domingo, março 31, 2024

Jorge Roque

 


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Anónimo entre tantos, tão diferentes, tão iguais, apareceste, suponho, sem o quereres na película. Rosto jovem, precocemente envelhecido, lábios roxos de sangue sufocado nas artérias, defendias a revolução com o ardor de quem por tão fundo acreditar, mais fundo havia já perdido. Camisa aberta, gestos largos, mãos nervosas sempre a acender outro cigarro, olhar límpido a idear outro futuro, eras a imagem da derrota e não sabias. Todavia, repetias em cada frase da tua retórica revolucionária. Todavia, reafirmavas, contra cada sombra que avançava, o sol que em ti era verdade, a luz que haveria que vencer por mais que a marcha dos homens a esmagasse. Todavia, camarada, que bem podias ser eu a gritar a céus inúteis, tudo estava condenado desde o começo, nem tu nem eu o podíamos evitar. Todavia, camarada, esta a natureza humana que nem deus nem homens podem alterar. Mas não te esqueças, por pouco que durasse tivemos a nossa Torre Bela, erguemo-la com os braços da nossa crença plena, vimo-la ruir sob o peso dos gestos tão humanos. Não me olhes com esse desalento, Torre Bela que foi no pensamento, somente nele poderá sobreviver. Tinha de ruir, põem isso na cabeça, mas foi nosso cada gesto obstinado de a erguer. E nada foi em vão, camarada. Foi precisa a tua força. Foi precisa a força de cada um de nós. Até dos que, como eu, só viriam a vivê-lo uma década mais tarde. Até dos que não nasceram e nessa luta e nessa força se hão-de reconhecer. E mesmo derrocada, a Torre Bela apenas ruiu na circunstância que a sustentava. E das ruínas há-de erguer-se uma vez mais, muitas vezes mais ainda, para outras tantas derrocar indiferente ao nosso empenho. Assim é, camarada, esta a vida e a sua beleza difícil de entender. Não cismes, o que podia ter sido é uma porta fechada, mas o caminho segue para lá dos nossos passos. Aceita-te no rosto de quanto lutaste e falhaste. Aceita que morres e não é o fim. Então sorri a tua vida derrotada e cumprida.

Jorge Roque, “Evocação e epitáfio”, in País Rato, ed. Maldoror, 2023, pp. 34-35


quinta-feira, fevereiro 29, 2024

50 ANOS DEPOIS, A CONTRA-REVOLUÇÃO

 



1, Com excepção de algumas democracias representativas, como foi a mexicana, é natural, e tem sido assim na democracia representativa portuguesa, uma certa “alternância democrática”. Em qualquer cenário, os mais de oito anos de governo socialista, liderados por António Costa, e interrompidos por uma frágil suspeita do Ministério Público, levarão, quase com toda a certeza – e as sondagens confirmam-no – a que das eleições legislativas de 10 de Março saia um governo de direita liderado pela AD. Simplesmente, no ano em que um pouco por todo o mundo vamos ter eleições, não vivemos uma situação normal da chamada “alternância democrática”. Vivemos, em Portugal e muitos outros países, um crescendo de partidos da extrema-direita, também chamados populistas, que põe em causa, já nalguns países, a própria democracia. Se a Itália já é governada por uma coligação de direita/extrama-direita, liderada por Georgia Meloni e o seu partido Frateli di Italia, um dos herdeiros programáticos do fascismo de Mussolini; se a Argentina, onde o peronismo tem governado,  elegeu um louco que está a transformar um país com cerca de 40% de pobres, que beneficiavam do apoio estatal, num regime totalmente liberal, entregue ao sector privado; se em Espanha o Vox espreita à sombra de Franco; se em França Macron vira à direita para evitar que Marine Le Pen ganhe as próximas presidenciais… se… se… enfim, um pouco por todo o mundo o populismo espreita. Portugal não é excepção com o Chega.

2, O Chega cresceu, mas é ainda hoje, um partido quase unipessoal de André Ventura. Ventura, um escritor frustado e professor universitário de direito, foi militante do PSD, comentador desportivo numa televisão, o que lhe deu projecção mediática. Em 2017 foi candidato à Câmara de Loures, pelo PSD, perdendo para Bernardino Soares do PCP. Por essa altura, faz afirmações contra a comunidade cigana, numa entrevista ao agora comentador político Sebastião Bugalho, para o jornal i, onde também defende a prisão perpétua e a castração química para pedófilos. Até o aparecimento de Ventura, a extrema-direita portuguesa era representada pelo PNR de José Pinto Coelho, um pequeno partido sem expressão eleitoral, claramente fascista, que nas últimas eleições se rebaptizou de Ergue-te. Ventura, como outros populistas, fala “dos portugueses de bem”, expressão que abre uma divisão na sociedade. E entre os portugueses que não são de bem, estão os chamados “subsídio-dependentes”. O Chega pretende acabar com o RSI, implementado durante um dos governos Guterres. Mas é, paradoxalmente, a algum eleitorado de esquerda, incluindo do PCP, que o Chega terá ido buscar alguns dos seus eleitores nas últimas eleições.   

