polémica que por vezes alimentava, outras extinguia. Era, essencialmente, um ensaísta que encontrou nas páginas do jornal Público, durante 17 anos, um lugar de prazer para si e para os seus leitores. Porque EPC foi o que se pode considerar como o último intelectual (português): pelas temáticas que abordava, pela forma como se tornou numa autoridade que tanto falava com espantosa à-vontade sobre a poesia de determinado autor, como deslizava para um comentário político, ou contava uma história passada com a sua amiga Marguerite Duras. Em quase todas as suas intervenções, escritas ou orais (várias vezes era requisitado para falar de algo na televisão), acrescentava algo de novo. A sua crónica semanal – e também a diária –, no suplemento cultural do jornal Público acabou por se tornar única numa altura em que os jornais portugueses já não tinham suplementos literários que convocassem essa figura do intelectual para as suas páginas, como aconteceu noutras alturas com jornais como O Comércio do Porto ou O Primeiro de Janeiro (meados do século XX, para referir apenas dois jornais da cidade do Porto).

Filho do também professor universitário e ensaísta Jacinto Prado Coelho, Eduardo nasce em Lisboa em 1944. Em 1967 já o podemos encontrar a escrever recensões no Diário de Lisboa, e nesse ano organiza uma antologia de textos teóricos sobre o estruturalismo. O primeiro livro escrito pelo seu punho, O Reino Flutuante, é publicado em 1972. Durante o PREC filia-se no Partido Comunista, e publica o livro Hipóteses de Abril (1975); colabora com a RTP onde é autor de vários programas. Em 1982 publica a sua tese de doutoramento, Os Universos da Crítica, uma aplicação do conceito de paradigma de Thomas Kuhan aos estudos literários, e um ano mais tarde saí um livro sobre o cinema português: Vinte Anos de Cinema Português:1962-1982. Embora afirme, numa entrevista à RTP, em 2004, que gostaria de ter tempo para escrever romances, a sua incursão mais funda como criador literário será o diário que escreveu aquando da sua residência em Paris como adido cultural da embaixada portuguesa, Tudo o Que Não Escrevi (1992, 2 volumes).

Apesar de em 2004 ter publicado cinco livros – entre os quais uma antologia das crónicas que publicou quase diariamente no Público (Crónicas no Fio do Horizonte) – a obra de EPC tem vindo a ser publicada pela Imprensa Nacional desde 2010. Sob a organização de Margarida Lages, foram até 2023 publicados cinco volumes da Biblioteca Eduardo Prado Coelho. Desses cinco volumes, dois são reedições das obras: A Mecânica dos Fluídos (1984/2012) e Os Universos da Crítica (1982/2015); um outro – A Poesia Ensina a Cair (2010) – estava já preparado por EPC, antes deste falecer em 2007. Os dois volumes que podemos considerar organizados por Margarida Lages são Crónicas – Política e Cultura (2019) e Jogos Infinitos – Ensaio e Crítica (2023). É sobre este último volume que aqui escrevo algumas notas de leitura.

Importa, sobretudo para o leitor que não leu E. Prado Coelho, citar o autor na sua introdução a A Poesia Ensina a Cair: “Embora traga o meu nome associado ao estruturalismo, não tive nunca uma abordagem secamente estrutural. Sempre me deixei afectar por uma linguagem que não chegava a ser poema – por incapacidade minha –, mas que se instituía como crítica em que a poesia estava sempre presente.” Ora, esta citação resume bem o estilo de Prado Coelho: uma linguagem que vai do poético à teoria. É essa linguagem poética que permite seduzir o leitor, limpar a aridez da teoria. Pois por estes Jogos Infinitos – título e texto desde logo poético – passam nomes da filosofia, das ciências sociais e da literatura: José Miguel Silva, Filomena Silvado, Maria Filomena Molder, Blanchot, Deleuze, Derrida, Foucault, Silvina Rodrigues Lopes, Bernard Stiegler, Guy Debord, Kant, Agamben, Isabel Allegro Magalhães, Nietzsche, Vergílio Ferreira, João Barrento ou Sartre, entre outros. No final do livro existe um índice onomástico de cinco páginas. Ou temas como a crítica entre a ética e a estética, o jogo, a modernidade e a pós-modernidade, a fotografia, a “sociedade do espectáculo”, a técnica, Portugal, a tradução, a dor ou um ensaio, “situações de infinito” – cujo título será aproveitado para um outro livro –, que parte de uma frase de Vergílio Ferreira, “Da minha língua vê-se o mar”, para construir uma série de variações.

A organização de uma obra como a de Eduardo Prado Coelho pode ser uma tarefa quase ciclópica (o mesmo acontecendo com a de Eduardo Lourenço, que tem vindo a ser publicada pela Fundação Gulbenkian). No entanto, não se percebe que critérios presidem a essa organização e publicação. EPC escreveu centenas de crónicas no Público; escreveu mais de duas dezenas de livros, terá artigos publicados noutros jornais, em prefácios, em revistas académicas, etc. O critério da Biblioteca Eduardo Prado Coelho parece ser antológico – quer quanto aos textos quer quanto aos livros a reeditar. Mas será mesmo? Haverá um critério?

