segunda-feira, dezembro 17, 2007
terça-feira, dezembro 04, 2007
domingo, dezembro 02, 2007
Pedro Oom

CARTA AO EGITO
A poesia não necessita de "ser salva" porque o que nós entendemos por poesia não necessita de espécie alguma de salvação. Todo o acto de revolta ou de rebeldia, todo o processo de violentar "a natureza" e de desconhecer o direito e a moral é para nós poesia embora não se plasme, não se fixe, não se possa generalizar - e aqui está, implícita, a recusa terminante de amarrar o poeta a uma técnica, seja ela qual for, mesmo a mais actual, a mais opurtuna, porque, precisamente, o que o distingue do homem da técnica é um sentido de não oportunidade, de inoportunidade, que lhe advém de uma clarividência total e duma insubmissão permanente ante os conceitos, regras e princípios estabelecidos. Com isto não queremos dizer (Deus nos livre!) que o poeta seja um louco, um visionário, mas que, se ele tem de possuir uma estética e uma moral é, sem sombra de dúvida, uma estética e uma moral próprias.
A poesia é um meio de conhecimento e acção de cujos frutos, bons ou maus, só o poeta aproveita (facto, este, de que muito poucos se dão conta) e daí a inutilidade dos esforços para ligá-lo a qualquer filosofia, política ou teologia, inutilidade que se não desmente no caso de ser o próprio poeta a tentar essa aproximação. É (foi) o caso de Régio como o de Mayakovsky: a sua voz continuará estranha e o sentido das suas palavras incompreensível mesmo para aqueles que escolheu como amigos ou correligionários. É que o poeta é rebelde sem premeditação, demolidor de tudo e de si próprio, esforçadamente anti-caridade-encostada-às-esquinas-de-pistola-em-punho ou caneta-na-mão-lágrima-de-jacaré.
Daí que resultem contraditórios os termos do poeta católico, marxista, surrealista, existencialista, anarquista ou socialista, quando não se desconhece que só ao poeta é dado compreender o poeta. Daí que resultem ridículas as homenagens colarinho-alto ou selecta-de-infância com que é costume, aqui e lá fora, enfaixar o cadáver daqueles que como Fernando Pessoa, Rimbaud ou Gomes Leal foram em vida o mais esforçado testemunho contra o bom-senso-não-deites-a-língua-de-fora.
O que possa haver de menos compreensível em tudo isto resulta do facto de que toda a explicação necessita de outra explicação para ser compreendida. Aquilo que de um modo imediato é para nós verdadeiro só será inteligível para outrem depois de uma determinada "mastigação" durante cujo processo já todo o objecto em causa adquiriu nova cor, nova forma, novo ou novos sentidos de interpretação. O poeta tem a clarividência desta transformação e daí a sua atitude, sempre de recusa a qualquer espécie de imposição, e ainda quando nos pareça que um dos seus gestos adquire uma cor mais conformista, ou um tom menos violento, ele não é mais do que uma forma diferente de recusa.
Pedro Oom, in Actuação Escrita (Lisboa, & etc, 1980), retirado de Telhados de Vidro, nº3
terça-feira, novembro 27, 2007
Manuel de Freitas

O SOM DAS VÍRGULAS
para o Jorge Gomes Miranda
Deixa estar, Jorge, é demasiado
tarde: já não nos livramos da
imerecida glória de sermos
grupo, constelação, movimento
-"nós" que, a bem dizer,
nunca acreditamos em nada disso.
Sempre de vozes tontas e ruído
alarve precisou o mundo. Mas agora
imitam os políticos, delegam poder
naquilo que nenhum poder aufere -
a poesia - esses que em jornais
e outras cátedras matariam pai e mãe
para chegar a palcos grosseiros
em que nem actores conseguem ser.
E até dizem que prestamos vassalagem
a quem simplesmente nos ensinou
por onde não devíamos seguir
-à distância dos livros, na pulsão
do irrespirável e, anos depois, do afecto.
Há várias maneiras de preferir um descampado.
Porque a poesia, Jorge, só interessa
- se é que interessa - quando nos visita
"com a urgencia de quem verte
cubos de gelo num copo de whisky".
Tão parecida com "o vírus do amor"
que faz do corpo o único lugar.
Mas para quê falar-te disto?
Disseste-o melhor, assim:
"nada é a poesia
prelúdio de outras ruínas
nunca afirmadas".
Não te inquietes, pois, com arrumadores
de versos. A morte corrigirá todas
as vírgulas, mesmo as que lá não estavam.
Manuel de Freitas, Telhados de Vidro, nº3, ed. Averno.
domingo, novembro 25, 2007
IAN CURTIS: O CONTROLO DO MITO


