O CRÍTICO LITERÁRIO VAI DE FÉRIAS À PROVINCIA
O CRÍTICO LITERÁRIO VAI DE FÉRIAS À PROVINCIA
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Anónimo entre tantos, tão diferentes, tão
iguais, apareceste, suponho, sem o quereres na película. Rosto jovem,
precocemente envelhecido, lábios roxos de sangue sufocado nas artérias, defendias
a revolução com o ardor de quem por tão fundo acreditar, mais fundo havia já
perdido. Camisa aberta, gestos largos, mãos nervosas sempre a acender outro
cigarro, olhar límpido a idear outro futuro, eras a imagem da derrota e não
sabias. Todavia, repetias em cada frase da tua retórica revolucionária. Todavia,
reafirmavas, contra cada sombra que avançava, o sol que em ti era verdade, a
luz que haveria que vencer por mais que a marcha dos homens a esmagasse. Todavia,
camarada, que bem podias ser eu a gritar a céus inúteis, tudo estava condenado
desde o começo, nem tu nem eu o podíamos evitar. Todavia, camarada, esta a
natureza humana que nem deus nem homens podem alterar. Mas não te esqueças, por
pouco que durasse tivemos a nossa Torre Bela, erguemo-la com os braços da nossa
crença plena, vimo-la ruir sob o peso dos gestos tão humanos. Não me olhes com
esse desalento, Torre Bela que foi no pensamento, somente nele poderá
sobreviver. Tinha de ruir, põem isso na cabeça, mas foi nosso cada gesto
obstinado de a erguer. E nada foi em vão, camarada. Foi precisa a tua força. Foi
precisa a força de cada um de nós. Até dos que, como eu, só viriam a vivê-lo
uma década mais tarde. Até dos que não nasceram e nessa luta e nessa força se
hão-de reconhecer. E mesmo derrocada, a Torre Bela apenas ruiu na circunstância
que a sustentava. E das ruínas há-de erguer-se uma vez mais, muitas vezes mais
ainda, para outras tantas derrocar indiferente ao nosso empenho. Assim é,
camarada, esta a vida e a sua beleza difícil de entender. Não cismes, o que
podia ter sido é uma porta fechada, mas o caminho segue para lá dos nossos
passos. Aceita-te no rosto de quanto lutaste e falhaste. Aceita que morres e
não é o fim. Então sorri a tua vida derrotada e cumprida.
Jorge Roque, “Evocação e epitáfio”, in País
Rato, ed. Maldoror, 2023, pp. 34-35
1, Com excepção de algumas democracias
representativas, como foi a mexicana, é natural, e tem sido assim na democracia
representativa portuguesa, uma certa “alternância democrática”. Em qualquer
cenário, os mais de oito anos de governo socialista, liderados por António
Costa, e interrompidos por uma frágil suspeita do Ministério Público, levarão,
quase com toda a certeza – e as sondagens confirmam-no – a que das eleições
legislativas de 10 de Março saia um governo de direita liderado pela AD.
Simplesmente, no ano em que um pouco por todo o mundo vamos ter eleições, não
vivemos uma situação normal da chamada “alternância democrática”. Vivemos, em
Portugal e muitos outros países, um crescendo de partidos da extrema-direita, também
chamados populistas, que põe em causa, já nalguns países, a própria democracia.
Se a Itália já é governada por uma coligação de direita/extrama-direita,
liderada por Georgia Meloni e o seu partido Frateli di Italia, um dos herdeiros
programáticos do fascismo de Mussolini; se a Argentina, onde o peronismo tem
governado, elegeu um louco que está a
transformar um país com cerca de 40% de pobres, que beneficiavam do apoio
estatal, num regime totalmente liberal, entregue ao sector privado; se em
Espanha o Vox espreita à sombra de Franco; se em França Macron vira à direita
para evitar que Marine Le Pen ganhe as próximas presidenciais… se… se… enfim,
um pouco por todo o mundo o populismo espreita. Portugal não é excepção com o
Chega.
