sexta-feira, janeiro 03, 2025
terça-feira, dezembro 31, 2024
LIVROS EM 2024
1, No que respeita à actualidade geral, o ano
de 2024 foi marcado pela continuidade. A guerra na Ucrânia continuou, a guerra
entre Israel e o Hamas também continuou com o genocídio do povo palestiniano
por parte de Israel. A guerra é estúpida, este genocídio praticado por quem
sofreu há 80 anos um dos mais ignóbeis genocídios da história, é profundamente
estupido e desumano. No entanto, não podemos culpar o povo judeu, mas o líder
político do Estado de Israel, Benjamim Natanyahu. A vitória de Donald Trump nas
eleições norte-americanas, em Novembro, foi outro acontecimento que só a partir
de Janeiro de 2025, quando Trump entra em funções, se poderá avaliar. Mas, este
segundo mandato parece vir a ter uma diferença: a presença de Elon Musk na
administração de Trump. Musk é um dos homens mais ricos do mundo, um excêntrico
perigoso que sonha conquistar Marte, e que comprou a rede social Twitter e a
transformou no X. Mas, ainda recentemente Musk apoiou a extrema-direita alemã
da AfD, o que mostra que a extrema-direita que vai ganhando eleições um pouco
por todo o mundo, tem do seu lado o homem mais rico do mundo. E isso torna o
mundo mais perigoso do que nunca, porque desenha uma distopia (Musk está
também, como outros multimilionários de Sillicon Valey, apostado na IA, e num
estranho dispositivo para implantar na mente humana). Por cá, a nova AD ganhou,
por escassa margem sobre o PS, as eleições legislativas, formando Luís
Montenegro um governo PSD-CDS. Lucília Gago abandonou, por fim de mandato, a
PGR e, de certa forma “deu” a António Costa o lugar de Presidente do Conselho
Europeu.
2, 2024 foi um ano de tantos centenários que
o V centenário do nascimento de Luís de Camões ia sendo esquecido. Do ponto de
vista editorial, Isabel Rio Novo andava há já cinco anos a preparar uma
biografia de Camões: Fortuna, Caso, Tempo e Sorte (Contraponto, 2024),
um grosso volume de mais de 700 páginas resume a vida do autor d’ Os
Lusíadas. Frederico Lourenço (que tem vindo a publicar uma tradução “laica”
da Bíblia, traduzida a partir do grego) organizou uma antologia da poesia
camoniana, Camões – Uma Antologia (Quetzal, 2024), onde metade do volume
de cerca de 600 páginas é ocupado com comentários do professor da Universidade
de Coimbra. Registe-se ainda a publicação do teatro de Camões, num volume com “prefácio,
fixação de texto e notas” de Sérgio Guimarães de Sousa, editado pela Assírio
& Alvim. Para quem quiser ler toda a obra de Camões, ela está publicada na
E-Primatur, em três volumes, organizados por Maria Vitalina Leal de Matos. No
campo mediático, Jorge Reis-Sá (que este ano publicou a reunião da sua poesia
no volume Prado do Repouso – edição A Casa dos Ceifeiros), tem vindo a
apresentar na RTP 3, o programa 1000xCamões, onde conversa com figuras de
várias áreas sobre a poesia camoniana. A RTP 2 optou pela leitura dos 10 cantos
de Os Lusíadas feita em outros tantos episódios. As comemorações vão
estender-se até 2026 e têm um carácter político (como não podia deixar de ser,
tratando-se de Camões): a nova ministra da cultura, Dalila Rodrigues, nomeou
José António Bernardes, em substituição da anterior comissária, Isabel Marnoto.
Para já, o governo AD destina 2,2 milhões de euros, para comemorar Camões, no
OE para o ano de 2025.