Ele era casado, tinha uma filha ainda bébe, um emprego num centro de emprego, uma amante; era jovem (young men), sofria de epilepsia, vivia numa cidade de subúrbio perto de Manchester - Macclesfield. Uma vida vulgar? Não. Ele chamava-se Ian Curtis e era o vocalista e autor das letras dos Joy Division, uma das mais importantes bandas da história do rock. O suicídio, aos 23 anos, a 18 de Maio de 1980, criou o mito que a intensidade espasmódica e depressiva da música dos Joy Division já fazia antever. Agora, 27 anos depois, surge o filme, uma adaptação da biografia que a viúva de Ian, Deborah Curtis, escreveu (Touching from a Distance de que existe tradução em português, Carícias Distantes, Assírio & Alvim). O filme, Control, é realizado por Anton Corbijn, fotografo que em 1988 realizou o teledisco de "Atmosfere", e tem Sam Riley (praticamente um estreante que embora tendo sido vocalista de uma banda "não fazia ideia de quem era Ian Curtis") no papel de Ian Curtis. Aclamado em Cannes, o filme de Corbijn, de que Deborah Curtis é co-produtora, foge da estética depressiva e pós-punk dos Joy Division, desmistificando pelo lado de fora Ian Curtis. Ora a vida de Curtis, que não chegou a ser uma estrela rock, é uma vida banal, cinzenta como esses finais da década de 70 em Inglaterra, como essa cidade de subúrbios. O que não é banal em Ian é a sua visão do mundo plasmada na música e letras dos Joy Division, ou ainda a sua entrega em palco que, creio, Sam Riley, se esforça por copiar, mas será sempre uma cópia. O filme acaba por dar pouco daquilo que foram os Joy Division e a banda sonora é escassa e mal aproveitada - nem sempre os melhores temas dos Joy Division aparerecem (veja-se o final do filme aonde seria de aproveitar um dos temas maiores da banda "The Eternal" ou mesmo "Decades").
quarta-feira, novembro 21, 2007
FERNANDO PESSOA / BERNARDO SOARES

Cada vez que viajo, viajo imenso. O cansaço que trago comigo de uma viagem de comboio até Cascais, é como se fosse o de ter, nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países.
Cada casa por que passo, cada chalé, cada casita isolada caiada de branco e silêncio -- em cada uma delas num momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto que tendo-a abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades.
Depois, ao passar diante de casas, de «villas», de chalés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte especial que tenho de sentir ao mesmo tempo -- e ao mesmo tempo por fora, vendo-as, e por dentro sentindo-mas -- as vidas de várias criaturas.
Livro do Desassossego, edição de António Quadros, in Obras de Fernando Pessoa, vol. II, Lello e Irmão, pp. 872-3.
domingo, novembro 18, 2007
THOMAS BERNHARD NO CCB