 A organização de Margarida Lages peca por alguns erros um pouco irritantes: na introdução escreve a organizadora que “(…) os textos se encontram na sua maioria publicados no jornal Público. Quando tal não acontece, a referência encontra-se no final de cada crónica ou artigo” (p. 8). Ora, não existe nenhuma indicação no final de textos que não foram publicados no Público. Também os textos não se encontram datados; as “notas de rodapé”, por vezes são escassas, outras vezes estão a mais. Ainda uma referência para a bibliografia que Margarida Lages decidiu incluir no final do volume e que não faz qualquer sentido, a não ser o querer uma legitimidade académica para uma obra que nada deve à academia, antes pelo contrário.  


segunda-feira, setembro 30, 2024

Os fugitivos


 

1, Sábado, 7 de setembro, de manhã, Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus. Cinco reclusos, 4 dos quais tidos como os mais perigosos desta prisão de alta segurança, fogem com a ajuda de duas escadas e três elementos que se encontravam no exterior. Fuga mediática – um dos fugitivos, um argentino, foi condenado no seu país por rapto e possível homicídio; fuga possibilitada pela inépcia dos guardas prisionais.

2, A partir deste facto temos várias abordagens que vão da político-sindical sobre o estatuto dos guardas prisionais às teorias de Foucault e Deleuze sobre as “sociedades disciplinares” (Foucault) e as “sociedades de controle” (Deleuze), ou ao questionamento das prisões como forma de a sociedade punir aqueles que fogem às suas regras (mais uma vez Foucault, principalmente em Vigiar e Punir, mas também Angela Davis), ou, ainda, um campo ficcional onde aparecem filmes e séries como Bonnie e Clyde (1967, realização de Arthur Penn) ou a série Prison Break (2005), ou na literatura, Jean Genet – o escritor criminoso, “a criança criminosa” –, ou um conto de Elisabeth Bishop (Prisão), ou um poema de Oscar Wilde…

3, O ex-ministro da cultura e de novo comentador político, Pedro Adão e Silva, escrevia a 10 de Setembro no Público, que “temos presos a mais e não guardas a menos”. E adiantava números: “entre os 47 países do Conselho da Europa, temos o valor mais elevado para a duração média de penas de prisão, com uns notáveis 30 meses (a média é de 12)”. Na verdade, se formos ver o que se tem passado nos últimos anos, o que encontramos é um excesso da aplicação da prisão preventiva. Como se fosse uma vingança por parte dos juízes por Portugal ter um dos códigos penais mais leves, pelo menos no que respeita ao limite de penas – 25 anos. Ora, para além destes números estatísticos, importa saber em que condições os presos cumprem a privação da liberdade nas prisões portuguesas. Porque nem sequer todos os condenados são culpados. Na edição em que o jornal Público noticiava a fuga dos cinco reclusos de Vale de Judeus, apresentava também uma grande reportagem com Diana Ríos Rengifo, uma indígena peruana que tem lutado pela preservação da Amazónia. Mas a sua luta foi interrompida em Portugal, quando foi encontrada na sua bagagem cocaína. Com uma criança de pouco meses, Diana passeia-se por uma ala da prisão de Santa Cruz do Bispo, onde estão outras mulheres e outras crianças. Não é o facto de ter sido mãe ou o de ter sido uma activista pela preservação da Amazónia que a tornam inocente do tráfico de droga, mas pelo documentário de 20 minutos realizado pelo Público, tudo leva a crer que Diana Ríos Rengifo é uma vítima, que não sabia nem tinha intenção de fazer tráfico de droga. A despenalização do consumo de estupefacientes, veio, de forma completamente justa, retirar muita gente das cadeias.

4, Residirá nestes fugitivos uma semente de mal, sobretudo no argentino? Talvez, mas essa questão levar-nos-ia para a complexa questão do mal. Mas o que se poderá dizer sobre a população que ocupa as 49 cadeias portuguesas? Vidas precárias? Vidas interrompidas? Vidas encerradas num labirinto – por vezes de desespero? O filósofo Giorgio Agamben recuperou a figura do direito romano arcaico do Homo Saccer, aquele que pode ser morto sem que o assassino seja castigado. É isso que também se passa nas prisões, quer por parte da falta de cuidado de guardas e outros funcionários para com os presos, quer por parte dos presos entre si. As prisões são o local por excelência do crime. Repare-se: se juntarmos um alargado grupo de homens (ou mulheres, embora a população prisional portuguesa seja maioritariamente feminina), onde está desde o incriminado, embora na realidade inocente; o preso preventivo; o preso homicida com personalidade violenta; o preso por corrupção ou de “colarinho branco”, etc, temos um caldo de violência. Essa violência também existe no outro lado, nos guardas prisionais e demais pessoal que faz parte da prisão como instituição. Na verdade, o mundo carcerário é um mundo do qual a sociedade, e sobretudo o poder político (tanto à direita como à esquerda), nada quer saber. Não importa que um preso mate outro, que por falta de cuidados médicos um preso venha a morrer, que um preso se suicide numa prisão onde talvez não exista um psicólogo. Nada disto importa, embora a filosofia em Portugal seja, ao contrário da dos Estados Unidos, de reinserção social da pessoa presa depois desta cumprir a pena – existe mesmo um Instituto de Reinserção Social.