3, Mas no que diz respeito a centenários,
2024 não foi só o de Camões. Dois importantes poetas portugueses nasceram há
100 anos: António Ramos Rosa e Alexandre O’ Neill. De O’ Neill a Assírio &
Alvim republicou dois livros, Tempo de Fantasmas (primeira edição de
1951) e No Reino da Dinamarca (primeira edição 1958). Sobre Alexandre O’
Neill há ainda uma exposição, “No Reino de O’ Neill”, comissariada por Joana
Meirim (que publicou o ensaio Uma Carta à Posteridade, Jorge de Sena e
Alexandre O’ Neill – Imprensa Nacional, 2024) e que conta com um texto
inédito de Adília Lopes intitulado “O’ Neill e a tia da aletria”. Quanto a
António Ramos Rosa, poeta essencial da poesia portuguesa, mas também um teórico
da própria poesia, alguém que publicou cerca de cem livros, caiu um absoluto
silêncio e esquecimento sobre o seu centenário. A Assírio & Alvim tem vindo
a publicar a sua obra, de que já foram publicados dois volumes (em 2018 e
2020), e existe uma antologia, Poesia Presente (Assírio &
Alvim, org. de Maria Filipe Ramos Rosa, com prefácio de J. Tolentino Mendonça).
Já sobre Franz Kafka, nome monstruoso da literatura mundial, não houve por cá
esquecimentos editoriais. Destaque-se, entre as várias obras publicadas os Contos,
Parábolas, Fragmentos (Relógio d’ Água, com tradução de António Sousa
Ribeiro, ver lista) e o primeiro volume (O Artista da Fome, tradução de
Bruno C. Duarte) de 3 com que a E-Primatur pretende publicar toda a prosa breve
do autor de O Processo. E ainda o centenário do nascimento de Bernardo
Santareno, talvez o melhor dramaturgo português do século XX.
4, O Porto é hoje uma cidade
descaracterizada. A culpa, como em muitas outras cidades europeias, é do
turismo. Isso levou a uma especulação imobiliária que está a transformar a
cidade, o que fez com que a Livraria Latina, fundada em 1942, e pertencente
desde há vários anos ao grupo Leya, fechasse. A Livraria Latina situava-se no
número 1 da Rua de Santa Catarina, uma artéria pedonal, de comércio de rua, das
mais movimentadas do Porto. Foi uma das principais livrarias do Porto,
juntamente com a saudosa Livraria Leitura e a Livraria Lello – que das três, e
graças à arquitectura do edifício onde está, se tornou num lugar de
peregrinação turística. Mais à frente, na mesma Rua de Santa Catarina,
funcionava, desde há cerca de 25 anos, uma loja da FNAC que este ano fechou.
Uma das características desta loja (replicada noutras), era funcionar como uma
biblioteca: as pessoas iam à FNAC, escolhiam um livro e sentavam-se num dos
sofás que por lá existia (se houvesse lugar). Algo replicado por algumas
livrarias. A FNAC, quando apareceu em Portugal foi algo de novo: podiam-se
comprar discos, filmes e livros no mesmo espaço. Nessa altura, a Internet dava
os primeiros passos, e os computadores – mesmo portáteis – tinham uma gaveta
para colocar o cd com disco ou filme. Hoje, curiosamente, é o livro que
sobrevive aos cd’s de discos e filmes, substituídos por plataformas on-line.
Portanto, o livro resiste, um objecto com séculos. Com séculos talvez se
encontrem alguns exemplares de livros que fazem parte da Biblioteca Municipal
do Porto. Este ano fechou para obras de alargamento, com um projecto de
arquitectura de Eduardo Souto Moura. Prevê-se que reabra daqui a quatro ou
cinco anos. Ora, tendo em conta que é a segunda maior biblioteca portuguesa,
com depósito legal, que só lá se encontram livros e jornais essenciais para
investigações académicas ou pessoais, é de lamentar que não se arranjasse uma
solução em que a biblioteca continuasse a funcionar. Afinal Souto Moura não é
um dos principais arquitectos mundiais?