A partir de hoje e até 16 de Dezembro Thomas Bernhard, o escritor austriaco que passava frequentemente por Portugal, estará em foco num ciclo que é dedicado à sua obra no CCB. Para hoje está prevista a inauguração de uma exposição, na galeria Mário Cesariny, sobre "Thomas Bernhard e as pessoas da sua vida". Um dos principais tradutores da obra de Bernhard para português, José A. Palma Caetano apresenta a conferência "Thomas Bernhard e Portugal", pelas 18 horas; às 21h00 a Companhia de Teatro de Almada lê a peça O Presidente. No dia 22 será apresentado o romance Correcção, editado pela Fim de Século; no dia 26 João Barrento apresentará outro livro de Thomas Bernhard, que será editado pela Assírio & Alvim: Derrubar Árvores. Nesse mesmo dia, pelas 21h00, Tiago Rodrigues lê O Náufrago e a seguir é exibido o filme Glenn Gould: Variações de Goldberg. Outras iniciativas acontecerão até 16 de Dezembro, mas será que Thomas Bernhard, iconoclasta e provocador, aceitaria este tipo de homenagens?
sábado, novembro 17, 2007
quarta-feira, novembro 14, 2007
quinta-feira, novembro 08, 2007
ROBERT WALSER

O URSO
Quão diferente é o urso. Em rigor, bonito não é. É antes um pouco estranho nos seus movimentos bamboleantes, ágil e encorpado, e não se sabe ao certo como o interpertar. Se ele pretende estender a pata, dás, involuntáriamente, um passo atrás. Não te apercebes de que, com a tua demonstração de medo, poderias tê-lo ofendido. Um urso tem o seu amor-próprio. Esta noite sonhei com um urso. Essa visão patusca fez que me sentisse também todo peludo. Senti compaixão, quando ele estendeu o braço para uma rapariga, ela a personificação da delicadeza e ele assim tosco, nem sequer penteado - bem podia ter esse cuidado... «Deixa-me em paz!», disse ela, e ele foi-se embora empertigado e, como se fosse uma pessoa que tivesse percebido bem o recado, enfiou-se na cama e puxou o cobertor para se tapar.
Robert Walser, A Rosa, Relógio d' Água, Trad. Leopoldina Almeida, 2004, p.29.
domingo, novembro 04, 2007
OS MÉDIA E «MADDIE»

O jornalismo procura, entre outras coisas, contar histórias - boas histórias - que, fazendo parte do real, muitas vezes são adaptadas à ficção (literária ou cinematográfica). Por outro lado´a imprensa escrita albergou ficções através de géneros como o folhetim ou o conto, hoje arredados das páginas dos jornais. O desaparecimento de Madelaine McCan no passado dia 3 de Maio de um complexo hoteleiro na Aldeia da Luz, no Algarve, e as consequências que este caso teve a nível mediático enquadram-se numa lógica folhetinesca. Este caso teve, e continua a ter, todos os ingredientes de um bom romance ou série policial. É claro que todos os dias desaparecem crianças, mas nunca um caso como o de Maddie teve esta repercussão mediática. Quer se acredite na inocência ou culpabilidade (ainda que relativa) dos pais, estes, através da sua posição social e amizades junto do governo inglês, tiveram um papel activo no desencadear de uma cobertura mediática inédita na busca de uma criança. As acções que o casal McCan tomou, que incluiram um encontro com Bento XVI, ajudaram a manter a campanha a nível dos meios de comunicação social. Mas, como numa boa história policial, dá-se uma reviravolta e as vitimas passam a culpados. Mais apetecível ficou a história. Agora, passados 6 meses e com o casal McCan em Inglaterra, embora com o estatuto de arguidos, o caso vai-se esfumando. Há indícios forenses, mas não há corpo, e a polícia judiciária sabe que este não é um outro caso Joana (onde a confissão da mãe terá sido obtida sob tortura). Nem mais um episódio de CSI (Praia da Luz).
quinta-feira, outubro 25, 2007
YOU ARE NOT WELCOME MR. PUTIN

O povo russo tem sido ao longo de séculos oprimido: pelos czares, pelo comunismo, com o seu maior expoente no camarada Estaline, e agora, por este homem que assassina jornalistas e e ex expiões do KGB. E isto deve ser a ponta do iceberg do terrorrismo de estado de Putin.
terça-feira, outubro 23, 2007
MUDANÇA TRANQUILA

