1, Sábado, 7 de setembro, de manhã,
Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus. Cinco reclusos, 4 dos quais tidos
como os mais perigosos desta prisão de alta segurança, fogem com a ajuda de
duas escadas e três elementos que se encontravam no exterior. Fuga mediática –
um dos fugitivos, um argentino, foi condenado no seu país por rapto e possível
homicídio; fuga possibilitada pela inépcia dos guardas prisionais.
2, A partir deste facto temos várias
abordagens que vão da político-sindical sobre o estatuto dos guardas prisionais
às teorias de Foucault e Deleuze sobre as “sociedades disciplinares” (Foucault)
e as “sociedades de controle” (Deleuze), ou ao questionamento das prisões como
forma de a sociedade punir aqueles que fogem às suas regras (mais uma vez
Foucault, principalmente em Vigiar e Punir, mas também Angela Davis), ou,
ainda, um campo ficcional onde aparecem filmes e séries como Bonnie e Clyde
(1967, realização de Arthur Penn) ou a série Prison Break (2005), ou na
literatura, Jean Genet – o escritor criminoso, “a criança criminosa” –, ou um
conto de Elisabeth Bishop (Prisão), ou um poema de Oscar Wilde…
3, O ex-ministro da cultura e de novo
comentador político, Pedro Adão e Silva, escrevia a 10 de Setembro no Público,
que “temos presos a mais e não guardas a menos”. E adiantava números: “entre os
47 países do Conselho da Europa, temos o valor mais elevado para a duração
média de penas de prisão, com uns notáveis 30 meses (a média é de 12)”. Na
verdade, se formos ver o que se tem passado nos últimos anos, o que encontramos
é um excesso da aplicação da prisão preventiva. Como se fosse uma vingança por
parte dos juízes por Portugal ter um dos códigos penais mais leves, pelo menos
no que respeita ao limite de penas – 25 anos. Ora, para além destes números
estatísticos, importa saber em que condições os presos cumprem a privação da
liberdade nas prisões portuguesas. Porque nem sequer todos os condenados são
culpados. Na edição em que o jornal Público noticiava a fuga dos cinco reclusos
de Vale de Judeus, apresentava também uma grande reportagem com Diana Ríos
Rengifo, uma indígena peruana que tem lutado pela preservação da Amazónia. Mas
a sua luta foi interrompida em Portugal, quando foi encontrada na sua bagagem
cocaína. Com uma criança de pouco meses, Diana passeia-se por uma ala da prisão
de Santa Cruz do Bispo, onde estão outras mulheres e outras crianças. Não é o
facto de ter sido mãe ou o de ter sido uma activista pela preservação da
Amazónia que a tornam inocente do tráfico de droga, mas pelo documentário de 20
minutos realizado pelo Público, tudo leva a crer que Diana Ríos Rengifo é uma
vítima, que não sabia nem tinha intenção de fazer tráfico de droga. A
despenalização do consumo de estupefacientes, veio, de forma completamente
justa, retirar muita gente das cadeias.
4, Residirá nestes fugitivos uma semente de
mal, sobretudo no argentino? Talvez, mas essa questão levar-nos-ia para a
complexa questão do mal. Mas o que se poderá dizer sobre a população que ocupa
as 49 cadeias portuguesas? Vidas precárias? Vidas interrompidas? Vidas
encerradas num labirinto – por vezes de desespero? O filósofo Giorgio Agamben
recuperou a figura do direito romano arcaico do Homo Saccer, aquele que pode
ser morto sem que o assassino seja castigado. É isso que também se passa nas
prisões, quer por parte da falta de cuidado de guardas e outros funcionários
para com os presos, quer por parte dos presos entre si. As prisões são o local
por excelência do crime. Repare-se: se juntarmos um alargado grupo de homens
(ou mulheres, embora a população prisional portuguesa seja maioritariamente
feminina), onde está desde o incriminado, embora na realidade inocente; o preso
preventivo; o preso homicida com personalidade violenta; o preso por corrupção
ou de “colarinho branco”, etc, temos um caldo de violência. Essa violência
também existe no outro lado, nos guardas prisionais e demais pessoal que faz
parte da prisão como instituição. Na verdade, o mundo carcerário é um mundo do
qual a sociedade, e sobretudo o poder político (tanto à direita como à
esquerda), nada quer saber. Não importa que um preso mate outro, que por falta
de cuidados médicos um preso venha a morrer, que um preso se suicide numa
prisão onde talvez não exista um psicólogo. Nada disto importa, embora a
filosofia em Portugal seja, ao contrário da dos Estados Unidos, de reinserção
social da pessoa presa depois desta cumprir a pena – existe mesmo um Instituto
de Reinserção Social.
5, Mas, na manhã daquele 7 de Setembro de
2024, os alarmes tocaram – na prisão de Vale de Judeus e pouco depois nas
televisões. A fuga de presos de um Estabelecimento Prisional é algo que
desencadeia todo um espectáculo – raro, por isso mesmo mais precioso. O
director da Polícia Judiciária, tão solicito como um James Bond à portuguesa,
veio logo dar uma conferência de Imprensa onde apresentou os rostos dos
fugitivos, desfigurados por uma desumanidade que os pretendia colocar no lugar
do monstro, e realçou que os fugitivos eram bastante perigosos. Repare-se e
repita-se: perigosos, perigosos, perigosos… porque nunca é de mais realçar que
andam cinco perigosos fugitivos a monte. Assim se faz a “instalação do medo”
(título certeiro de um livro de Rui Zink). Fechem as janelas, tranquem bem as
portas, mantenham-se em casa.
6, Mas existe uma questão real sobre as
prisões. Michel Foucault, nos anos 1970 com o seu livro Vigiar e Punir –
Nascimento das Prisões (ed. portuguesa Edições 70), também por essa altura
com um activismo político sobre as prisões tornou a prisão um lugar a ser
pensado pelas ciências humanas (pelo menos). Também a activista e filósofa
Angela Davis, a partir de uma perspectiva da luta pelo direito dos negros nos
Estados Unidos (onde a maioria da população prisional é negra), mas também de
uma luta contra o capitalismo, tem questionado as prisões. O seu livro As Prisões Estão Obsoletas? (editado
originalmente em 2003, com edição portuguesa da editora Antígona em 2022)
coloca questões radicais. A fuga de Vale de Judeus teve pelo menos o mérito de
colocar os holofotes sobre uma prisão e o universo prisional em Portugal. Daí a
revelar a realidade desse universo vão alguns passos. Mas o questionar, para
que servem as prisões? ou, como o título do livro de Angela Davis faz de modo
talvez mais certeiro, As Prisões Estão Obsoletas?, é já algo de outra ordem, mais
difícil de alcançar – porque implica pensar, sair de certezas pré-determinadas
de uma cultura. Isso não obsta a que exista já um movimento anti-carcerário.
Ao cimo imagem divulgada pela GNR, com a cara dos 5 fugitivos.