5, Mas, na manhã daquele 7 de Setembro de 2024, os alarmes tocaram – na prisão de Vale de Judeus e pouco depois nas televisões. A fuga de presos de um Estabelecimento Prisional é algo que desencadeia todo um espectáculo – raro, por isso mesmo mais precioso. O director da Polícia Judiciária, tão solicito como um James Bond à portuguesa, veio logo dar uma conferência de Imprensa onde apresentou os rostos dos fugitivos, desfigurados por uma desumanidade que os pretendia colocar no lugar do monstro, e realçou que os fugitivos eram bastante perigosos. Repare-se e repita-se: perigosos, perigosos, perigosos… porque nunca é de mais realçar que andam cinco perigosos fugitivos a monte. Assim se faz a “instalação do medo” (título certeiro de um livro de Rui Zink). Fechem as janelas, tranquem bem as portas, mantenham-se em casa.

6, Mas existe uma questão real sobre as prisões. Michel Foucault, nos anos 1970 com o seu livro Vigiar e Punir – Nascimento das Prisões (ed. portuguesa Edições 70), também por essa altura com um activismo político sobre as prisões tornou a prisão um lugar a ser pensado pelas ciências humanas (pelo menos). Também a activista e filósofa Angela Davis, a partir de uma perspectiva da luta pelo direito dos negros nos Estados Unidos (onde a maioria da população prisional é negra), mas também de uma luta contra o capitalismo, tem questionado as prisões. O seu livro As Prisões Estão Obsoletas? (editado originalmente em 2003, com edição portuguesa da editora Antígona em 2022) coloca questões radicais. A fuga de Vale de Judeus teve pelo menos o mérito de colocar os holofotes sobre uma prisão e o universo prisional em Portugal. Daí a revelar a realidade desse universo vão alguns passos. Mas o questionar, para que servem as prisões? ou, como o título do livro de Angela Davis faz de modo talvez mais certeiro, As Prisões Estão Obsoletas?, é já algo de outra ordem, mais difícil de alcançar – porque implica pensar, sair de certezas pré-determinadas de uma cultura. Isso não obsta a que exista já um movimento anti-carcerário.

Ao cimo imagem divulgada pela GNR, com a cara dos 5 fugitivos. 

sábado, agosto 31, 2024

Rui Manuel Amaral

 


Um passarinho malicioso

Lazaros Leumorfis tinha o hábito de segurar a cabeça com as mãos porque acreditava que a qualquer momento esta podia desprender-se do pescoço e cair ao chão. Por isso, nunca se distraia da sua importante tarefa, segurando a cabeça com o maior zelo de que era capaz.

Mas fosse porque algum passarinho malicioso lhe soprava qualquer coisa ao ouvido, fosse por outro motivo que não procurei determinar, o certo é que houve um momento em que Lazaros se distraiu e largou a cabeça. Esta caiu instantaneamente ao chão, saltou duas ou três vezes com a elasticidade de uma bola de borracha, e rolou rua abaixo e em contramão, rumo à Place Dauphine, que brilhava lá ao longe.

Em que estado de espírito se encontrou Lazaros depois deste infeliz acontecimento, é algo que não nos atrevemos a imaginar. Diremos apenas que não se poupou a esforços para recuperar a cabeça, procurando-a por toda a parte, durante dias a fio. E de bom grado teria continuado a procurá-la se entretanto vários assuntos de maior importância o não tivessem chamado a outro lado.

In Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010, pp.  17-18


terça-feira, julho 30, 2024

A POLÍTICA NA AMÉRICA



1, Há certas pessoas em Portugal e no ocidente que têm uma grande admiração pela democracia americana. São políticos, jornalistas, professores de relações internacionais, etc. Enfim, a América, os Estados Unidos da América, são o Império (como o filósofo Toni Negri assinalou) ou “home of the brave”, numa feliz expressão de Laurie Anderson. Foi vendo filmes e séries americanas, cantando música feita nos EUA, vestindo jeans, ou mesmo lendo autores americanos que várias gerações cresceram, em Portugal e um pouco por todo o mundo, salvo as devidas excepções de países comunistas como a China. No fundo, vivemos, no aspecto económico e político, completamente dependentes dos Estados Unidos – e a União Europeia não conseguiu mudar esta situação, antes pelo contrário, como se pode ver na forma como EUA e UE têm alimentado a guerra na Ucrânia. Imbuídos na cultura americana esquecemos a sua principal característica: a violência. 