5, Os prémios literários fazem naturalmente
parte do mundo literário (já o podia dizer o senhor de La Palisse). Há prémios
de dois tipos: os de reconhecimento de uma obra literária, e os que premeiam
inéditos, ou seja, neste caso aspirantes a escritores ou escritores que
procuram publicar uma obra e ter uma distinção. Entre os dois tipos de prémios
há um fosso, com variantes. Mas, na generalidade os prémios literários servem
para homenagear figuras da literatura (Camões, Vergílio Ferreira, Agustina
Bessa-Luís ou mesmo Ernesto Sampaio, no caso português). O Nobel da literatura
foi este ano para a escritora sul-coreana Han Kang, de 53 anos (uma das mais jovens a
receber o Nobel da literatura), o Prémio Camões foi para a poetisa brasileira
Adélia Prado, o Prémio José Saramago (inéditos) foi para Francisco Mota Saraiva
(que em 2023 tinha ganho o prémio literário revelação Agustina Bessa-Luís), o
Vergílio Ferreira (inéditos) para António Garcia Barreto. Enfim, será longa a
lista de premiados com os vários prémios que dão a possibilidade de publicar a
obra a concurso, para além do autor em alguns casos também receber uma
(pequena) importância pecuniária. No entanto, algo surpreende quanto ao prémio
de Melhor Livro de Poesia atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores.
Foi para o poeta Jorge Gomes Miranda (JGM) pelo livro Emoções Artificiais
(2023, Gradiva). Em entrevista de JGM ao jornal Público ficamos a saber que se
trata de um livro sobre a tecnologia, a Inteligência Artificial, a robótica. O
autor, que iniciou a sua actividade como poeta em meados da década de 1990, diz
na referida entrevista, “Esperemos que os robôs do futuro sejam mais humanos do
que certos humanos”. Essa humanização dos robôs pode ser constatada nos poemas
que estão disponíveis on-line. Será um livro tecnofílico, mais surpreendente por ser um livro de poesia que pelo tema abordado, que na ficção científica
vem de longe, de Mary Shelley que em 1818 publicou Frankenstein. Que numa
altura em que a realidade parece ultrapassar a ficção científica, sejamos
acolhedores do que enforma o pós-humano, que não é senão o pior do humano, numa
lógica capitalista, é algo, no mínimo, estranho. Ou ingénuo.
Segue-se,
abaixo, uma lista de livros; uns lidos, outros desejos de leitura.
POESIA
Adília Lopes – Dobra (Assírio & Alvim)
José Carlos Barros – Taludes Instáveis (Dom
Quixote)
Ana Hatherly – Tisanas (Assírio & Alvim,
org. Ana Marques Gastão)
Filipa Leal – Adrenalina (Assírio &
Alvim)
Sebastião da Gama – O Inquieto Verbo do Mar –
Poesia Reunida (Assírio & Alvim)
Marcos Foz – Enublado Dizes (Bestiário)
Nuno Moura – Cantos (Douda Correria)
T. S. Eliot – A Terra Devastada (Assírio
& Alvim, trad. Jorge Vaz de Carvalho)
FICÇÃO
Ana Teresa Pereira – Como Numa História de
William Irish (Relógio d’ Água)
Teresa Veiga – Vermelho Delicado (Tinta da
China)
Stefan Zweig – Amok (Relógio d’ Água)
Knut Hamsun – Fome (Relógio d’ Água)
Thomas Bernhard – Antigos Mestres (comédia)
(Documenta)
Jon Fosse – Uma Brancura Luminosa (Cavalo de
Ferro)
Franz Kafka – Contos,
Parábolas, Fragmentos (Relógio d’ Água)
NÃO-FICÇÃO
AA VV – História Global da Literatura
Portuguesa (Temas e Debates)
AA VV – O Que Lêem os Escritores (Tinta da
China)
AA VV – Adília Lopes: do Privado ao Político
(Documenta)
Yuval Noah Harari – Nexus (Elsinore)
Maurice Nadeau – História do Surrealismo
(Assírio & Alvim)
Wenceslau de Moraes – Paisagens da China e do
Japão (Livros de Bordo)
António Marques – Paz (Edições 70)
Peter Singer – Libertação Animal, Hoje
(Edições 70)
João Barrento – Os Infinitos Modos da Palavra – Caminhos e metamorfoses da poesia portuguesa contemporânea (Companhia das Ilhas)
sábado, novembro 30, 2024
A democracia na América de Trump e Elon Musk
1, De uma moeda lançada ao ar, ou saí cara ou
coroa. Das eleições presidenciais norte americanas, disputadas no passado dia 5
entre Kamala Harris (partido Democrata) e Donald Trump (partido Republicano),
ganhou Donald Trump, o candidato que foi presidente dos EUA entre 2016 e 2020.