3, 50 anos depois do 25 de Abril, não só as sondagens dão uma maioria parlamentar de direita, com um forte contributo da subida do Chega, como entre os pequenos partidos aparecem formações de direita ou extrema-direita, e apenas um partido – histórico – de extrema-esquerda, o PCTP-MRPP. A confirmarem-se os resultados que têm vindo a ser apresentados pelas empresas de sondagens, teremos um parlamento onde a direita será maioritária, e só uma vitória do PS, certamente já não com maioria absoluta, poderá, pelo menos durante algum tempo, impedir a direita, ou direita com extrema-direita, de governar.

4, Na passada segunda-feira, 26, a “aparição” de Passos Coelho, veio introduzir outros elementos nesta campanha, a ponto de se falar em um antes e um depois do discurso de Passos em Faro. Para a direita Passos Coelho é o messias que salvou Portugal de uma bancarrota criada por José Sócrates. Para a esquerda, mais realista, Passos Coelho é o primeiro-ministro que quis ir além das imposições da troika, e que levou a que a esquerda se unisse, em 2015, para evitar um segundo governo PSD-CDS. A política que Passos Coelho implementou durante o seu governo, com Paulo Portas como líder do CDS, foi uma política contra as pessoas, por vezes de humilhação (por exemplo, para receber o subsídio de desemprego, os desempregados que tinham direito a ele, tinham que se apresentar na sua Junta de Freguesia de quinze em quinze dias – como se fossem criminosos a quem um juiz tinha decretado o “termo de identidade e residência”). A política de Passos Coelho baseou-se num colaboracionismo com as organizações monetárias, como o FMI,  que impôs cortes no rendimento das pessoas, empobrecendo-as, ao mesmo tempo que privatizava empresas estratégicas para a vida das pessoas e do país. O corte do 13º mês e subsídio de férias (que apenas durou um ano porque o Tribunal Constitucional considerou essa medida inconstitucional), contam-se entre as medidas mais gravosas, de muitas, que levaram a um extraordinário aumento do desemprego e à emigração de muitas pessoas, sobretudo jovens.

5, Estamos a menos de dois meses de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, a Revolução dos Cravos como lhe chamam noutros países. O mundo mudou muito nestes 50 anos – e Portugal também –, a começar pela queda do muro de Berlim e o fim dos regimes comunistas; das utopias que floresciam por esses anos 60, 70, e mesmo, ainda 80 do século passado. Vivemos hoje num mundo digital, governado pelas grandes empresas de Silicon Valley, com várias ameaças, das alterações climáticas à inteligência artificial. E a emergência dos populismos de extrema-direita, um pouco como acontecia há 100 anos. Em Portugal a direita nunca foi além do CDS, que embora sendo um dos partidos fundadores da democracia, fez parte da Assembleia Constituinte eleita em 1975, e foi o único partido a votar contra a Constituição aprovada em 1976. Mas agora a extrema-direita chegou ao parlamento, as promessas da AD de não fazer um acordo parlamentar, ou de governo, com o Chega, são vãs. Cinquenta anos depois do 25 de Abril, Portugal parece estar condenado a enfrentar uma contra-revolução liderada pelo extrema-direita. É certo, como já escrevi acima, que há cerca de 10 anos tivemos um governo que colocou em causa não só os chamados “valores de Abril”, como os dirigentes do PCP gostam de dizer, mas sobretudo os valores da social-democracia. Também é certo que certa esquerda, nos últimos anos, tem abraçado os valores woke, provocando uma fricção social que leva a que muitas pessoas passem para o lado oposto a esses valores woke.

6, Nas últimas semanas, temos assistido a situações mais ou menos inéditas, com polícias a vir para a rua manifestar-se, ainda que à civil. Um jogo de futebol, entre o Famalicão e o Sporting não se pode realizar porque os polícias destacados para fazer a segurança ao jogo, apresentaram atestados médicos invocando doença. Na origem dos protestos, para além das más condições em que vivem alguns polícias, está um subsídio que foi atribuído aos membros da Polícia Judiciária. O presidente do Sindicato da Polícia chegou, em entrevista, a ameaçar que as eleições podiam não se realizar porque são os polícias quem transportam os boletins de voto. A 19 de Fevereiro, quando se realizou o debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro no teatro Capitólio, e transmitido em sinal aberto pelos três canais de televisão, uma manifestação espontânea de polícias esteve à porta do teatro. Também os militares ameaçam manifestar-se. O semanário Expresso titulava, na sua edição de 23-02-24, “Militares ameaçam sair à rua se polícias tiverem aumento”.  Esta situação faz lembrar a de um país africano com uma fragilíssima democracia, não é normal num país com uma democracia de 50 anos. Mas, como já tentei explicar acima, não vivemos tempos normais. As ameaças de polícias e militares, de qualquer forma, são inaceitáveis. 