2, O Chega cresceu, mas é ainda hoje, um
partido quase unipessoal de André Ventura. Ventura, um escritor frustado e
professor universitário de direito, foi militante do PSD, comentador desportivo
numa televisão, o que lhe deu projecção mediática. Em 2017 foi candidato à
Câmara de Loures, pelo PSD, perdendo para Bernardino Soares do PCP. Por essa
altura, faz afirmações contra a comunidade cigana, numa entrevista ao agora
comentador político Sebastião Bugalho, para o jornal i, onde também defende a
prisão perpétua e a castração química para pedófilos. Até o aparecimento de
Ventura, a extrema-direita portuguesa era representada pelo PNR de José Pinto
Coelho, um pequeno partido sem expressão eleitoral, claramente fascista, que
nas últimas eleições se rebaptizou de Ergue-te. Ventura, como outros
populistas, fala “dos portugueses de bem”, expressão que abre uma divisão na
sociedade. E entre os portugueses que não são de bem, estão os chamados
“subsídio-dependentes”. O Chega pretende acabar com o RSI, implementado durante
um dos governos Guterres. Mas é, paradoxalmente, a algum eleitorado de
esquerda, incluindo do PCP, que o Chega terá ido buscar alguns dos seus
eleitores nas últimas eleições.
3, 50 anos depois do 25 de Abril, não só as
sondagens dão uma maioria parlamentar de direita, com um forte contributo da
subida do Chega, como entre os pequenos partidos aparecem formações de direita
ou extrema-direita, e apenas um partido – histórico – de extrema-esquerda, o
PCTP-MRPP. A confirmarem-se os resultados que têm vindo a ser apresentados
pelas empresas de sondagens, teremos um parlamento onde a direita será
maioritária, e só uma vitória do PS, certamente já não com maioria absoluta,
poderá, pelo menos durante algum tempo, impedir a direita, ou direita com
extrema-direita, de governar.
4, Na passada segunda-feira, 26, a “aparição”
de Passos Coelho, veio introduzir outros elementos nesta campanha, a ponto de
se falar em um antes e um depois do discurso de Passos em Faro. Para a direita
Passos Coelho é o messias que salvou Portugal de uma bancarrota criada por José
Sócrates. Para a esquerda, mais realista, Passos Coelho é o primeiro-ministro
que quis ir além das imposições da troika, e que levou a que a esquerda se
unisse, em 2015, para evitar um segundo governo PSD-CDS. A política que Passos
Coelho implementou durante o seu governo, com Paulo Portas como líder do CDS,
foi uma política contra as pessoas, por vezes de humilhação (por exemplo, para
receber o subsídio de desemprego, os desempregados que tinham direito a ele,
tinham que se apresentar na sua Junta de Freguesia de quinze em quinze dias –
como se fossem criminosos a quem um juiz tinha decretado o “termo de identidade
e residência”). A política de Passos Coelho baseou-se num colaboracionismo com
as organizações monetárias, como o FMI,
que impôs cortes no rendimento das pessoas, empobrecendo-as, ao mesmo
tempo que privatizava empresas estratégicas para a vida das pessoas e do país.
O corte do 13º mês e subsídio de férias (que apenas durou um ano porque o
Tribunal Constitucional considerou essa medida inconstitucional), contam-se
entre as medidas mais gravosas, de muitas, que levaram a um extraordinário
aumento do desemprego e à emigração de muitas pessoas, sobretudo jovens.
5, Estamos a menos de dois meses de celebrar
os 50 anos do 25 de Abril, a Revolução dos Cravos como lhe chamam noutros
países. O mundo mudou muito nestes 50 anos – e Portugal também –, a começar
pela queda do muro de Berlim e o fim dos regimes comunistas; das utopias que
floresciam por esses anos 60, 70, e mesmo, ainda 80 do século passado. Vivemos
hoje num mundo digital, governado pelas grandes empresas de Silicon Valley, com
várias ameaças, das alterações climáticas à inteligência artificial. E a
emergência dos populismos de extrema-direita, um pouco como acontecia há 100
anos. Em Portugal a direita nunca foi além do CDS, que embora sendo um dos
partidos fundadores da democracia, fez parte da Assembleia Constituinte eleita
em 1975, e foi o único partido a votar contra a Constituição aprovada em 1976.