A vitória de Trump voltou a soar quase como um escândalo entre os milhares de
jornalistas de países ocidentais que foram, insones, em gesto de vassalagem,
cobrir o acontecimento na madrugada do dia 5 para 6. Trump é um perigo para o mundo?
Sim, em determinadas matérias como as alterações climáticas é, de facto, um
perigo, porque faz parte da “vanguarda” de extrema-direita negacionista que
parece querer exterminar as democracias representativas liberais.
2, É longa no tempo a vassalagem da Europa em relação aos EUA. É certo que os Estados Unidos ajudaram a Europa a livrar-se do nazismo, durante a II Guerra Mundial. Mas os mesmos EUA lançaram duas bombas nucleares sobre Hiroxima e Nagasáqui. Não bastou lançarem uma bomba sobre Hiroxima, que terá morto cerca de 70 mil pessoas, para os americanos mostrarem ao mundo e ao Japão que detinham a arma mais mortífera que alguma vez existiu na história da Humanidade. Era necessário mais uma? Leo Szilard, um dos cientistas que esteve ligado ao desenvolvimento da bomba atómica afirmou: “Se tivessem sido os alemães a lançar bombas atómicas sobre [as] cidades ao invés de nós, teríamos considerado esse lançamento como um crime de guerra, e sentenciado à morte e enforcado os alemães considerados culpados desse crime no Tribunal de Nuremberg.” As duas bombas nucleares lançadas pelos EUA, que levaram à rendição do Japão e ao fim da II Guerra Mundial, mostram a cultura beligerante Norte-Americana, que permaneceu durante a chamada guerra fria. Intervenções na América Latina, promovendo regimes fascistas ou de extrema-direita, como o de Pinochet; intervenção directa na Asia, com a participação na guerra do Vietname, etc. E, não esquecer, já este século, a invasão do Iraque cujos motivos foram forjados pelo presidente George W. Bush, e que até tiveram a “bênção” do primeiro-ministro português da altura, Durão Barroso.
3, Afinal os EUA são o país dos westerns, dos
cowboys nos seus duelos com revolveres, algo que o cinema de Hollywood retratou
e mitificou, e com que várias gerações de europeus cresceram. Os EUA são o
Império, como outrora na Roma imperial foram os romanos que andaram por várias
regiões da Europa. Daí que quando o PCP chama imperialistas aos Estados Unidos acerte,
ao contrário de outras posições de política externa deste partido centenário. O
imperialismo, a dependência da Europa face aos EUA é total: na cultura –
principalmente na cultura de massas –, na economia, na tecnologia (as grandes
empresas de Silicon Valley), na investigação de ponta nas mais variadas áreas,
na forma como manobram a política externa dos países que são seus aliados
(evidentemente que a China e a Rússia estão do outro lado, numa espécie de nova
guerra fria), no apoio que dão a Israel para levar a cabo um genocídio sobre os
palestinianos da Faixa de Gaza. Sem dúvida que por isto e muito mais os EUA têm
um passado – e presente – negro na História. Mas nada disso impede essa
vassalagem pelo chamado “sonho americano” ou “american way of life”.
4, Mas a 5 de Novembro, os americanos
voltaram a eleger Donald Trump como presidente dos EUA. Trump, o palhaço e a
sua troupe. Alguns nomes desta troupe, desta nova administração, já são
conhecidos. Linda McMahon, uma empresária de wrestling (luta livre), é apontada
para secretária da Educação, o equivalente ao ministro da educação em Portugal.
A escolha de Trump pode – e é – estupida, mas tem o seu sentido. A escola é um
lugar de violência. A escola “antiga”, onde o professor exercia e violência da
palmatória (entre outras), até à escola mais ou menos actual onde os alunos
exercem violência uns sobre os outros, e por vezes, mesmo sobre os professores.
Ora, como anedota nada melhor que uma magnata do wrestling para dirigir a
educação nos EUA.