(Imagem do blogue Expresso da Linha,  https://expressodalinha.blogspot.com/2012/04/luisa-os-cravos-murchos-da-injustica.html ) 

quarta-feira, janeiro 31, 2024

A POLÍTICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

 


1, José Sócrates foi detido há dez anos, quando regressava de Paris. Há sua espera, no aeroporto tinha não só a polícia, mas também uma equipa de televisão para filmar o “acontecimento”. Depois de ser ouvido pelo super-juiz Carlos Alexandre, por ordem deste ficou meses em prisão preventiva. Por essa altura Portugal era governado pela coligação PSD/CDS e pela troika. Passos Coelho, o primeiro-ministro, fazia a apologia do empobrecimento, do ir além da troika que controlava a política portuguesa, em troca dos mais de 70 mil milhões de euros que o BCE, FMI e UE nos tinham emprestado. Nem o Ministério Público, nem o juiz Carlos Alexandre tinham, nessa altura, provas contra o líder de dois governos do PS, entre 2005 e 2011. Falava-se na imprensa, nomeadamente no Correio da Manhã, de uma série de casos que apontavam para que José Sócrates fosse um corrupto. Por outro lado, a sociedade portuguesa estava dividida em relação à figura de Sócrates: para uns ele fora o responsável por Portugal ter chegado à quase bancarrota, mas, ao mesmo tempo, viviam-se tempos de que não havia memória. O desemprego tinha chegado aos 17, 18%, o governo de Passos e Portas tinha cortado o subsídio de férias e Natal, os mais jovens emigravam. António Costa, que tinha substituído o apagado António José Seguro como Secretário-Geral do PS, criou a frase “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política” – foi um mantra que repetiu durante quase nove anos. Mário Soares, com 90 anos, que só conhecera as prisões de Salazar, mostrava-se inconformado à porta da prisão de Évora, onde estava Sócrates.

2, Foi no início dos anos 1990 que pela primeira vez, desde o PREC, um político, neste caso ex-político, Costa Freire, foi detido e julgado. O ex-secretário de Estado da Saúde de Leonor Beleza, apesar de condenado em 1994, conseguiu, de recurso em recurso, que o seu caso prescrevesse em 2004. Por essa altura Portugal vivia um outro grande processo judicial-mediático: o caso Casa Pia, instituição onde durante décadas crianças tinham sido abusadas sexualmente. Entre os acusados do processo Casa Pia estava o nome mais sonante da televisão portuguesa: Carlos Cruz. Mas as crianças, ouvidas pela PJ, também apontaram o jovem deputado do PS Paulo Pedroso. Pedroso, então uma promessa nas hostes socialistas, ficou 4 meses em prisão preventiva. Foi depois inocentado, e processou o Estado português, ganhando o processo. Mas a sua carreira política estava liquidada – é hoje professor universitário e comentador político na RTP. Por essa altura, correram boatos que implicavam também Ferro Rodrigues, então líder do PS.

3, Durante os primeiros seis anos dos governos de António Costa não constam grandes problemas com a justiça, para além de Sócrates. Mas o governo maioritário, obtido pelas eleições de janeiro de 2022, foi um desastre de “casos & casinhos”, uns que implicavam a justiça, outros que apenas implicavam a administração de empresas como aconteceu com a TAP. Costa sobreviveu politicamente até ao ponto de afrontar o presidente da República, em maio de 2023, ao não aceitar a demissão do ministro João Galamba, como o PR pretendia. Marcelo, o comentador-mor transformado em Presidente da República, chegou a demitir ministros em directo. As relações entre PM e PR azedaram, mas entre maio e novembro, essa manhã de 7 de novembro de 2023, em que a polícia irrompeu pela residência oficial do primeiro-ministro, em que Lucília Gago, a Procuradora- Geral da República, escreveu um parágrafo assassino onde referia que António Costa era suspeito, tudo esteve calmo. Mas nesse dia, mesmo ainda não sabendo que a polícia encontrara 75 mil euros em notas no gabinete do seu assessor, António Costa apresentou, em directo, para as televisões a sua demissão. O país foi apanhado de surpresa, Marcelo não aceitou um outro primeiro-ministro que o PS indicou e marcou eleições para 10 de março. Por essa altura, entre outras coisas, ficou-se a saber que Galamba foi escutado durante 4 anos.

4. Se é certo que o poder gera corrupção, que os anos de poder do Partido Socialista ajudaram a criar essa corrupção, não é menos certo que o MP se tornou num actor político todo-poderoso, capaz de lançar acções que demitem governos (algo que nunca tinha acontecido na democracia portuguesa). António Costa não repetiu o seu mantra, “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Porque, na realidade, essa frase não é verdadeira. Existe separação de poderes, ninguém está acima de ninguém na alegada cegueira da justiça. Mas o código penal, o código civil, o código do processo penal, toda a legislação sobre a qual o poder judicial actua, emana do poder político. À justiça apenas cabe a interpretação dessas leis. Mas também os meios de que as polícias, o MP, os juízes, dispõem, são dados pelo poder político. E, pela últimas e espectaculares intervenções da justiça junto de políticos, o Partido Socialista foi generoso para com a justiça, em particular para com a Polícia Judiciária.