Mas agora a extrema-direita chegou ao parlamento, as promessas da AD de não
fazer um acordo parlamentar, ou de governo, com o Chega, são vãs. Cinquenta
anos depois do 25 de Abril, Portugal parece estar condenado a enfrentar uma
contra-revolução liderada pelo extrema-direita. É certo, como já escrevi acima,
que há cerca de 10 anos tivemos um governo que colocou em causa não só os
chamados “valores de Abril”, como os dirigentes do PCP gostam de dizer, mas
sobretudo os valores da social-democracia. Também é certo que certa esquerda,
nos últimos anos, tem abraçado os valores woke, provocando uma fricção social
que leva a que muitas pessoas passem para o lado oposto a esses valores woke.
6, Nas últimas semanas, temos assistido a
situações mais ou menos inéditas, com polícias a vir para a rua manifestar-se,
ainda que à civil. Um jogo de futebol, entre o Famalicão e o Sporting não se
pode realizar porque os polícias destacados para fazer a segurança ao jogo,
apresentaram atestados médicos invocando doença. Na origem dos protestos, para
além das más condições em que vivem alguns polícias, está um subsídio que foi
atribuído aos membros da Polícia Judiciária. O presidente do Sindicato da
Polícia chegou, em entrevista, a ameaçar que as eleições podiam não se realizar
porque são os polícias quem transportam os boletins de voto. A 19 de Fevereiro,
quando se realizou o debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro no teatro
Capitólio, e transmitido em sinal aberto pelos três canais de televisão, uma
manifestação espontânea de polícias esteve à porta do teatro. Também os
militares ameaçam manifestar-se. O semanário Expresso titulava, na sua edição
de 23-02-24, “Militares ameaçam sair à rua se polícias tiverem aumento”. Esta situação faz lembrar a de um país
africano com uma fragilíssima democracia, não é normal num país com uma
democracia de 50 anos. Mas, como já tentei explicar acima, não vivemos tempos
normais. As ameaças de polícias e militares, de qualquer forma, são
inaceitáveis.
(Imagem do blogue Expresso da Linha, https://expressodalinha.blogspot.com/2012/04/luisa-os-cravos-murchos-da-injustica.html )
1, José Sócrates foi detido há dez anos,
quando regressava de Paris. Há sua espera, no aeroporto tinha não só a polícia,
mas também uma equipa de televisão para filmar o “acontecimento”. Depois de ser
ouvido pelo super-juiz Carlos Alexandre, por ordem deste ficou meses em prisão
preventiva. Por essa altura Portugal era governado pela coligação PSD/CDS e
pela troika. Passos Coelho, o primeiro-ministro, fazia a apologia do
empobrecimento, do ir além da troika que controlava a política portuguesa, em
troca dos mais de 70 mil milhões de euros que o BCE, FMI e UE nos tinham
emprestado. Nem o Ministério Público, nem o juiz Carlos Alexandre tinham, nessa
altura, provas contra o líder de dois governos do PS, entre 2005 e 2011.
Falava-se na imprensa, nomeadamente no Correio da Manhã, de uma série de casos
que apontavam para que José Sócrates fosse um corrupto. Por outro lado, a
sociedade portuguesa estava dividida em relação à figura de Sócrates: para uns
ele fora o responsável por Portugal ter chegado à quase bancarrota, mas, ao
mesmo tempo, viviam-se tempos de que não havia memória. O desemprego tinha
chegado aos 17, 18%, o governo de Passos e Portas tinha cortado o subsídio de
férias e Natal, os mais jovens emigravam. António Costa, que tinha substituído
o apagado António José Seguro como Secretário-Geral do PS, criou a frase “à
justiça o que é da justiça, à política o que é da política” – foi um mantra que
repetiu durante quase nove anos. Mário Soares, com 90 anos, que só conhecera as
prisões de Salazar, mostrava-se inconformado à porta da prisão de Évora, onde
estava Sócrates.