Os grandes jornais mundiais estão a mudar o seu aspecto gráfico. O último que o fez foi o espanhol El País, diário que assistiu ao crescimento da democracia espanhola e se tornou num dos mais importantes jornais mundiais. Esta mudança foi uma mudança tranquila (ao contrário do que aconteceu este ano com o Público): desde logo porque foram feitas pequenas mudanças ao longo dos últimos anos, como a introdução da cor em algumas páginas do jornal. Aspectos como o tipo de letra podem passar despercebidos ao leitor menos atento, embora a utilização da cor em todas as fotografias do jornal, tras uma tendência para o desaparecimento da fotografia a preto e branco na imprensa.
O grafismo é o embrulho das matérias que um jornal publica (notícias, reportagens, opinião, etc). No caso do El País, o que o torna um jornal de referência, embora demasiadamente colado ao PSOE, é a forma como aborda o mundo, dando grande espaço à actualidade internacional, mas também os meios de que se serve para o fazer, ou seja, correspondentes e enviados especiais que dão a sua visão própria dos assuntos tratados. No entanto, nota-se, por parte de toda a imprensa um certo alarmismo face à internet que resulta numa fuga para a frente, mudando o aspecto gráfico e por vezes também os conteúdos. O Público foi um mau exemplo desta mudança, o que parece não ocorrer com o El País.
sábado, outubro 20, 2007
terça-feira, outubro 16, 2007
PEDRO TAMEN

AMENDOEIRA
Entra no algodão terroso.
Depois
sobe devagarinho, mal se vê,
em muda aspiração ao algodão azul.
Persiste sem saber
que nunca atingirá
o mar da macieza.
Insiste pelos meses,
cega pelos ventos, pelo ouro
que purifica o céu.
Então,
sem desistir,
um dia,
não se resigna e explode
branca de alegria.
Pedro Tamen, Analogia e Dedos, Oceanos, 2006, p.31
sexta-feira, outubro 12, 2007
PAZ E LITERATURA


Doris Lessing, escritora inglesa de 88 anos e 75 livros publicados ganhou o prémio nobel da literatura. Pelo menos, no que respeita ao nobel da literatura podiam criar um totonobel.
Al Gore, ex vice-presidente dos Estados Unidos, que perdeu - para mal do mundo -, as eleições de 2000 ou 2001 para a presidêcia dos EUA a favor de Bush, e autor do filme Uma Verdade Incoveniente, ganhou o prémio nobel da paz juntamente com um tal Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU. Por cá "Os Verdes" não gostaram.
quinta-feira, setembro 27, 2007
terça-feira, setembro 25, 2007
quinta-feira, setembro 13, 2007
Big Brother, 4

"O Google, com todo o seu dinamismo, deu um passo arrojado, como o Street View, que tem gerado grande polémica nos Estados Unidos, o único país onde está disponível. Ao contrário do Earth, que funciona com imagens de satélite, aqui as imagens são reconhidas sem, qualquer aviso, através de uma rede de câmaras. Assim, é possível o reconhecimento das pessoas. É uma escalada perigosa: a vigilância não está ao alcance de uma instituição supostamente idónea e responsavel (...). As imagens são recolhidas por Volkswagens Beattle, com uma câmara no topo. (...). Tal como a imprensa, o Google pode recolher imagens em lugares públicos. Já em termos éticos é reprovável."
Manuel Halpern, Jornal de Letras, p. 39, 12-09-07, edição minha.
segunda-feira, agosto 27, 2007
sexta-feira, agosto 10, 2007
quarta-feira, agosto 08, 2007
DO YOU REMENBER TIENANMEN?

Giorgio Agamben, A Comunidade Que Vem, Presença, p.68
segunda-feira, agosto 06, 2007
domingo, agosto 05, 2007
KONSTANDINOS KAVAFIS

AS JANELAS
Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. - Uma janela
quando abrir será uma consolação. -
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.
Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio d' Água, 1994, p.83
terça-feira, julho 31, 2007
O DASAPARECIMENTO DO CINEMA