5, Mas o grande apoio de Trump veio de um dos
homens mais ricos e influentes do mundo: Elon Musk. Musk é dono da Tesla (que
fabrica automóveis), da Space X (uma espécie de NASA, cuja ambição maior será
ir a Marte), comprou o Twitter e rebaptizou-o de X, a rede social onde estão
(quase) todos os políticos do mundo e jornalistas, para além de muita gente
anónima. É ainda dono da tenebrosa Starlink, uma empresa que pretende criar um
implante cerebral para conectar pessoas e computadores, e entre outras
empresas, esteve na fundação da OpenAI, a criadora do Chat GPT. Tudo isto faz
dele o segundo homem mais rico do mundo com cerca de 200 billiões de dólares
(para fazer uma ideia deste número astronómico, o PIB de Portugal era em 2023
de 287 biliões de doláres e o de Marrocos de 141 biliões). Ora dinheiro é
poder, e poder é muitas vezes dinheiro. Trump vai nomear Elon Musk para o cargo
de chefia de um grupo de “eficiência governamental”. Trump e Musk, juntos, são
a maior ameaça ao mundo. No mandato anterior Trump era um palhaço rico
solitário, mas agora é Elon Musk que muito mais que Trump constituiu uma
ameaça: pela primeira vez o homem mais rico de Silicon Valley entra na casa
branca, e com ele as suas ideias algo tenebrosas. A aliança entre o poder
político e o poder económico, ou mais concretamente o poder do olimpo de
Silicon Valley, que representa por si só um novo e outro poder, que anda
connosco nos nossos bolsos, plasmado neste caso na figura de Elon Musk, o
proprietário do X, representa um exponenciar do poder que pode abafar o poder
político tal como o conhecemos: baseado numa constituição, em separação de
poderes, eleições livres, etc. Ou seja, a imperfeita mas na falta de melhor,
democracia representativa. E, nos EUA, a velha democracia nunca esteve tão em
perigo.
quinta-feira, outubro 31, 2024
Eduardo Prado Coelho: o último intelectual
Eduardo Prado Coelho (EPC) foi,
principalmente nos anos 1980 e 1990 e ainda no início deste século, o
intelectual por excelência. Sendo também professor universitário, não era, no
entanto, um académico fechado na produção de papers para os seus pares.
O seu mundo era muito mais cosmopolita que o mundo por vezes fechado e
compartimentado da universidade. Era um mundo de vastos interesses: da
literatura (contemplando a poesia, o romance, o ensaio), da política (sobre a
qual fez análise, mas também participou através da escrita, da militância e de
cargos que ocupou), do cinema ou das ciências da comunicação – área onde
leccionou, mas também da polémica que por vezes alimentava, outras extinguia. Era,
essencialmente, um ensaísta que encontrou nas páginas do jornal Público, durante
17 anos, um lugar de prazer para si e para os seus leitores. Porque EPC foi o
que se pode considerar como o último intelectual (português): pelas temáticas
que abordava, pela forma como se tornou numa autoridade que tanto falava com
espantosa à-vontade sobre a poesia de determinado autor, como deslizava para um
comentário político, ou contava uma história passada com a sua amiga Marguerite
Duras. Em quase todas as suas intervenções, escritas ou orais (várias vezes era
requisitado para falar de algo na televisão), acrescentava algo de novo. A sua
crónica semanal – e também a diária –, no suplemento cultural do jornal Público
acabou por se tornar única numa altura em que os jornais portugueses já não
tinham suplementos literários que convocassem essa figura do intelectual para
as suas páginas, como aconteceu noutras alturas com jornais como O Comércio do
Porto ou O Primeiro de Janeiro (meados do século XX, para referir apenas dois
jornais da cidade do Porto).
Filho do também professor universitário e
ensaísta Jacinto Prado Coelho, Eduardo nasce em Lisboa em 1944. Em 1967 já o
podemos encontrar a escrever recensões no Diário de Lisboa, e nesse ano
organiza uma antologia de textos teóricos sobre o estruturalismo. O primeiro
livro escrito pelo seu punho, O Reino Flutuante, é publicado em 1972.
Durante o PREC filia-se no Partido Comunista, e publica o livro Hipóteses de
Abril (1975); colabora com a RTP onde é autor de vários programas. Em 1982
publica a sua tese de doutoramento, Os Universos da Crítica, uma
aplicação do conceito de paradigma de Thomas Kuhan aos estudos literários, e um
ano mais tarde saí um livro sobre o cinema português: Vinte Anos de Cinema
Português:1962-1982. Embora afirme, numa entrevista à RTP, em 2004, que
gostaria de ter tempo para escrever romances, a sua incursão mais funda como
criador literário será o diário que escreveu aquando da sua residência em Paris
como adido cultural da embaixada portuguesa, Tudo o Que Não Escrevi
(1992, 2 volumes).