 2, Ora, o mês de Julho agora findo, foi particularmente turbulento e violento em relação à política americana. A 13 de julho, num comício, o ex-presidente Donald Trump, que procura pelo partido Republicano voltar a habitar a casa branca, foi alvo de uma tentativa de assassinato. Uma bala, disparada por um atirador de 20 anos, que não se sabe ainda como, estava no telhado de um edifício a poucos metros onde Trump discursava, passou de raspão pela orelha de Trump. Tornaram-se icónicas as imagens e fotografias de um Donald Trump, ladeado por elementos dos serviços secretos, com a cara ensanguentada, depois de procurar os sapatos, erguer o punho e gritar, “lutem, lutem, lutem”. Enfim, não passou de um arranhão, mas poderia ter sido algo grave. Ironia do chamado destino, o atirador (que foi morto pelos tais serviços secretos e que ainda hoje não se sabe como conseguiu subir a um telhado e não ser visto pelos serviços secretos) utilizava uma arma cuja comercialização sem restrições foi aprovada por Trump. 

3, Nada disto é novo na política americana: presidentes assassinados, candidatos a presidentes alvo de tentativas de assassinato, etc, etc. Parecia é que os Norte-Americanos já não estavam habituados – o último presidente alvo de uma tentativa de assassinato foi Ronald Reagan no início da década de 1980. Mas os USA, tinham até há pouco tempo um outro problema político: Joe Biden. Biden era o presidente candidato, pelo partido Democrata, a presidente nas próximas eleições de Novembro. Mas, tardiamente descobriu-se que os 81 anos de Biden lhe pesavam demasiado, o seu estado cognitivo e motor já não é o melhor, como ficou demonstrado num debate com Trump. De vários lados do partido Democrata surgiram pedidos para que Biden renunciasse; os financiadores da campanha ameaçaram não financiar, etc, etc, muito se discutiu o destino de candidatura democrata para enfrentar a republicana de Trump. Até que Biden, Isolado com covid, decide tomar a decisão que todo o mundo (urbi et orbi) esperava, renuncia a favor da sua vice-presidente Kamala Harris. E, de repente, a figura de Biden é substituída pela de Kamala Harris; Kamala em todos os ecrãs televisivos a ser saudada pelo casal Clinton, por Nancy Pelosi, e até pelos mais renitente casal Obama. A convenção dos democratas é só em meados de Agosto, mas já ninguém terá coragem de fazer frente ao balanço que a candidatura de Kamala leva. Os comentadores, que por todas as estações de tv do mundo têm andado atarefadíssimos a comentar as turbulências da política norte-americana, tentam agora adivinhar quem será o vice que kamala Harris escolherá para o seu “ticket”, e o quão decisivo isso será para “roubar” eleitorado a Trump e ganhar as eleições. 

4, Porque estas eleições têm bastante de decisivo em relação ao que será o mundo nos próximos quatro anos. Uma vitória de Kamala Harris implica a continuação da política de Biden, com a ideia de que a Ucrânia tem que ganhar a guerra à Rússia. Uma vitoria de Trump acabará com a guerra na Ucrânia, cuja escalada põe o mundo em perigo, quase à beira de uma III Guerra Mundial – a tal que não pode existir. Mas a vitória de Trump tem implicações claramente negativas, a começar pela negação das alterações climáticas. Enfim, estes candidatos(as), mesmo agora com Kamala Harris, parecem ser um erro de casting. Mas isso decorre da especificidade da democracia americana: são os eleitores republicanos e democratas que elegem em primárias o candidato de cada partido (algo que o partido Livre tem tentado fazer em Portugal, nem sempre com sucesso). 

5, O aristocrata Alexis de Tocqueville viajou pela América no início do século XIX – há cerca de 200 anos – e escreveu o clássico Da democracia na América. A democracia americana é já bastante antiga, tem coisas que são inovadoras – ainda – em relação a outras democracias, mas está anquilosada no seu passado. Se há algo que sempre me espantou, foi o seu bipartidarismo: ou se é democrata ou republicano. Para além duma filosofia pouco solidária que caracteriza o american way of live, os EUA interferiram na política de muitos países ao longo dos últimos cem anos – lembremos a invasão do Iraque promovida por George W. Bush, no início deste século. Ou seja, os EUA são o Império (político, económico, mas também cultural) ao qual a União Europeia – incluindo Portugal – presta vassalagem.

domingo, junho 30, 2024

Jaime Rocha

 


ARAUCÁRIA

Para Tarik Boubiya

As raízes descem
para a terra profunda,
mas o sol aguarda que os ramos
subam e caiam no mar,
como um barco secreto
que surge na praia.

Os poetas lêem sob as árvores
enquanto os gatos e os pássaros
continuam a sua estrada sem destino.

A chuva cai de novo
molhando a muralha adormecida.

A praia alonga-se em grandes 
passeios de mármore, desfeitos
pelos objectos e pelo vento.
E tudo à volta se concentra
num único lugar, uma zona concreta
onde os peixes e os cabazes descansam.

Há uma fervura nas ruas,
um aroma sagrado,
um grande parque de poesia.