5, Já depois da demissão do governo, num período que é já de campanha eleitoral, o MP voltou a atacar. Agora, como que querendo equilibrar a perseguição ao PS,  o MP atacou Luís Montenegro, o actual líder do PSD. Em causa algo que já era sabido: a casa que este construiu em Espinho. Esquecido esse assunto, a semana passada foi a vez de atacar em grande na Madeira. Um avião da Força Aérea levou140 operacionais da PJ para o Funchal onde fizeram buscas na Câmara Municipal do Funchal e na residência do presidente do governo regional da Madeira. Tão espetacular operação, resultou na detenção do presidente da Câmara do Funchal, Pedro Calado, e na constituição de Miguel Albuquerque como arguido. Daqui resulta uma incerteza quanto ao futuro político da Madeira: ou a continuação deste governo com o apoio do PAN, ou a marcação de novas eleições.

6, Em 2017 o juiz Sérgio Moro condenou “Lula” da Silva a mais de nove anos de prisão, impedindo-o assim de concorrer às eleições presidenciais que foram ganhas pelo candidato da extra-direita Jair Bolsonaro. Sérgio Moro viria a fazer parte do governo de Bolsonaro. A justiça, no Brasil, serviu uma muito má causa política. Em Portugal, a frenética actividade do Ministério Público parece querer corroer a democracia. Tal como no Brasil, o partido que parece sair mais beneficiado da suspeita que recaiu sobre António Costa, é de extrema-direita. Mas, sobretudo, e embora com o desgaste do PS de António Costa, temos um MP que se arvora no poder de lançar uma suspeita (apenas isso, nem sequer o constitui arguido) sobre um primeiro-ministro enfraquecido, sabendo que isso vai despoletar eleições legislativas. O mesmo é verdadeiro para o caso recente da Madeira. O grande beneficiário de tudo isto, no fundo da ideia populista de que os políticos são todos corruptos, é o partido de extrama-direita, manifestando-se contra o sistema (político), contra a III República saída do 25 de Abril, ganhando votos, porque, na realidade, como disse Freud, a tarefa de governar é uma das tarefas impossíveis. Ora, quando essa tarefa exige os melhores de uma sociedade, a suspeita a priori de que todo o político, qualquer pessoa que exerça um cargo público é um corrupto, é o código postal para a derrocada de uma difícil democracia.

 

domingo, dezembro 31, 2023

LIVROS EM 2023

 

1, 2023 foi o ano em que o Ministério Público (MP) levou à demissão do governo de António Costa. Depois do ano ter começado com uma série de casos & casinhos que envolviam membros do governo, o golpe final foi dado em Novembro, quando a polícia entrou na residência oficial do primeiro-ministro e um comunicado do MP colocava Costa como suspeito. O primeiro-ministro demitiu-se nesse mesmo dia. Um mês antes, no Médio Oriente, o Hamas, num ataque terrorista, matava cerca de mil israelitas e fazia mais de 200 reféns. A resposta do governo de Benjamin Netanyahu foi uma acção de guerra que até agora fez mais vinte mil mortos palestinianos, na Faixa de Gaza, a maioria deles civis, e parece avançar com intenções de extermínio dos palestinianos.

Mas, no início do ano, algo de novo aparecia no reino da tecnologia em que estamos cada vez mais imersos: o Chat GPT. Concebido pela empresa OpenAi, o Chat GPT, e os modelos que lhe seguiram por parte da concorrência, o Chat Bing (Microsoft) e o Chat Bard (Google), permitem pela primeira vez uma interacção conversacional com um mecanismo de inteligência Artificial (IA). Embora já estivesse presente nos dispositivos electrónicos, nomeadamente nos smarphones, embora a investigação em IA tenha décadas, nunca a IA se apresentou assim perante os humanos: como um chatbot com o qual é possível “falar” (teclar), a quem é possível colocar questões, dúvidas ou pedir para criar algo. Tratando-se de um modelo de linguagem estatístico, o Chat GPT assume uma aura de uma entidade com uma sabedoria que não tem – ainda. A inteligência artificial apareceu como uma ameaça, a juntar a outras como a crise climática e as guerras (na Ucrânia e entre Israel e o Hamas), o que levou, paradoxalmente, alguns dos investigadores em IA a escreverem uma carta onde pediam uma desaceleração na investigação em IA. Vive-se assim entre o desejo que a IA resolva os problemas da humanidade, e o receio que se torne tão ou mais inteligente que os humanos. O certo é que ainda imberbe, a IA aparece como uma ameaça também ao mundo da criação literária. A greve dos argumentistas em Hollywood, que durou cerca de cinco meses, foi causada entre outros factores pela utilização da IA, num claro e primeiro efeito da IA no mundo da criação literária e artística. Os modelos como o Chat GPT têm já a capacidade de escreverem histórias infantis que podem rivalizar com as escritas por escritores humanos. Por altura do aparecimento do Chat GPT a Amazon foi inundada de livros para a infância. Vivemos, assim, num certo meio literário, já condicionado pela inteligência artificial. E o restante mundo editorial (tradutores, revisores, gráficos, etc) poderá ser afectado pela IA.