2, Foi no início dos anos 1990 que pela
primeira vez, desde o PREC, um político, neste caso ex-político, Costa Freire,
foi detido e julgado. O ex-secretário de Estado da Saúde de Leonor Beleza,
apesar de condenado em 1994, conseguiu, de recurso em recurso, que o seu caso
prescrevesse em 2004. Por essa altura Portugal vivia um outro grande processo
judicial-mediático: o caso Casa Pia, instituição onde durante décadas crianças
tinham sido abusadas sexualmente. Entre os acusados do processo Casa Pia estava
o nome mais sonante da televisão portuguesa: Carlos Cruz. Mas as crianças,
ouvidas pela PJ, também apontaram o jovem deputado do PS Paulo Pedroso.
Pedroso, então uma promessa nas hostes socialistas, ficou 4 meses em prisão
preventiva. Foi depois inocentado, e processou o Estado português, ganhando o
processo. Mas a sua carreira política estava liquidada – é hoje professor
universitário e comentador político na RTP. Por essa altura, correram boatos que
implicavam também Ferro Rodrigues, então líder do PS.
3, Durante os primeiros seis anos dos
governos de António Costa não constam grandes problemas com a justiça, para
além de Sócrates. Mas o governo maioritário, obtido pelas eleições de janeiro
de 2022, foi um desastre de “casos & casinhos”, uns que implicavam a
justiça, outros que apenas implicavam a administração de empresas como
aconteceu com a TAP. Costa sobreviveu politicamente até ao ponto de afrontar o
presidente da República, em maio de 2023, ao não aceitar a demissão do ministro
João Galamba, como o PR pretendia. Marcelo, o comentador-mor transformado em
Presidente da República, chegou a demitir ministros em directo. As relações
entre PM e PR azedaram, mas entre maio e novembro, essa manhã de 7 de novembro
de 2023, em que a polícia irrompeu pela residência oficial do
primeiro-ministro, em que Lucília Gago, a Procuradora- Geral da República,
escreveu um parágrafo assassino onde referia que António Costa era suspeito,
tudo esteve calmo. Mas nesse dia, mesmo ainda não sabendo que a polícia
encontrara 75 mil euros em notas no gabinete do seu assessor, António Costa
apresentou, em directo, para as televisões a sua demissão. O país foi apanhado
de surpresa, Marcelo não aceitou um outro primeiro-ministro que o PS indicou e
marcou eleições para 10 de março. Por essa altura, entre outras coisas,
ficou-se a saber que Galamba foi escutado durante 4 anos.
4. Se é certo que o poder gera corrupção, que
os anos de poder do Partido Socialista ajudaram a criar essa corrupção, não é
menos certo que o MP se tornou num actor político todo-poderoso, capaz de
lançar acções que demitem governos (algo que nunca tinha acontecido na
democracia portuguesa). António Costa não repetiu o seu mantra, “à política o
que é da política, à justiça o que é da justiça”. Porque, na realidade, essa
frase não é verdadeira. Existe separação de poderes, ninguém está acima de
ninguém na alegada cegueira da justiça. Mas o código penal, o código civil, o
código do processo penal, toda a legislação sobre a qual o poder judicial
actua, emana do poder político. À justiça apenas cabe a interpretação dessas
leis. Mas também os meios de que as polícias, o MP, os juízes, dispõem, são
dados pelo poder político. E, pela últimas e espectaculares intervenções da
justiça junto de políticos, o Partido Socialista foi generoso para com a
justiça, em particular para com a Polícia Judiciária.
5, Já depois da demissão do governo, num
período que é já de campanha eleitoral, o MP voltou a atacar. Agora, como que
querendo equilibrar a perseguição ao PS,
o MP atacou Luís Montenegro, o actual líder do PSD. Em causa algo que já
era sabido: a casa que este construiu em Espinho. Esquecido esse assunto, a
semana passada foi a vez de atacar em grande na Madeira. Um avião da Força
Aérea levou140 operacionais da PJ para o Funchal onde fizeram buscas na Câmara
Municipal do Funchal e na residência do presidente do governo regional da
Madeira. Tão espetacular operação, resultou na detenção do presidente da Câmara
do Funchal, Pedro Calado, e na constituição de Miguel Albuquerque como arguido.