(El Jidida, Marrocos, 2013)

Jaime Rocha, in Voo Rasante, Mariposa Azual, Lisboa, 2015, p. 70
Jaime Rocha, pseudónimo de Rui Ferreira e Sousa, nasceu na Nazaré em 1949. Jornalista de profissão, tem dividido a sua carreira literária entre ficção, poesia e dramaturgia. Tonho e as Almas (1984, ficção, Relógio d´ Água) e A Perfeição das Coisas (1988, poesia, Caminho) são os seus livros inaugurais. 

sexta-feira, maio 31, 2024

João Camilo

 


INDECISÃO

O excesso dos sentimentos - a perda,
o desejo - é nocivo para o poeta.
Por isso ele se distância de si mesmo,
depois observa-se da outra margem do rio;
tenta então dominar o fluir das palavras.

As paixões são necessárias ao surgir
da linguagem e à poesia; mas se queimam
a mente e o coração, perturbam o espírito do
poeta e ele cala-se. Sem medida nem
peso, sem limites marcados, perdemo-nos
na extensão do vazio. Para aquele
que se encontrou consigo mesmo o
amor que já não é, deixa de ser e não 
se transforma em nostalgia inútil; e o 
amor que ainda não cresceu imobiliza-se
na sua indecisão. 

Sozinho em casa, no refúgio do espírito,
o poeta aprende a respirar. Aguarda
a chegada da noite profunda e
recorda-se dos anos em que teve família
e foi feliz, há tanto, tanto tempo já.

João Camilo, Elogio do Silêncio, Casa do Sul Editora, 2005, pp. 75-76.
João Camilo nasceu em 1943. É desde 1975 autor de livros na área da ficção, ensaio e predominantemente poesia, onde o sujeito lírico se ocupa do quotidiano. Tem leccionado em várias universidades estrangeiras. Recentemente publicou o ensaio Reflexões Sobre a Poesia (edição Do lado esquerdo).

segunda-feira, abril 29, 2024

José Carlos Barros



O CRÍTICO LITERÁRIO VAI DE FÉRIAS À PROVINCIA

Da varanda do meu quarto
viam-se
em vez das aliterações 
o vale

e os pinheiros-bravos
a subir
o monte. Acordava-se assim
a olhar as coisas

concretas. Como se
afinal
além da literatura houvesse

mundo: casas,
pessoas, pássaros
que voam mesmo

José Carlos Barros, Taludes Instáveis - Poemas Escolhidos -, D, Quixote, 2024, p. 231
José Carlos Barros (Boticas, 1963), iniciou a sua actividade literária no suplemento DN Jovem, nos anos 1980, no Diário de Notícias (dessa altura data o seu primeiro livro de poesia, Pequenas Depressões (1984), em colaboração com Otília Monteiro Fernandes; em 2021 reuniu os poemas publicados no nesse suplemento sob o título Estação - os poemas do DN Jovem). Publicou 13 livros de poesia. Em 2009, estreou-se na ficção com o romance O Prazer e o Tédio, tendo em 2021 ganho o prémio Leya com a narrativa As Pessoas Invisíveis. Foi deputado à Assembleia da República pelo PSD na XIII legislatura, entre 2015 e 2019. 

 

domingo, março 31, 2024

Jorge Roque

 


3

Anónimo entre tantos, tão diferentes, tão iguais, apareceste, suponho, sem o quereres na película. Rosto jovem, precocemente envelhecido, lábios roxos de sangue sufocado nas artérias, defendias a revolução com o ardor de quem por tão fundo acreditar, mais fundo havia já perdido. Camisa aberta, gestos largos, mãos nervosas sempre a acender outro cigarro, olhar límpido a idear outro futuro, eras a imagem da derrota e não sabias. Todavia, repetias em cada frase da tua retórica revolucionária. Todavia, reafirmavas, contra cada sombra que avançava, o sol que em ti era verdade, a luz que haveria que vencer por mais que a marcha dos homens a esmagasse. Todavia, camarada, que bem podias ser eu a gritar a céus inúteis, tudo estava condenado desde o começo, nem tu nem eu o podíamos evitar. Todavia, camarada, esta a natureza humana que nem deus nem homens podem alterar. Mas não te esqueças, por pouco que durasse tivemos a nossa Torre Bela, erguemo-la com os braços da nossa crença plena, vimo-la ruir sob o peso dos gestos tão humanos. Não me olhes com esse desalento, Torre Bela que foi no pensamento, somente nele poderá sobreviver. Tinha de ruir, põem isso na cabeça, mas foi nosso cada gesto obstinado de a erguer. E nada foi em vão, camarada. Foi precisa a tua força. Foi precisa a força de cada um de nós. Até dos que, como eu, só viriam a vivê-lo uma década mais tarde. Até dos que não nasceram e nessa luta e nessa força se hão-de reconhecer. E mesmo derrocada, a Torre Bela apenas ruiu na circunstância que a sustentava. E das ruínas há-de erguer-se uma vez mais, muitas vezes mais ainda, para outras tantas derrocar indiferente ao nosso empenho. Assim é, camarada, esta a vida e a sua beleza difícil de entender. Não cismes, o que podia ter sido é uma porta fechada, mas o caminho segue para lá dos nossos passos. Aceita-te no rosto de quanto lutaste e falhaste. Aceita que morres e não é o fim. Então sorri a tua vida derrotada e cumprida.