Poderia afirmar que com o desaparecimento de Ingmar Bergman e Antonioni, num curto espaço de 12 horas, é também o cinema que desaparece. Não me parece que seja por estas duas mortes que o cinema desaparece. A obra de um estava já terminada e o outro estaria já impossibilitado de filmar (ou as duas coisas para os dois). O que se passa é que com o desaparecimento destes dois grandes cineastas nos apercebemos que o cinema -- o cinema deles e não só -- já tinha desaparecido. Vejamos: primeiro foram os cinemas que desapareceram do centro das grandes cidades (veja-se o caso do Porto, onde já não há um único cinema a funcionar fora de um centro comercial) -- e já antes tinham sido os cineclubes (mais uma vez invoco o caso do Porto, Lisboa mantém a Cinemateca). Ou seja, a visibilidade de cinema, hoje, está remetida para os grandes centros comerciais. Mas, por uma lógica inevitável, os filmes que ai passam são comerciais, blockbusters vindos de Hollywood. Não há lugar para o cinema como Arte de que Bergman e Antonioni foram máximos expoentes. Esta situação não é de agora: seria difícil ver um filme como Monica e o Desejo numa sala comercial há 20 anos. A quem cabia preservar essa memória do cinema? Aos cineclubes, mas funfamentalmente à televisão de serviço público. E era assim que se passava: a RTP-2, durante as décadas de 80 e 90 passou muitas das grandes obras que constituem a memória do cinema, obras de cinema como arte. Esse era (e deve ser) um imperativo do serviço público de televisão. No entanto, com a tentativa de venda da RTP-2, há cerca de 4 anos pelo ministro Morais Sarmento, e consequente desmantelamento do espírito desse canal, o cinema desapareceu da RTP-2. Hoje os "pacotes" de televisão por cabo oferecem dezenas -- ou mesmo centenas -- de canais. Canais temáticos onde se podem encontrar canais especializados em cinema, mas apesar da dita especialização será dificil encontrar um filme de Bergman num desses canais. Obras como as de Bergman, Antonioni, Tarkovski, Dryer (será assim que se escreve? Não encontrei nenhuma referência ao realizador de A Palavra no Google) passaram a estar disponiveis apenas em dvd nas lojas da fnac ou numa loja virtual. Dirão que é melhor que noutros tempos em que se tinha que esperar que um filme passasse num cineclube ou na televisão. Mas a questão não é essa. A questão passa por uma lógica das imagens que proliferam por todo o lado. O cinema de Bergman, por exemplo, embora perto de certa linguagem televisiva pelo uso de grandes planos, está banido dessa lógica de imagens cada vez mais frenéticas que por todo o lado nos assaltam. As anedotas sobre o cinema de Manoel de Oliveira mostram como essa linguagem cinematográfica não tem lugar na lógica das imagens do mundo contemporâneo. É que a lógica das imagens em que vivemos, que também é a mesma lógica em que vivemos, a lógica do zaping, baniu a lentidão, a magia da "lanterna mágica", a contemplação, o pensamento. Neste sentido há todo um cinema que tende a desaparecer, a tornar-se marginal. E esse é o grande cinema, o cinema como arte, o que pensou e sentiu o mundo.
segunda-feira, julho 30, 2007
PHILIP K. DICK