Daqui resulta uma incerteza quanto ao futuro político da Madeira: ou a
continuação deste governo com o apoio do PAN, ou a marcação de novas eleições.
6, Em 2017 o juiz Sérgio Moro condenou “Lula”
da Silva a mais de nove anos de prisão, impedindo-o assim de concorrer às
eleições presidenciais que foram ganhas pelo candidato da extra-direita Jair
Bolsonaro. Sérgio Moro viria a fazer parte do governo de Bolsonaro. A justiça,
no Brasil, serviu uma muito má causa política. Em Portugal, a frenética
actividade do Ministério Público parece querer corroer a democracia. Tal como
no Brasil, o partido que parece sair mais beneficiado da suspeita que recaiu
sobre António Costa, é de extrema-direita. Mas, sobretudo, e embora com o
desgaste do PS de António Costa, temos um MP que se arvora no poder de lançar
uma suspeita (apenas isso, nem sequer o constitui arguido) sobre um
primeiro-ministro enfraquecido, sabendo que isso vai despoletar eleições
legislativas. O mesmo é verdadeiro para o caso recente da Madeira. O grande
beneficiário de tudo isto, no fundo da ideia populista de que os políticos são
todos corruptos, é o partido de extrama-direita, manifestando-se contra o
sistema (político), contra a III República saída do 25 de Abril, ganhando
votos, porque, na realidade, como disse Freud, a tarefa de governar é uma das
tarefas impossíveis. Ora, quando essa tarefa exige os melhores de uma sociedade,
a suspeita a priori de que todo o político, qualquer pessoa que exerça um cargo
público é um corrupto, é o código postal para a derrocada de uma difícil
democracia.
1, 2023 foi
o ano em que o Ministério Público (MP) levou à demissão do governo de António
Costa. Depois do ano ter começado com uma série de casos & casinhos que
envolviam membros do governo, o golpe final foi dado em Novembro, quando a
polícia entrou na residência oficial do primeiro-ministro e um comunicado do MP
colocava Costa como suspeito. O primeiro-ministro demitiu-se nesse mesmo dia.
Um mês antes, no Médio Oriente, o Hamas, num ataque terrorista, matava cerca de
mil israelitas e fazia mais de 200 reféns. A resposta do governo de Benjamin
Netanyahu foi uma acção de guerra que até agora fez mais vinte mil mortos
palestinianos, na Faixa de Gaza, a maioria deles civis, e parece avançar com
intenções de extermínio dos palestinianos.
Mas, no
início do ano, algo de novo aparecia no reino da tecnologia em que estamos cada
vez mais imersos: o Chat GPT. Concebido pela empresa OpenAi, o Chat GPT, e os
modelos que lhe seguiram por parte da concorrência, o Chat Bing (Microsoft) e o
Chat Bard (Google), permitem pela primeira vez uma interacção conversacional
com um mecanismo de inteligência Artificial (IA). Embora já estivesse presente
nos dispositivos electrónicos, nomeadamente nos smarphones, embora a
investigação em IA tenha décadas, nunca a IA se apresentou assim perante os
humanos: como um chatbot com o qual é possível “falar” (teclar), a quem é
possível colocar questões, dúvidas ou pedir para criar algo. Tratando-se de um
modelo de linguagem estatístico, o Chat GPT assume uma aura de uma entidade com
uma sabedoria que não tem – ainda. A inteligência artificial apareceu como uma
ameaça, a juntar a outras como a crise climática e as guerras (na Ucrânia e
entre Israel e o Hamas), o que levou, paradoxalmente, alguns dos investigadores
em IA a escreverem uma carta onde pediam uma desaceleração na investigação em
IA. Vive-se assim entre o desejo que a IA resolva os problemas da humanidade, e
o receio que se torne tão ou mais inteligente que os humanos. O certo é que
ainda imberbe, a IA aparece como uma ameaça também ao mundo da criação
literária. A greve dos argumentistas em Hollywood, que durou cerca de cinco
meses, foi causada entre outros factores pela utilização da IA, num claro e
primeiro efeito da IA no mundo da criação literária e artística. Os modelos
como o Chat GPT têm já a capacidade de escreverem histórias infantis que podem
rivalizar com as escritas por escritores humanos. Por altura do aparecimento do
Chat GPT a Amazon foi inundada de livros para a infância. Vivemos, assim, num
certo meio literário, já condicionado pela inteligência artificial. E o
restante mundo editorial (tradutores, revisores, gráficos, etc) poderá ser
afectado pela IA.