Jorge Roque, “Evocação e epitáfio”, in País Rato, ed. Maldoror, 2023, pp. 34-35


quinta-feira, fevereiro 29, 2024

50 ANOS DEPOIS, A CONTRA-REVOLUÇÃO

 



1, Com excepção de algumas democracias representativas, como foi a mexicana, é natural, e tem sido assim na democracia representativa portuguesa, uma certa “alternância democrática”. Em qualquer cenário, os mais de oito anos de governo socialista, liderados por António Costa, e interrompidos por uma frágil suspeita do Ministério Público, levarão, quase com toda a certeza – e as sondagens confirmam-no – a que das eleições legislativas de 10 de Março saia um governo de direita liderado pela AD. Simplesmente, no ano em que um pouco por todo o mundo vamos ter eleições, não vivemos uma situação normal da chamada “alternância democrática”. Vivemos, em Portugal e muitos outros países, um crescendo de partidos da extrema-direita, também chamados populistas, que põe em causa, já nalguns países, a própria democracia. Se a Itália já é governada por uma coligação de direita/extrama-direita, liderada por Georgia Meloni e o seu partido Frateli di Italia, um dos herdeiros programáticos do fascismo de Mussolini; se a Argentina, onde o peronismo tem governado,  elegeu um louco que está a transformar um país com cerca de 40% de pobres, que beneficiavam do apoio estatal, num regime totalmente liberal, entregue ao sector privado; se em Espanha o Vox espreita à sombra de Franco; se em França Macron vira à direita para evitar que Marine Le Pen ganhe as próximas presidenciais… se… se… enfim, um pouco por todo o mundo o populismo espreita. Portugal não é excepção com o Chega.

2, O Chega cresceu, mas é ainda hoje, um partido quase unipessoal de André Ventura. Ventura, um escritor frustado e professor universitário de direito, foi militante do PSD, comentador desportivo numa televisão, o que lhe deu projecção mediática. Em 2017 foi candidato à Câmara de Loures, pelo PSD, perdendo para Bernardino Soares do PCP. Por essa altura, faz afirmações contra a comunidade cigana, numa entrevista ao agora comentador político Sebastião Bugalho, para o jornal i, onde também defende a prisão perpétua e a castração química para pedófilos. Até o aparecimento de Ventura, a extrema-direita portuguesa era representada pelo PNR de José Pinto Coelho, um pequeno partido sem expressão eleitoral, claramente fascista, que nas últimas eleições se rebaptizou de Ergue-te. Ventura, como outros populistas, fala “dos portugueses de bem”, expressão que abre uma divisão na sociedade. E entre os portugueses que não são de bem, estão os chamados “subsídio-dependentes”. O Chega pretende acabar com o RSI, implementado durante um dos governos Guterres. Mas é, paradoxalmente, a algum eleitorado de esquerda, incluindo do PCP, que o Chega terá ido buscar alguns dos seus eleitores nas últimas eleições.   

3, 50 anos depois do 25 de Abril, não só as sondagens dão uma maioria parlamentar de direita, com um forte contributo da subida do Chega, como entre os pequenos partidos aparecem formações de direita ou extrema-direita, e apenas um partido – histórico – de extrema-esquerda, o PCTP-MRPP. A confirmarem-se os resultados que têm vindo a ser apresentados pelas empresas de sondagens, teremos um parlamento onde a direita será maioritária, e só uma vitória do PS, certamente já não com maioria absoluta, poderá, pelo menos durante algum tempo, impedir a direita, ou direita com extrema-direita, de governar.

4, Na passada segunda-feira, 26, a “aparição” de Passos Coelho, veio introduzir outros elementos nesta campanha, a ponto de se falar em um antes e um depois do discurso de Passos em Faro. Para a direita Passos Coelho é o messias que salvou Portugal de uma bancarrota criada por José Sócrates. Para a esquerda, mais realista, Passos Coelho é o primeiro-ministro que quis ir além das imposições da troika, e que levou a que a esquerda se unisse, em 2015, para evitar um segundo governo PSD-CDS. A política que Passos Coelho implementou durante o seu governo, com Paulo Portas como líder do CDS, foi uma política contra as pessoas, por vezes de humilhação (por exemplo, para receber o subsídio de desemprego, os desempregados que tinham direito a ele, tinham que se apresentar na sua Junta de Freguesia de quinze em quinze dias – como se fossem criminosos a quem um juiz tinha decretado o “termo de identidade e residência”). A política de Passos Coelho baseou-se num colaboracionismo com as organizações monetárias, como o FMI,  que impôs cortes no rendimento das pessoas, empobrecendo-as, ao mesmo tempo que privatizava empresas estratégicas para a vida das pessoas e do país. O corte do 13º mês e subsídio de férias (que apenas durou um ano porque o Tribunal Constitucional considerou essa medida inconstitucional), contam-se entre as medidas mais gravosas, de muitas, que levaram a um extraordinário aumento do desemprego e à emigração de muitas pessoas, sobretudo jovens.