Os patos e o vagabundo no parque desapareceram nesse instante. Nada restou deles. O intervalo com os seus furos tinha passado depressa.
-Não são reais - disse Sarah. - Pois não? Por isso, como é que...
-Tu não és real - disse-lhe ele. - És um coeficiente de estímulos da minha fita de realidade. Um furo que pode ser ignorado. Será que também existes noutra fita de realidade, ou numa realidade objectiva?
Não sabia; não tinha maneira de saber. Era possível que Sarah também não soubesse. Talvez existisse em mil fitas de realidade; talvez existisse em todas as fitas de realidade alguma vez produzidas.
-Se eu cortar a fita - disse - passarás a estar em todo o lado em lado nenhum. como o resto do universo. Pelo menos no que a mim diz respeito.
Sarah gaguejou:
-Eu sou real.
-Quero conhecer-te completamente - disse Poole. (...)
"A formiga elétrica", in Ficções, nº15, 2007, p. 122
sábado, julho 28, 2007
EVA RUIVO
UM RECADO POR BAIXO DA PORTA
Parece que estou metida num vídeo
pornográfico, as ramagens batidas pelo suor e o rumor
de vozes agrícolas, regos abertos a cruzar as únicas
sílabas que a colheita, mãos de cortiça, deixou
varejadas. Dói: o sol nos muros, corpo inculto
versado na dor. Depois, certos dias obrigados
a festa, colchas no parapeito, jarras cheias
de calendário para encobrir o remorso;
a vida na província
são obscenas imagens de fuga
Acordei, tinham passado por cima de mim
aldeias inteiras, vivalma, sequer um alguidar
com água para a mula, pele e osso, ou música
o acordeão a insuflar a tenda.
in Hifen- Cadernos de Poesia, nº 10, 1997, p.19
Eva Ruivo nasceu em 1963 (Lisboa). Publicou Rosa de Jericó, Frenesi, 1994
«We are the stuff
As dreams are made of, and our little life
Is rounded with a sleep»
Shakespeare. The Tempest
Parece que estou metida num vídeo
pornográfico, as ramagens batidas pelo suor e o rumor
de vozes agrícolas, regos abertos a cruzar as únicas
sílabas que a colheita, mãos de cortiça, deixou
varejadas. Dói: o sol nos muros, corpo inculto
versado na dor. Depois, certos dias obrigados
a festa, colchas no parapeito, jarras cheias
de calendário para encobrir o remorso;
a vida na província
são obscenas imagens de fuga
Acordei, tinham passado por cima de mim
aldeias inteiras, vivalma, sequer um alguidar
com água para a mula, pele e osso, ou música
o acordeão a insuflar a tenda.
in Hifen- Cadernos de Poesia, nº 10, 1997, p.19
Eva Ruivo nasceu em 1963 (Lisboa). Publicou Rosa de Jericó, Frenesi, 1994
segunda-feira, julho 23, 2007
quarta-feira, julho 18, 2007
HELDER MOURA PEREIRA
Dorme calma depois de ler
as mil e uma noites.
O dia cansou-a em curtas
viagens e hábitos
de companhia, no seu segredo
há uma espera de meses,
ainda não decidiu
a sua vida, só parece
parar um pouco a olhar
o rio. Raras vezes crê
no que lhe digo, uma turva
linguagem do feminino
força o seu corpo.
Os seus gestos ficarão
nesta casa?
in De novo as sombras e as calmas, Contexto, 1990
as mil e uma noites.
O dia cansou-a em curtas
viagens e hábitos
de companhia, no seu segredo
há uma espera de meses,
ainda não decidiu
a sua vida, só parece
parar um pouco a olhar
o rio. Raras vezes crê
no que lhe digo, uma turva
linguagem do feminino
força o seu corpo.
Os seus gestos ficarão
nesta casa?
in De novo as sombras e as calmas, Contexto, 1990
quinta-feira, julho 05, 2007
quinta-feira, junho 28, 2007
AGAMBEN EM SERRALVES

Giorgio Agamben esteve ontem em Serralves, para proferir uma conferência intítulada "Arte, inoperância, Política", a última do ciclo Crítica do Contemporâneo. E hoje vai estar outra vez para dialogar com o músico Stefano Scodanibbio. A obra do filosófo italiano pode ser vista sob dois pontos de vista: livros de carácter ensaístico como Ideia de Prosa ou Profanações (Livros Cotovia), em que o pensamento da Agamben é condensado em pequenos textos, por vezes um tanto herméticos, quase fábulas filosóficas e, livros que têm abordado uma das teses mais polémicas deste pensador, ou seja, a que compara a vida nos actuais Estados e cidades à vida nos campos de concentração nazi. Está neste caso a série de livros que tem por título Homo Sacer, de que em português apenas está editado o primeiro, O Poder Soberano e a Vida Nua (Presença). Ontem, em Serralves, Agamben abordou essencialmente o conceito de inoperância e inoperacionalidade. Para operacionalizar este conceito (será isto um paradoxo?) o autor de A Comunidade que Vem (Presença) foi buscar conceitos teológicos e, também, económicos. A conferência de Giorgio Agamben pareceu ser um resumo de algo que provalvelmente aparecerá em livro mais estruturado. Mas a ideia que me pareceu estar por detrás do conceito de inoperância, não parece ser nova: na sua essência andará próxima do Direito à Preguiça (Paul Lafargue) ou da inscrição situacionista "ne travaillez jamais".
sábado, junho 23, 2007
Roland Barthes