Num artigo publicado no El País, a escritora e activista Naomi Klein acusava a IA de “grande roubo” a todo o conhecimento humano, tendo o jornal The New York Times materializado essa opinião ao recentemente processar a Microsoft e a OpenAI por violação de direitos de autor. O filósofo José Gil, num ensaio publicado no Público (3-12-23) prevê um cenário distópico: “as obras de arte algoritmizadas serão saudadas como exemplos singulares de criação e engenho das máquinas inteligentes. Os romances, as traduções, os objectos de arte, as composições musicais resplenderão de originalidade inigualável. Produtos de uma enorme complexidade – nós seremos mais simples e pequenos, pobres e felizes.”  

 

2, De três importantes escritores e poetas se comemoraram em 2023 o centenário de nascimento: Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e Natália Correia. Eugénio de Andrade (1923-2005), foi um dos principais poetas portugueses da segunda metade do século XX. A sua poesia imbuída de um Eros clássico, principalmente nas primeiras obras, teve ao longo de décadas uma excelente recepção entre os leitores. Treze anos depois do seu desaparecimento, importava averiguar o valor que esta poesia mantém no cânone – universitário, crítico, entre pares e junto dos leitores. Certo é que neste ano de centenário apenas um livro de Eugénio de Andrade foi publico – Aquela Nuvem e Outras (Porto Editora), um livro para crianças. Embora a Assírio & Alvim tenha vindo desde 2012 a publicar individualmente cada um dos livros de Eugénio de Andrade, e já tenha em 2017 publicado a poesia reunida do poeta que nasceu no Fundão e viveu no Porto, e em 2022 a prosa reunida, pouco se notou, a nível de iniciativas, o centenário do autor de As Mãos e os Frutos. Quer isto dizer que Eugénio de Andrade caiu num certo esquecimento, ou talvez num desgaste.

Num sentido contrário podemos falar da obra poética, e não só, de Mário Cesariny. O nome de Cesariny liga-se umbilicalmente ao surrealismo português (juntamente com Alexandre O`Neill e António Maria Lisboa, mas também Mário-Henrique Leiria ou Manuel de Lima), de que foi o criador e teórico (veja-se Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista). Mas a sua poesia maior pode ser resumida a quatro ou cinco poemas que estarão entre os melhores poemas da lírica portuguesa. Mário Cesariny praticou a insubmissão como forma de vida. E essa atitude terá levado a um propositado esquecimento da sua obra que foi recuperada no final da sua vida e nos últimos anos. Daí que ao Cesariny poeta se tenha recuperado o Cesariny artista plástico. A edição da antologia Poesia de Mário Cesariny, e do projecto datado de 1977 de uma heterodoxa antologia de poesia, cujo título Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (ambas organizadas por Fernando Cabral Martins para a Assírio & Alvim) é já em si sintomático da rebeldia de Cesariny, mas também do acolhimento que a sua obra tem tido.

No caso de Natália Correia, não podemos falar apenas de uma escritora e poeta. É, para além disso, a sua biografia que a vai impor como uma figura pública:  deputada à Assembleia da República pelo PSD e depois pelo PRD, mas também pelo programa televisivo Mátria, que Natália Correia se torna conhecida do grande público, já depois do 25 de Abril. Mas, num outro círculo, mais restrito, Natália Correia vai afirmar-se, ainda durante o Estado Novo, como anfitriã e dona de um bar em Lisboa – o Botequim – que procurava ser um espaço de liberdade dentro da ditadura. Na sua actividade de escrita foi romancista, dramaturga, poeta, ensaísta, diarista, organizadora de antologias. Uma dessas antologias, Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965, primeira edição) valeu-lhe uma condenação de três anos com pena suspensa; foi ainda processada por ser a responsável editorial do livro Novas Cartas Portuguesas (1973). A sua escrita andou pelos caminhos do surrealismo, e com Mário Cesariny partilhou além da rebeldia e insubmissão, a amizade e admiração.

 

3, No que respeita aos livros publicados em 2023, apresento uma lista abaixo, que é uma selecção, lacunar, do que foi publicado. A maior parte recebeu alguma atenção por parte da escassa crítica literária ainda existente (Expresso, Público, JL, pouco mais), outros livros foram ignorados por essa mesma crítica.

Da lista saliente-se, na poesia, uma nova edição da Poesia de Luiza Neto Jorge, revista e aumentada, que vai buscar poemas que a poeta não integrou na reunião da sua poesia em Os Sítios Sitiados (1973), mas estavam em outros livros anteriores; a edição pela primeira vez em português de um autor italo-argentino, Antonio Porchia, mestre no aforismo de forte tonalidade poética, ou no poema disfarçado de aforismo, que foi publicando ao longo dos anos na suas Vozes (Voces). A publicação da obra completa de um poeta mais conhecido como letrista de fados, Pedro Homem de Mello; e também das obras completas de dois autores muito distantes entre si, não só no tempo: o clássico Horácio, e o recente Roberto Bolaño. Ainda obras completas, ou completas até à data: Rita Taborda Duarte, Helga Moreira, Maria da Graça Varella Cid e Ernesto Sampaio, de quem a Maldoror e Língua Morta reuniram em cerca de 400 páginas os poemas e textos em prosa.