Apesar de em 2004 ter publicado cinco livros
– entre os quais uma antologia das crónicas que publicou quase diariamente no
Público (Crónicas no Fio do Horizonte) – a obra de EPC tem vindo a ser
publicada pela Imprensa Nacional desde 2010. Sob a organização de Margarida
Lages, foram até 2023 publicados cinco volumes da Biblioteca Eduardo Prado
Coelho. Desses cinco volumes, dois são reedições das obras: A Mecânica dos
Fluídos (1984/2012) e Os Universos da Crítica (1982/2015); um outro
– A Poesia Ensina a Cair (2010) – estava já preparado por EPC, antes
deste falecer em 2007. Os dois volumes que podemos considerar organizados por
Margarida Lages são Crónicas – Política e Cultura (2019) e Jogos
Infinitos – Ensaio e Crítica (2023). É sobre este último volume que
aqui escrevo algumas notas de leitura.
Importa, sobretudo para o leitor que não leu
E. Prado Coelho, citar o autor na sua introdução a A Poesia Ensina a Cair:
“Embora traga o meu nome associado ao estruturalismo, não tive nunca uma
abordagem secamente estrutural. Sempre me deixei afectar por uma linguagem que
não chegava a ser poema – por incapacidade minha –, mas que se instituía como
crítica em que a poesia estava sempre presente.” Ora, esta citação resume bem o
estilo de Prado Coelho: uma linguagem que vai do poético à teoria. É essa
linguagem poética que permite seduzir o leitor, limpar a aridez da teoria. Pois
por estes Jogos Infinitos – título e texto desde logo poético – passam
nomes da filosofia, das ciências sociais e da literatura: José Miguel Silva,
Filomena Silvado, Maria Filomena Molder, Blanchot, Deleuze, Derrida, Foucault,
Silvina Rodrigues Lopes, Bernard Stiegler, Guy Debord, Kant, Agamben, Isabel
Allegro Magalhães, Nietzsche, Vergílio Ferreira, João Barrento ou Sartre, entre
outros. No final do livro existe um índice onomástico de cinco páginas. Ou
temas como a crítica entre a ética e a estética, o jogo, a modernidade e a pós-modernidade,
a fotografia, a “sociedade do espectáculo”, a técnica, Portugal, a tradução, a
dor ou um ensaio, “situações de infinito” – cujo título será aproveitado para
um outro livro –, que parte de uma frase de Vergílio Ferreira, “Da minha língua
vê-se o mar”, para construir uma série de variações.
A organização de uma obra como a de Eduardo
Prado Coelho pode ser uma tarefa quase ciclópica (o mesmo acontecendo com a de
Eduardo Lourenço, que tem vindo a ser publicada pela Fundação Gulbenkian). No
entanto, não se percebe que critérios presidem a essa organização e publicação.
EPC escreveu centenas de crónicas no Público; escreveu mais de duas dezenas de
livros, terá artigos publicados noutros jornais, em prefácios, em revistas
académicas, etc. O critério da Biblioteca Eduardo Prado Coelho parece ser antológico
– quer quanto aos textos quer quanto aos livros a reeditar. Mas será mesmo?
Haverá um critério?
A
organização de Margarida Lages peca por alguns erros um pouco irritantes: na
introdução escreve a organizadora que “(…) os textos se encontram na sua
maioria publicados no jornal Público. Quando tal não acontece, a referência
encontra-se no final de cada crónica ou artigo” (p. 8). Ora, não existe nenhuma
indicação no final de textos que não foram publicados no Público. Também os
textos não se encontram datados; as “notas de rodapé”, por vezes são escassas,
outras vezes estão a mais. Ainda uma referência para a bibliografia que
Margarida Lages decidiu incluir no final do volume e que não faz qualquer
sentido, a não ser o querer uma legitimidade académica para uma obra que nada
deve à academia, antes pelo contrário.
segunda-feira, setembro 30, 2024
Os fugitivos
1, Sábado, 7 de setembro, de manhã,
Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus. Cinco reclusos, 4 dos quais tidos
como os mais perigosos desta prisão de alta segurança, fogem com a ajuda de
duas escadas e três elementos que se encontravam no exterior. Fuga mediática –
um dos fugitivos, um argentino, foi condenado no seu país por rapto e possível
homicídio; fuga possibilitada pela inépcia dos guardas prisionais.