O poder está presente nos mecanismos mais subtis da comunicação social: não apenas no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda, nas modas, nas opiniões correntes, nos espectáculos, jogos, desportos, informações, nas relações familiares e privadas e até nas forças libertadoras que tentam contestá-lo: chamo discursso de poder a todo o discursso que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve"
(...)
"Jakobson demonstrou que um idioma se define menos por aquilo que permite dizer do que por aquilo que obriga a dizer. Em francês sou obrigado a definir-me como sujeito antes de enunciar a acção que a partir desse momento será apenas o meu atributo: o que faço é apenas a consequência e a consecussão do que sou; do mesmo modo sou sempre obrigado a escolher entre o masculino e o feminino, o neutro e o misto são-me interditos; sou ainda obrigado a marcar a minha relação com outém recorrendo ao tu ou ao vós: é-me recusada qualquer indecisão afectiva ou social. Assim, devido à sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com mais razão ainda discorrer, não é comunicar, como muitas vezes se diz, mas sim subjugar: toda a língua é uma regência generalizada"
(...)
"A língua como performance de toda a linguagem não é nem reaccionária nem nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista; porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer."
Roland Barthes, Lição, edições 70, 1979, pp. 14, 15 e 16
sábado, junho 16, 2007
AGUSTIN GARCíA CALVO

A NECESSIDADE DA PRODUÇÃO E A PRODUÇÃO ESSENCIAL DOS SUJEITOS
Porém, do que se trata com tudo isto é da mais elementar das necessidades de que a Ordem padece, e de que nos faz padecer a todos: a de produzir. Pois, por um lado, só a obrigação de produzirconsiste na relação do produtor com o produto, no sentido em que um produza o outro. Um aspecto mais profundo do processo reside no seguinte facto: é o produto que faz o produtor ser o que é. E se pode ser importante que o operário continue a produzir automóveis, ou o professor matérias de ensino, mais importante ainda, sem dúvida, é que o automóvel ou as lições definam o operário como operário e o professor como professor, respectivamente. De tal forma que até mesmo actividades aparentemente vazias de produto, como as de delirar, mendigar, gritar, «o poder para o povo», dormir debaixo das pontes ou empregar determinadas técnicas de foda, podem não obstante constituir um produto com valor no Mercado, e aceitável, para o Senhor, como paga, a fim de Ele deixar este ou aquele continuando vivendo, na medida em que assim possam constituir esse produto essencial para a marcha e subsistência do Estado que se chama a Pessoa.
Aguntin García Calvo, Comunicado Urgente Contra o Desperdício, Fora do Texto, 1990, pp.29-30
sexta-feira, junho 15, 2007
Richard Rorty (04.10.1931 - 08.06.2007)