Na ficção, no ano que o Nobel da literatura foi para o romancista e dramaturgo norueguês Jon Fosse, os autores portugueses mais conceituados pouco ou nada publicaram (com excepção de Gonçalo M. Tavares, sempre prolifico). Destaque-se o trabalho editorial da E-Primatur que este ano publicou a tradução na integra de Gargântua & Pantagruel de François Rabelais.

No ensaio, destaque-se a reunião da obra ensaística sobre poesia de Joaquim Manuel Magalhães, num grosso volume de quase 1200 páginas, que colige os seus três livros de ensaios e acrescenta inéditos – pelo menos em livro –, assinado com o pseudónimo, ou heterónimo, de António Maria António Pedro. Joaquim Manuel Magalhães é sem dúvida um dos mais lúcidos leitores da poesia portuguesa, e não só. Ainda no ensaio sobre literatura Joana Matos Frias publicou Oscilações (Documenta) e Joana Emídio Marques Notícias do Bloqueio (Língua Morta). A Relógio d` Água publicou mais um ensaio do filósofo Byung Chul Han, desta vez sobre A Vida Contemplativa, mas nesta editora também se publicaram os Ensaios de Robert Musil, e um livro que denúncia os mecanismos tecnológicos de vigilância da ditadura chinesa: Estado de Vigilância de Josh Chin e Liza Lin. Também na linha da crítica das novas tecnologias ao serviço do poder, de Jonathan Crary a Antígona traduziu Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista. E, entre muitos outros livros destaque ainda para um clássico do pensamento anarquista, Que é a Propriedade? de Proudhon nas Edições 70.

 

 

POESIA

Mário Cesariny – Antologia (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)

Mário Cesariny – Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)

António Porchia – Vozes (Língua Morta, trad. Nuno Azevedo)

Luiza Neto Jorge – Poesia (ed. Revista e aumentada por Fernando Cabral Martins e Manuele Masini, Assírio & Alvim)

Adília Lopes – Choupos (Assírio & Alvim)

Pedro Homem de Mello – Poemas 1934-1961 (Assírio & Alvim, ed. Luís Manuel Gaspar)

Horácio – Poesia Completa (Quetzal, trad. Frederico Lourenço)

Roberto Bolaño – Poesia Completa (Quetzal, trad. Carlos Vaz Marquez)

Rosa Maria Martelo – Desenhar no Escuro (Averno)

Margarida Vale de Gato – Mulher ao Mar e Corsárias (Mariposa Azual)

Helga Moreira – A Arte de Perder (Tinta da China)

Amadeu Baptista – Danos Patrimoniais. Antologia pessoal 1982-2022 (Afrontamento)

Alberto Pimenta – They` II Never Be the Same (Edições Saguão)

Cesare Pavese – Trabalhar Cansa (Penguin Clássicos, trad. Vasco Gato)

Fernando Guerreiro – Metal de Fusão (Black Sun Editores / 100 Cabeças)

José Amaro Dionisio, Helder Moura Pereira. Fátima Maldonado, F. Cabral Martins – Imperfeição (não) edições

Rita Taborda Duarte – Não Desfazendo (Imprensa Nacional)

Ernesto Sampaio – Luz Central (Maldoror/Língua Morta)

Maria da Graça Varella Cid – Poesia Incompleta (Tigre de Papel)

 

FICÇÃO

François Rabelais – Gargântua & Pantagruel (E- Primatur)

Gustave Flaubert – A Tentação de Santo Antão (Minotauro)

William S. Burroughs – Almoço Nu (Minotauro)

Rui Nunes – Neve, Cão e Lava (Relógio D` Água)

Gonçalo M. Tavares – As Botas de Mussolini (Relógio d` Água)

Gonçalo M. Tavares – Breves Notas sobre o Oriente (Relógio d` Água)

Joseph Conrad – Plantador de Malata (Sistema Solar)

Hélia Correia – Certas Raízes (Relógio D` Água)

Horace Walpole – Contos Hieroglíficos (Antígona)

Monteiro Lobato – Reinações de Narizinho (Tinta da China)

 

NÃO – FICÇÃO

Joaquim Manuel Magalhães – Poesia Portuguesa Contemporânea (Bestiário)

Byung Chul Han – Vida Contemplativa (Relógio d´Água)

Jonathan Crary – Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista (Antígona)

Joana Matos Frias – Oscilações (Ducumenta)

Josh Chin e Liza Lin – Estado de Vigilância (Relógio d´Água)

Robert Musil – Ensaios (Relógio d´ Água)

Joana Emídio Marques – Notícias do Bloqueio (Língua Morta)

Salvador Dali – Diário de um Génio (Sr. Teste)

Ian F. Svenonius – Contra a Palavra Escrita (Chili com carne)

Maria Filomena Mónica – Os Livros da Minha Vida (Relógio d´Água)

António Castro Caeiro – O que é a Filosofia? (Tinta da China)

João Barrento – Aparas dos Dias (Companhia das Ilhas)

Furio Jesi - Cultura de Direita (Edições 70)

Simon Sebag Montefiore – Mundo (Crítica)

António Vieira – Entrevista (Companhia das Ilhas)

Diogo Ramada Curto – Um País em Bicos de Pés (Edições 70)