5, Estamos a menos de dois meses de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, a Revolução dos Cravos como lhe chamam noutros países. O mundo mudou muito nestes 50 anos – e Portugal também –, a começar pela queda do muro de Berlim e o fim dos regimes comunistas; das utopias que floresciam por esses anos 60, 70, e mesmo, ainda 80 do século passado. Vivemos hoje num mundo digital, governado pelas grandes empresas de Silicon Valley, com várias ameaças, das alterações climáticas à inteligência artificial. E a emergência dos populismos de extrema-direita, um pouco como acontecia há 100 anos. Em Portugal a direita nunca foi além do CDS, que embora sendo um dos partidos fundadores da democracia, fez parte da Assembleia Constituinte eleita em 1975, e foi o único partido a votar contra a Constituição aprovada em 1976. Mas agora a extrema-direita chegou ao parlamento, as promessas da AD de não fazer um acordo parlamentar, ou de governo, com o Chega, são vãs. Cinquenta anos depois do 25 de Abril, Portugal parece estar condenado a enfrentar uma contra-revolução liderada pelo extrema-direita. É certo, como já escrevi acima, que há cerca de 10 anos tivemos um governo que colocou em causa não só os chamados “valores de Abril”, como os dirigentes do PCP gostam de dizer, mas sobretudo os valores da social-democracia. Também é certo que certa esquerda, nos últimos anos, tem abraçado os valores woke, provocando uma fricção social que leva a que muitas pessoas passem para o lado oposto a esses valores woke.

6, Nas últimas semanas, temos assistido a situações mais ou menos inéditas, com polícias a vir para a rua manifestar-se, ainda que à civil. Um jogo de futebol, entre o Famalicão e o Sporting não se pode realizar porque os polícias destacados para fazer a segurança ao jogo, apresentaram atestados médicos invocando doença. Na origem dos protestos, para além das más condições em que vivem alguns polícias, está um subsídio que foi atribuído aos membros da Polícia Judiciária. O presidente do Sindicato da Polícia chegou, em entrevista, a ameaçar que as eleições podiam não se realizar porque são os polícias quem transportam os boletins de voto. A 19 de Fevereiro, quando se realizou o debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro no teatro Capitólio, e transmitido em sinal aberto pelos três canais de televisão, uma manifestação espontânea de polícias esteve à porta do teatro. Também os militares ameaçam manifestar-se. O semanário Expresso titulava, na sua edição de 23-02-24, “Militares ameaçam sair à rua se polícias tiverem aumento”.  Esta situação faz lembrar a de um país africano com uma fragilíssima democracia, não é normal num país com uma democracia de 50 anos. Mas, como já tentei explicar acima, não vivemos tempos normais. As ameaças de polícias e militares, de qualquer forma, são inaceitáveis. 

(Imagem do blogue Expresso da Linha,  https://expressodalinha.blogspot.com/2012/04/luisa-os-cravos-murchos-da-injustica.html ) 

quarta-feira, janeiro 31, 2024

A POLÍTICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

 


1, José Sócrates foi detido há dez anos, quando regressava de Paris. Há sua espera, no aeroporto tinha não só a polícia, mas também uma equipa de televisão para filmar o “acontecimento”. Depois de ser ouvido pelo super-juiz Carlos Alexandre, por ordem deste ficou meses em prisão preventiva. Por essa altura Portugal era governado pela coligação PSD/CDS e pela troika. Passos Coelho, o primeiro-ministro, fazia a apologia do empobrecimento, do ir além da troika que controlava a política portuguesa, em troca dos mais de 70 mil milhões de euros que o BCE, FMI e UE nos tinham emprestado. Nem o Ministério Público, nem o juiz Carlos Alexandre tinham, nessa altura, provas contra o líder de dois governos do PS, entre 2005 e 2011. Falava-se na imprensa, nomeadamente no Correio da Manhã, de uma série de casos que apontavam para que José Sócrates fosse um corrupto. Por outro lado, a sociedade portuguesa estava dividida em relação à figura de Sócrates: para uns ele fora o responsável por Portugal ter chegado à quase bancarrota, mas, ao mesmo tempo, viviam-se tempos de que não havia memória. O desemprego tinha chegado aos 17, 18%, o governo de Passos e Portas tinha cortado o subsídio de férias e Natal, os mais jovens emigravam. António Costa, que tinha substituído o apagado António José Seguro como Secretário-Geral do PS, criou a frase “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política” – foi um mantra que repetiu durante quase nove anos. Mário Soares, com 90 anos, que só conhecera as prisões de Salazar, mostrava-se inconformado à porta da prisão de Évora, onde estava Sócrates.

2, Foi no início dos anos 1990 que pela primeira vez, desde o PREC, um político, neste caso ex-político, Costa Freire, foi detido e julgado. O ex-secretário de Estado da Saúde de Leonor Beleza, apesar de condenado em 1994, conseguiu, de recurso em recurso, que o seu caso prescrevesse em 2004. Por essa altura Portugal vivia um outro grande processo judicial-mediático: o caso Casa Pia, instituição onde durante décadas crianças tinham sido abusadas sexualmente. Entre os acusados do processo Casa Pia estava o nome mais sonante da televisão portuguesa: Carlos Cruz. Mas as crianças, ouvidas pela PJ, também apontaram o jovem deputado do PS Paulo Pedroso. Pedroso, então uma promessa nas hostes socialistas, ficou 4 meses em prisão preventiva. Foi depois inocentado, e processou o Estado português, ganhando o processo. Mas a sua carreira política estava liquidada – é hoje professor universitário e comentador político na RTP. Por essa altura, correram boatos que implicavam também Ferro Rodrigues, então líder do PS.