Conseguir que alguém negue a sua crença sem qualquer razão é um primeiro passo para tornar essa pessoa incapaz de ter um eu por se tornar incapaz de tecer uma teia coerente de crença e desejo. É algo que torna essa pessoa irracional num sentido bastante preciso: a pessoa é incapaz de apresentar uma razão para a sua crença que se articule com as suas outras crenças. Torna-se irracional não no sentido de ter perdido o contacto com a realidade, mas sim no sentido de já não conseguir racionalizar -- de já não se justificar perante si próprio.
Richard Rorty, Contingência, Ironia e Solidariedade, Presença, 1994, p. 223
sábado, junho 09, 2007
Contracapa
Tais pessoas eram capazes de sonhar, mas incapazes de governar. Destruíam as suas vidas e as dos outros. Eram tolas, fracas, fúteis, histéricas; mas por trás de tudo isto, ouve-se a voz de Tchékov: abençoado o país que soube gerar este tipo humano. Eles deixavam escapar as ocasiões, evitavam agir, não dormiam à noite evitando mundos que não sabiam construir; mas a própria existência destas pessoas, cheias de uma abnegação apaixonada e fervorosa, de pureza espiritual, de elevação moral, o simples facto de estas pessoas terem vivido e talvez ainda viverem hoje, algures, na implacável e reles Rússia actual é uma promessa de futuro melhor, para todo o mundo, porque de todas as leis da natureza, a mais maravilhosa é talvez a da sobrevivência dos mais fracos.
Vladimir Nabokov, texto de contracapa de Contos VI de Anton Tchékov, ed. Relógio d' Água
terça-feira, junho 05, 2007
Charles Baudelaire

O ESTRANGEIRO
- De quem gostas mais, diz lá, homem enigmático? de teu pai, da tua mãe, da tua irmã, ou de teu irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Dos teus amigos?
- Eis uma expressão cujo sentido até hoje ignorei.
- Da tua pátria?
- Não sei a latitude em que está situada.
- Da beleza?
- Amá-la-ia de boa vontade, divina e imortal.
- Do oiro?
- Odeio-o tanto como a vós Deus.
- Então que amas tu, singular estrangeiro?
- Amo as nuvens... as nuvens que passam... lá longe... as maravilhosas nuvens!
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris -- pequenos poemas em prosa, Relógio d' Água, 1991
sexta-feira, junho 01, 2007
segunda-feira, maio 28, 2007
NA INTIMIDADE DA RÁDIO HÁ 23 ANOS

Pouco para dizer, muito para escutar, tudo para sentir. Tem sido fiel a este lema que Francisco Amaral realiza, desde há 23 anos um dos melhores e mais persistentes projectos radiofónicos em Portugal: Íntima Fracção. O programa terá começado na Antena 1, e passou depois pela TSF. Agora, depois de alguns anos fora de uma rádio com cobertura nacional, remetido para a RUC e a internet, a Íntima Fracção pode ser ouvida no novo Rádio Clube Português, de domingo para segunda entre a meia-noite e a uma da manhã. Mas também pode ser ouvida em podcast e mp3. Na intimidade da rádio, pouco para dizer, muito para escutar, tudo para sentir.
quinta-feira, maio 24, 2007
A MENTIRA (POR ALEXANDRE KOYRÉ)

Nunca se mentiu tanto... Com efeito, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, rios de mentiras são vertidos sobre o mundo. A palavra, a escrita, o jornal, a rádio... todo o progresso técnico está ao serviço da mentira. O homem moderno (...) banha-se na mentira, respira a mentira, está exposto à mentira a todo o instante da vida.
Alexandre Koyré, Reflexões Sobre a Mentira, Frenesi, 1996.
quinta-feira, maio 17, 2007
IAN CURTIS: PREPARA-SE O REGRESSO DO MITO

O mito urbano-depressivo de Ian Curtis, músico e poeta suicida, lider dos Joy Division - a banda de rock mais importante da década de oitenta -, perpetua-se, transmite-se desde o fundo do tempo, onde estão as estátuas de pedra. Agora, prepara-se um filme sobre Ian e os Joy Divison, um biopic anunciado para setembro próximo com realização de Anton Corbijn - e é de esperar o pior, ou talvez não. Mas enquanto houver coisas parecidas com rádios, em cidades tristes de cimento e néon, haverá alguém a dançar, em transe, muito perto do espasmo epiléptico, como ele fazia. Ou, ou a olhar a cerimonia dos dias.
sábado, maio 05, 2007
sábado, abril 28, 2007
sexta-feira, abril 27, 2007
RUY BELO

LITERATURA EXPLICATIVA
O pôr do sol em espinho não é o pôr do sol
nem mesmo o pôr do sol é bem o pôr do sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medicis
onze quilometros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr do sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr do sol apenas pôr do sol
.
(in Homem de Palavra[s])
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