José Gil – Morte e Democracia (Relógio d´Água)

Camilo Pessanha – China e Macau (Livros de Bordo)

Alexandra Lucas Coelho – Libano, Labirinto (Caminho)

Michel Eltchaninoff – Lenine Foi à Lua (Zigurate)

Roberto Calasso – O Cunho do Editor (Edições 70)

P-J Proudhon – Que é a Propriedade? (Edições 70)

(Em cima, intervenção sobre fotograma com Mário Cesariny)

 

 

 

quinta-feira, novembro 30, 2023

Leonardo Gandolfi

 


ESCALA RICHTER

    
    Samuel Butler
que verteu entre outros a Odisseia
para prosa tem uma tese curiosa.
Segundo ele, a mocinha
que dá guarida a Ulisses
quando está em maus lençóis
é na verdade o próprio Homero.
Cada linha sobre a volta para a casa do herói 
foi composta por ela
que participa da história como Nausícaa.
A filha do rei Alcínoo
e suas escravas lavando roupa.
Os panos secam enquanto elas tomam 
banho jogam bola cantam.
Agora porém ainda estão lanchando.
A coisa toda terminará
quando Ulisses surgir nu na praia
as meninas em roupa de banho correndo
menos Nausícaa.

    O caminho
que vai da princesa
a Homero tem pouco a ver
com autobiografia
biografia ou bobagens do tipo.
Como se sabe, isso é nada
ou tão só um desastre.
Butler, autor de The way of all flesh
e mentor de Chesterton, garante
o diabo é o detalhe.

    As aventuras de Nausícaa
e das suas coleguinhas escravas, distração
em tempos difíceis, tem chamado
minha atenção para tópicos realmente 
importantes como discrição e hospitalidade.
Acolher é tudo, ainda mais quando
não se espera nada em troca, diz nosso herói 
diante dos belos olhos da princesa.
Mas como o mundo não é feito apenas 
de dificuldades envolvendo autoria
a esperança é que esses dois tópicos 
me ajudem em alguns outros problemas, diz ele.

Leonardo Gandolfi, in Voo Rasante - Antologia de Poesia Contemporânea, Coordenação de Helena Vieira, Mariposa Azual, Lisboa, 2015, pp. 89-90.
Leonardo Gandolfi nasceu no Rio de Janeiro, em 1981. Tem publicado alguns livros de poesia no Brasil, ao mesmo tempo que tem exercido uma actividade de crítica literária especialmente sobre poetas portugueses (de Carlos de Oliveira a Adília Lopes), em revistas portuguesas e brasileiras.

segunda-feira, outubro 30, 2023

HELGA MOREIRA



Uma enorme perdição essa noite depondo rosas no teu peito.
Com mel me cobres, infindável.
Chegas do lado onde os pássaros rasgam
posturas irrecuperáveis, a boca quase chuva,
secretos instantes de muita brandura.

Deitas-te a meu lado, recolho-te num abraço,
és como uma anémona, tão de leve adormeces.

De claridade semeio esse perfil.
Uma folha, um gladíolo, sempre cobertos do teu nome

*

Era uma vagueza a sombra e um retalho no pôr-de-sol;
talvez não valha a espera essa espécie de música mulher
servidão ou rede de átomos;
será uma vantagem conhecer as perversões lunares, festividades
de orvalho, traições de inocentes lábios, o mistério álgido do mármore,
metonímicas seduções, outros lazeres.

Era um retrato pelo sol de rostos e sombra, lenta alquimia;
espreitas pelo óculo arestas de gaivotas, remotos signos,
devagar te acercas da luz.

A manhã que no rosto dispersa brevíssimos pássaros
havemos de encontrar.

in A Jovem Poesia Portuguesa/2, Limiar, Porto, 1985, pp. 45 e 49.
Helga Moreira nasceu em 1950, em Quadrazais, Sabugal (Guarda), Em 1978 publicou o seu primeiro livro de poemas, Cantos do Silêncio (edição de autor), a que se seguiram Fogo Suspenso (1980), Quem Vier do Sul (1983), Aromas (1985), Desrazões (2002) e Tumulto (2003), entre outros. Este ano, publicou na Tinta da China o volume A Arte de Perder, que reúne quase toda a sua poesia edita, acrescentada de alguns inéditos.






sábado, setembro 30, 2023

ESOPO

 

O VENTO E O SOL

    Uma vez o Vento e o Sol puseram-se a discutir sobre qual dos dois era mais forte. Como não chegavam a um consenso e vendo passar um viajante envolto num capote, ambos concordaram que o mais forte seria aquele que conseguisse fazer o homem despir o capote.
    O Vento foi o primeiro a testar a sua força. Começou a soprar com todo o vigor e lançou sobre o homem uma rajada de vento frio. Mas, quanto mais soprava, mais o viajante se embrulhava no seu capote.
    - Desisto! - disse o Vento. - Não há maneira de fazer este homem tirar o capote!
    - Não sei se será bem assim! - replicou o Sol. 
    Então, o Sol começou a brilhar com todo o seu esplendor e, aos poucos, foi aquecendo o viajante de tal forma que ele se viu obrigado a tirar o capote e o resto da roupa para se refrescar num riacho que passava por ali.