Num artigo
publicado no El País, a escritora e activista Naomi Klein acusava a IA de
“grande roubo” a todo o conhecimento humano, tendo o jornal The New York Times
materializado essa opinião ao recentemente processar a Microsoft e a OpenAI por
violação de direitos de autor. O filósofo José Gil, num ensaio publicado no
Público (3-12-23) prevê um cenário distópico: “as obras de arte algoritmizadas
serão saudadas como exemplos singulares de criação e engenho das máquinas
inteligentes. Os romances, as traduções, os objectos de arte, as composições
musicais resplenderão de originalidade inigualável. Produtos de uma enorme
complexidade – nós seremos mais simples e pequenos, pobres e felizes.”
2, De três
importantes escritores e poetas se comemoraram em 2023 o centenário de
nascimento: Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e Natália Correia. Eugénio de
Andrade (1923-2005), foi um dos principais poetas portugueses da segunda metade
do século XX. A sua poesia imbuída de um Eros clássico, principalmente nas
primeiras obras, teve ao longo de décadas uma excelente recepção entre os
leitores. Treze anos depois do seu desaparecimento, importava averiguar o valor
que esta poesia mantém no cânone – universitário, crítico, entre pares e junto
dos leitores. Certo é que neste ano de centenário apenas um livro de Eugénio de
Andrade foi publico – Aquela Nuvem e Outras (Porto Editora), um livro para
crianças. Embora a Assírio & Alvim tenha vindo desde 2012 a publicar
individualmente cada um dos livros de Eugénio de Andrade, e já tenha em 2017
publicado a poesia reunida do poeta que nasceu no Fundão e viveu no Porto, e em
2022 a prosa reunida, pouco se notou, a nível de iniciativas, o centenário do
autor de As Mãos e os Frutos. Quer isto dizer que Eugénio de Andrade caiu num
certo esquecimento, ou talvez num desgaste.
Num sentido
contrário podemos falar da obra poética, e não só, de Mário Cesariny. O nome de
Cesariny liga-se umbilicalmente ao surrealismo português (juntamente com
Alexandre O`Neill e António Maria Lisboa, mas também Mário-Henrique Leiria ou
Manuel de Lima), de que foi o criador e teórico (veja-se Textos de Afirmação e
de Combate do Movimento Surrealista). Mas a sua poesia maior pode ser resumida
a quatro ou cinco poemas que estarão entre os melhores poemas da lírica
portuguesa. Mário Cesariny praticou a insubmissão como forma de vida. E essa
atitude terá levado a um propositado esquecimento da sua obra que foi
recuperada no final da sua vida e nos últimos anos. Daí que ao Cesariny poeta
se tenha recuperado o Cesariny artista plástico. A edição da antologia Poesia
de Mário Cesariny, e do projecto datado de 1977 de uma heterodoxa antologia de
poesia, cujo título Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (ambas organizadas
por Fernando Cabral Martins para a Assírio & Alvim) é já em si sintomático
da rebeldia de Cesariny, mas também do acolhimento que a sua obra tem tido.