2, A partir deste facto temos várias
abordagens que vão da político-sindical sobre o estatuto dos guardas prisionais
às teorias de Foucault e Deleuze sobre as “sociedades disciplinares” (Foucault)
e as “sociedades de controle” (Deleuze), ou ao questionamento das prisões como
forma de a sociedade punir aqueles que fogem às suas regras (mais uma vez
Foucault, principalmente em Vigiar e Punir, mas também Angela Davis), ou,
ainda, um campo ficcional onde aparecem filmes e séries como Bonnie e Clyde
(1967, realização de Arthur Penn) ou a série Prison Break (2005), ou na
literatura, Jean Genet – o escritor criminoso, “a criança criminosa” –, ou um
conto de Elisabeth Bishop (Prisão), ou um poema de Oscar Wilde…
3, O ex-ministro da cultura e de novo
comentador político, Pedro Adão e Silva, escrevia a 10 de Setembro no Público,
que “temos presos a mais e não guardas a menos”. E adiantava números: “entre os
47 países do Conselho da Europa, temos o valor mais elevado para a duração
média de penas de prisão, com uns notáveis 30 meses (a média é de 12)”. Na
verdade, se formos ver o que se tem passado nos últimos anos, o que encontramos
é um excesso da aplicação da prisão preventiva. Como se fosse uma vingança por
parte dos juízes por Portugal ter um dos códigos penais mais leves, pelo menos
no que respeita ao limite de penas – 25 anos. Ora, para além destes números
estatísticos, importa saber em que condições os presos cumprem a privação da
liberdade nas prisões portuguesas. Porque nem sequer todos os condenados são
culpados. Na edição em que o jornal Público noticiava a fuga dos cinco reclusos
de Vale de Judeus, apresentava também uma grande reportagem com Diana Ríos
Rengifo, uma indígena peruana que tem lutado pela preservação da Amazónia. Mas
a sua luta foi interrompida em Portugal, quando foi encontrada na sua bagagem
cocaína. Com uma criança de pouco meses, Diana passeia-se por uma ala da prisão
de Santa Cruz do Bispo, onde estão outras mulheres e outras crianças. Não é o
facto de ter sido mãe ou o de ter sido uma activista pela preservação da
Amazónia que a tornam inocente do tráfico de droga, mas pelo documentário de 20
minutos realizado pelo Público, tudo leva a crer que Diana Ríos Rengifo é uma
vítima, que não sabia nem tinha intenção de fazer tráfico de droga. A
despenalização do consumo de estupefacientes, veio, de forma completamente
justa, retirar muita gente das cadeias.
4, Residirá nestes fugitivos uma semente de
mal, sobretudo no argentino? Talvez, mas essa questão levar-nos-ia para a
complexa questão do mal. Mas o que se poderá dizer sobre a população que ocupa
as 49 cadeias portuguesas? Vidas precárias? Vidas interrompidas? Vidas
encerradas num labirinto – por vezes de desespero? O filósofo Giorgio Agamben
recuperou a figura do direito romano arcaico do Homo Saccer, aquele que pode
ser morto sem que o assassino seja castigado. É isso que também se passa nas
prisões, quer por parte da falta de cuidado de guardas e outros funcionários
para com os presos, quer por parte dos presos entre si. As prisões são o local
por excelência do crime. Repare-se: se juntarmos um alargado grupo de homens
(ou mulheres, embora a população prisional portuguesa seja maioritariamente
feminina), onde está desde o incriminado, embora na realidade inocente; o preso
preventivo; o preso homicida com personalidade violenta; o preso por corrupção
ou de “colarinho branco”, etc, temos um caldo de violência. Essa violência
também existe no outro lado, nos guardas prisionais e demais pessoal que faz
parte da prisão como instituição. Na verdade, o mundo carcerário é um mundo do
qual a sociedade, e sobretudo o poder político (tanto à direita como à
esquerda), nada quer saber. Não importa que um preso mate outro, que por falta
de cuidados médicos um preso venha a morrer, que um preso se suicide numa
prisão onde talvez não exista um psicólogo. Nada disto importa, embora a
filosofia em Portugal seja, ao contrário da dos Estados Unidos, de reinserção
social da pessoa presa depois desta cumprir a pena – existe mesmo um Instituto
de Reinserção Social.