3, Durante os primeiros seis anos dos governos de António Costa não constam grandes problemas com a justiça, para além de Sócrates. Mas o governo maioritário, obtido pelas eleições de janeiro de 2022, foi um desastre de “casos & casinhos”, uns que implicavam a justiça, outros que apenas implicavam a administração de empresas como aconteceu com a TAP. Costa sobreviveu politicamente até ao ponto de afrontar o presidente da República, em maio de 2023, ao não aceitar a demissão do ministro João Galamba, como o PR pretendia. Marcelo, o comentador-mor transformado em Presidente da República, chegou a demitir ministros em directo. As relações entre PM e PR azedaram, mas entre maio e novembro, essa manhã de 7 de novembro de 2023, em que a polícia irrompeu pela residência oficial do primeiro-ministro, em que Lucília Gago, a Procuradora- Geral da República, escreveu um parágrafo assassino onde referia que António Costa era suspeito, tudo esteve calmo. Mas nesse dia, mesmo ainda não sabendo que a polícia encontrara 75 mil euros em notas no gabinete do seu assessor, António Costa apresentou, em directo, para as televisões a sua demissão. O país foi apanhado de surpresa, Marcelo não aceitou um outro primeiro-ministro que o PS indicou e marcou eleições para 10 de março. Por essa altura, entre outras coisas, ficou-se a saber que Galamba foi escutado durante 4 anos.

4. Se é certo que o poder gera corrupção, que os anos de poder do Partido Socialista ajudaram a criar essa corrupção, não é menos certo que o MP se tornou num actor político todo-poderoso, capaz de lançar acções que demitem governos (algo que nunca tinha acontecido na democracia portuguesa). António Costa não repetiu o seu mantra, “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Porque, na realidade, essa frase não é verdadeira. Existe separação de poderes, ninguém está acima de ninguém na alegada cegueira da justiça. Mas o código penal, o código civil, o código do processo penal, toda a legislação sobre a qual o poder judicial actua, emana do poder político. À justiça apenas cabe a interpretação dessas leis. Mas também os meios de que as polícias, o MP, os juízes, dispõem, são dados pelo poder político. E, pela últimas e espectaculares intervenções da justiça junto de políticos, o Partido Socialista foi generoso para com a justiça, em particular para com a Polícia Judiciária.

5, Já depois da demissão do governo, num período que é já de campanha eleitoral, o MP voltou a atacar. Agora, como que querendo equilibrar a perseguição ao PS,  o MP atacou Luís Montenegro, o actual líder do PSD. Em causa algo que já era sabido: a casa que este construiu em Espinho. Esquecido esse assunto, a semana passada foi a vez de atacar em grande na Madeira. Um avião da Força Aérea levou140 operacionais da PJ para o Funchal onde fizeram buscas na Câmara Municipal do Funchal e na residência do presidente do governo regional da Madeira. Tão espetacular operação, resultou na detenção do presidente da Câmara do Funchal, Pedro Calado, e na constituição de Miguel Albuquerque como arguido. Daqui resulta uma incerteza quanto ao futuro político da Madeira: ou a continuação deste governo com o apoio do PAN, ou a marcação de novas eleições.

6, Em 2017 o juiz Sérgio Moro condenou “Lula” da Silva a mais de nove anos de prisão, impedindo-o assim de concorrer às eleições presidenciais que foram ganhas pelo candidato da extra-direita Jair Bolsonaro. Sérgio Moro viria a fazer parte do governo de Bolsonaro. A justiça, no Brasil, serviu uma muito má causa política. Em Portugal, a frenética actividade do Ministério Público parece querer corroer a democracia. Tal como no Brasil, o partido que parece sair mais beneficiado da suspeita que recaiu sobre António Costa, é de extrema-direita. Mas, sobretudo, e embora com o desgaste do PS de António Costa, temos um MP que se arvora no poder de lançar uma suspeita (apenas isso, nem sequer o constitui arguido) sobre um primeiro-ministro enfraquecido, sabendo que isso vai despoletar eleições legislativas. O mesmo é verdadeiro para o caso recente da Madeira. O grande beneficiário de tudo isto, no fundo da ideia populista de que os políticos são todos corruptos, é o partido de extrama-direita, manifestando-se contra o sistema (político), contra a III República saída do 25 de Abril, ganhando votos, porque, na realidade, como disse Freud, a tarefa de governar é uma das tarefas impossíveis. Ora, quando essa tarefa exige os melhores de uma sociedade, a suspeita a priori de que todo o político, qualquer pessoa que exerça um cargo público é um corrupto, é o código postal para a derrocada de uma difícil democracia.