No caso de Natália Correia, não podemos falar apenas de uma escritora e poeta. É, para além disso, a sua biografia que a vai impor como uma figura pública: deputada à Assembleia da República pelo PSD e depois pelo PRD, mas também pelo programa televisivo Mátria, que Natália Correia se torna conhecida do grande público, já depois do 25 de Abril. Mas, num outro círculo, mais restrito, Natália Correia vai afirmar-se, ainda durante o Estado Novo, como anfitriã e dona de um bar em Lisboa – o Botequim – que procurava ser um espaço de liberdade dentro da ditadura. Na sua actividade de escrita foi romancista, dramaturga, poeta, ensaísta, diarista, organizadora de antologias. Uma dessas antologias, Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965, primeira edição) valeu-lhe uma condenação de três anos com pena suspensa; foi ainda processada por ser a responsável editorial do livro Novas Cartas Portuguesas (1973). A sua escrita andou pelos caminhos do surrealismo, e com Mário Cesariny partilhou além da rebeldia e insubmissão, a amizade e admiração.
3, No que
respeita aos livros publicados em 2023, apresento uma lista abaixo, que é uma
selecção, lacunar, do que foi publicado. A maior parte recebeu alguma atenção
por parte da escassa crítica literária ainda existente (Expresso, Público, JL,
pouco mais), outros livros foram ignorados por essa mesma crítica.
Da lista saliente-se,
na poesia, uma nova edição da Poesia de Luiza Neto Jorge, revista e aumentada,
que vai buscar poemas que a poeta não integrou na reunião da sua poesia em Os
Sítios Sitiados (1973), mas estavam em outros livros anteriores; a edição pela
primeira vez em português de um autor italo-argentino, Antonio Porchia, mestre
no aforismo de forte tonalidade poética, ou no poema disfarçado de aforismo,
que foi publicando ao longo dos anos na suas Vozes (Voces). A publicação da
obra completa de um poeta mais conhecido como letrista de fados, Pedro Homem de
Mello; e também das obras completas de dois autores muito distantes entre si,
não só no tempo: o clássico Horácio, e o recente Roberto Bolaño. Ainda obras
completas, ou completas até à data: Rita Taborda Duarte, Helga Moreira, Maria
da Graça Varella Cid e Ernesto Sampaio, de quem a Maldoror e Língua Morta
reuniram em cerca de 400 páginas os poemas e textos em prosa.
Na ficção,
no ano que o Nobel da literatura foi para o romancista e dramaturgo norueguês
Jon Fosse, os autores portugueses mais conceituados pouco ou nada publicaram
(com excepção de Gonçalo M. Tavares, sempre prolifico). Destaque-se o trabalho
editorial da E-Primatur que este ano publicou a tradução na integra de Gargântua
& Pantagruel de François Rabelais.
No ensaio,
destaque-se a reunião da obra ensaística sobre poesia de Joaquim Manuel Magalhães,
num grosso volume de quase 1200 páginas, que colige os seus três livros de
ensaios e acrescenta inéditos – pelo menos em livro –, assinado com o pseudónimo,
ou heterónimo, de António Maria António Pedro. Joaquim Manuel Magalhães é sem
dúvida um dos mais lúcidos leitores da poesia portuguesa, e não só. Ainda no
ensaio sobre literatura Joana Matos Frias publicou Oscilações (Documenta) e
Joana Emídio Marques Notícias do Bloqueio (Língua Morta). A Relógio d` Água
publicou mais um ensaio do filósofo Byung Chul Han, desta vez sobre A Vida Contemplativa,
mas nesta editora também se publicaram os Ensaios de Robert Musil, e um livro
que denúncia os mecanismos tecnológicos de vigilância da ditadura chinesa:
Estado de Vigilância de Josh Chin e Liza Lin. Também na linha da crítica das novas
tecnologias ao serviço do poder, de Jonathan Crary a Antígona traduziu Terra
Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista. E, entre muitos outros
livros destaque ainda para um clássico do pensamento anarquista, Que é a
Propriedade? de Proudhon nas Edições 70.