5, Mas, na manhã daquele 7 de Setembro de
2024, os alarmes tocaram – na prisão de Vale de Judeus e pouco depois nas
televisões. A fuga de presos de um Estabelecimento Prisional é algo que
desencadeia todo um espectáculo – raro, por isso mesmo mais precioso. O
director da Polícia Judiciária, tão solicito como um James Bond à portuguesa,
veio logo dar uma conferência de Imprensa onde apresentou os rostos dos
fugitivos, desfigurados por uma desumanidade que os pretendia colocar no lugar
do monstro, e realçou que os fugitivos eram bastante perigosos. Repare-se e
repita-se: perigosos, perigosos, perigosos… porque nunca é de mais realçar que
andam cinco perigosos fugitivos a monte. Assim se faz a “instalação do medo”
(título certeiro de um livro de Rui Zink). Fechem as janelas, tranquem bem as
portas, mantenham-se em casa.
6, Mas existe uma questão real sobre as
prisões. Michel Foucault, nos anos 1970 com o seu livro Vigiar e Punir –
Nascimento das Prisões (ed. portuguesa Edições 70), também por essa altura
com um activismo político sobre as prisões tornou a prisão um lugar a ser
pensado pelas ciências humanas (pelo menos). Também a activista e filósofa
Angela Davis, a partir de uma perspectiva da luta pelo direito dos negros nos
Estados Unidos (onde a maioria da população prisional é negra), mas também de
uma luta contra o capitalismo, tem questionado as prisões. O seu livro As Prisões Estão Obsoletas? (editado
originalmente em 2003, com edição portuguesa da editora Antígona em 2022)
coloca questões radicais. A fuga de Vale de Judeus teve pelo menos o mérito de
colocar os holofotes sobre uma prisão e o universo prisional em Portugal. Daí a
revelar a realidade desse universo vão alguns passos. Mas o questionar, para
que servem as prisões? ou, como o título do livro de Angela Davis faz de modo
talvez mais certeiro, As Prisões Estão Obsoletas?, é já algo de outra ordem, mais
difícil de alcançar – porque implica pensar, sair de certezas pré-determinadas
de uma cultura. Isso não obsta a que exista já um movimento anti-carcerário.
Ao cimo imagem divulgada pela GNR, com a cara dos 5 fugitivos.
sábado, agosto 31, 2024
Rui Manuel Amaral
Um passarinho malicioso
Lazaros Leumorfis tinha o hábito de segurar a
cabeça com as mãos porque acreditava que a qualquer momento esta podia
desprender-se do pescoço e cair ao chão. Por isso, nunca se distraia da sua
importante tarefa, segurando a cabeça com o maior zelo de que era capaz.
Mas fosse porque algum passarinho malicioso
lhe soprava qualquer coisa ao ouvido, fosse por outro motivo que não procurei
determinar, o certo é que houve um momento em que Lazaros se distraiu e largou
a cabeça. Esta caiu instantaneamente ao chão, saltou duas ou três vezes com a
elasticidade de uma bola de borracha, e rolou rua abaixo e em contramão, rumo à
Place Dauphine, que brilhava lá ao longe.
Em que estado de espírito se encontrou
Lazaros depois deste infeliz acontecimento, é algo que não nos atrevemos a
imaginar. Diremos apenas que não se poupou a esforços para recuperar a cabeça,
procurando-a por toda a parte, durante dias a fio. E de bom grado teria
continuado a procurá-la se entretanto vários assuntos de maior importância o
não tivessem chamado a outro lado.
In Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010, pp. 17-18
terça-feira, julho 30, 2024
A POLÍTICA NA AMÉRICA
domingo, junho 30, 2024
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