POESIA
Mário
Cesariny – Antologia (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)
Mário Cesariny
– Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (Assírio & Alvim, org. Fernando
Cabral Martins)
António
Porchia – Vozes (Língua Morta, trad. Nuno Azevedo)
Luiza Neto
Jorge – Poesia (ed. Revista e aumentada por Fernando Cabral Martins e Manuele
Masini, Assírio & Alvim)
Adília Lopes
– Choupos (Assírio & Alvim)
Pedro Homem
de Mello – Poemas 1934-1961 (Assírio & Alvim, ed. Luís Manuel Gaspar)
Horácio –
Poesia Completa (Quetzal, trad. Frederico Lourenço)
Roberto
Bolaño – Poesia Completa (Quetzal, trad. Carlos Vaz Marquez)
Rosa Maria
Martelo – Desenhar no Escuro (Averno)
Margarida
Vale de Gato – Mulher ao Mar e Corsárias (Mariposa Azual)
Helga
Moreira – A Arte de Perder (Tinta da China)
Amadeu
Baptista – Danos Patrimoniais. Antologia pessoal 1982-2022 (Afrontamento)
Alberto Pimenta – They` II Never Be the Same (Edições Saguão)
Cesare
Pavese – Trabalhar Cansa (Penguin Clássicos, trad. Vasco Gato)
Fernando
Guerreiro – Metal de Fusão (Black Sun Editores / 100 Cabeças)
José Amaro
Dionisio, Helder Moura Pereira. Fátima Maldonado, F. Cabral Martins –
Imperfeição (não) edições
Rita Taborda
Duarte – Não Desfazendo (Imprensa Nacional)
Ernesto
Sampaio – Luz Central (Maldoror/Língua Morta)
Maria
da Graça Varella Cid – Poesia Incompleta (Tigre de Papel)
FICÇÃO
François
Rabelais – Gargântua & Pantagruel (E- Primatur)
Gustave
Flaubert – A Tentação de Santo Antão (Minotauro)
William S.
Burroughs – Almoço Nu (Minotauro)
Rui Nunes –
Neve, Cão e Lava (Relógio D` Água)
Gonçalo M.
Tavares – As Botas de Mussolini (Relógio d` Água)
Gonçalo M.
Tavares – Breves Notas sobre o Oriente (Relógio d` Água)
Joseph
Conrad – Plantador de Malata (Sistema Solar)
Hélia
Correia – Certas Raízes (Relógio D` Água)
Horace
Walpole – Contos Hieroglíficos (Antígona)
Monteiro
Lobato – Reinações de Narizinho (Tinta da China)
NÃO – FICÇÃO
Joaquim
Manuel Magalhães – Poesia Portuguesa Contemporânea (Bestiário)
Byung
Chul Han –
Vida Contemplativa (Relógio d´Água)
Jonathan
Crary – Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista (Antígona)
Joana Matos
Frias – Oscilações (Ducumenta)
Josh
Chin e Liza Lin – Estado de Vigilância (Relógio d´Água)
Robert Musil
– Ensaios (Relógio d´ Água)
Joana Emídio
Marques – Notícias do Bloqueio (Língua Morta)
Salvador
Dali – Diário de um Génio (Sr. Teste)
Ian F.
Svenonius – Contra a Palavra Escrita (Chili com carne)
Maria
Filomena Mónica – Os Livros da Minha Vida (Relógio d´Água)
António
Castro Caeiro – O que é a Filosofia? (Tinta da China)
João
Barrento – Aparas dos Dias (Companhia das Ilhas)
Furio Jesi - Cultura de Direita (Edições 70)
Simon Sebag
Montefiore – Mundo (Crítica)
António
Vieira – Entrevista (Companhia das Ilhas)
Diogo Ramada
Curto – Um País em Bicos de Pés (Edições 70)
José Gil –
Morte e Democracia (Relógio d´Água)
Camilo
Pessanha – China e Macau (Livros de Bordo)
Alexandra
Lucas Coelho – Libano, Labirinto (Caminho)
Michel
Eltchaninoff – Lenine Foi à Lua (Zigurate)
Roberto
Calasso – O Cunho do Editor (Edições 70)
P-J
Proudhon – Que é a Propriedade? (Edições 70)
(Em cima, intervenção sobre fotograma com Mário Cesariny)
ESCALA RICHTER
O VENTO E O SOL
REBIS