Mais vale engenho que força.

A GALINHA DOS OVOS DE OURO

    Numa manhã como tantas outras, um aldeão e a sua esposa descobriram que tinham um ovo de ouro no ninho onde as galinhas punham os ovos. A partir desse dia, sempre que iam recolher os ovos encontravam um de puro ouro! Trataram logo de descobrir qual era a galinha que lhes dava tanta alegria.
    - Esta galinha deve ter uma grande pepita de ouro dentro dela! - exclamou a mulher do aldeão.
    - Vamos matá-la para lhe podermos deitar a mão - sugeriu o aldeão.
    E assim fizeram. Mas, para surpresa de ambos, descobriram que a galinha era igual a todas as outras.
    Esperando tornar-se rico de uma só vez, o tolo casal de aldeões privou-se do lucro diário que tinha assegurado.

Quem tudo quer tudo perde.

A RAPOSA E O LEOPARDO

    Uma raposa e um leopardo estavam a discutir sobre qual dos dois era o mais bonito. O leopardo apressou-se a exibir orgulhosamente as várias pintas que lhe adornavam o corpo, mas a raposa interrompeu-o e disse:
    - Eu sou muito mais bonita do que tu porque a minha beleza não está no corpo, mas na mente.

Quem vê caras não vê corações.

(Esopo, Fábulas de Esopo (Uma Seleção), adaptação para a língua portuguesa de Alexandra Guimarães, Porto Editora, 2016/2021)


    

quinta-feira, agosto 31, 2023

NATÁLIA CORREIA

 


REBIS

Oh a mulher como é cõncava
de teclas ter no abdómen
de sua porção de seda
ser o curso do rio homem

como é mina espadanar de água
na cama abobadada de homem
gargalhada de lustre se sentada
dique de nuvens estar de dólmen!

Oh o homem como é ângulo
aberto de procurar
o sítio onde nasce o ouro
na salmoura da mulher mar

como é cúpula de copular
nadador de braçadas de mirto
como é nado de a nado formar
o quadrado da mulher círculo!

Oh os dois como se fundem
na praia-mar dos lençóis 
despidos como fogo e água
deus de dois ventres ferozes
e quatro anos de fava!

In Edoi Lelia Doura - Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, org. por Herberto Helder, Assírio & Alvim, 1985, p. 190.

Natália Correia nasceu em S. Miguel, Açores, há 100 anos (13.9.1923- 16.3.1993). Para além de poetisa de cariz surrealista, e também ficcionista, ficou conhecida pela sua actividade política, como deputada do PSD e, também, do PRD; pelo resistência boémia à ditadura do Estado Novo a partir do seu bar "Botequim", lugar de encontro de intelectuais, que manteve depois do 25 de Abril. Foi autora de um programa televisivo (Mátria), onde explanou as suas ideias de Pátria, Mátria e Fátria. Em 1966 foi condenada a 3 anos de prisão, com pena suspensa, pela organização de uma Antologia da Poesia Erótica e Satírica. Em 1973 organizou uma singular antologia sobre O Surrealismo na Poesia Portuguesa (2ª edição, frenesi, 2002), com comentários teóricos. Há, em Natália Correia, uma pensadora - do surrealismo, da mulher - que tem sido esquecida.  

segunda-feira, julho 31, 2023

ESTUPIDEZ NATURAL

 


1, Em fevereiro de 2020 a peste sob a forma de um vírus a que chamaram covid, aparece na Europa; em fevereiro de 2022 a Rússia invade a Ucrânia, é o início de uma guerra que na realidade opõe o ocidente à Rússia, mas de certa forma, também à China, numa nova ordem mundial cuja natureza última estamos longe de vislumbrar; em fevereiro deste ano os meios de comunicação social começam a falar de uma nova forma de inteligência artificial (IA), criada pela empresa Openai, que interage com qualquer utilizador que aceda a este serviço que numa primeira fase foi gratuito. É o famoso Chat GPT (na versão 3.5 de acesso livre, a versão 4 tem que ser paga). O mundo já muitas vezes passou por pestes seguidas de guerras e vice-versa, mas nunca por uma máquina que simule (?) a inteligência, a fala humana. A IA, para uns um perigo para a humanidade, para outros uma oportunidade na resolução de problemas que afectam os humanos, desde a solução para algumas doenças até problemas como as alterações climáticas, era como um gato escondido com o rabo de fora. Na realidade pouco ou quase nada se falava dela, mas dos algoritmos existentes nos smartphones, que partem do princípio de que se  a pessoa A gosta da música X também vai gostar de Z e W (este princípio usado pelo Spotify ou YouTube é também válido para muitas outras aplicações). 

2, O mundo de cada humano passou para um pequeno smartphone (literalmente telefone inteligente) que nos acompanha para todo o lado e onde temos todos os nossos contactos, cada vez mais virtuais, bem como fotografias e outros documentos. E estamos presos e enredados nesse micro-computador de bolso sem o qual a vida hoje é difícil de ser vivida. É uma vida cada vez mais virtual, mas também é a forma como, cada vez mais interagimos com o outro, com a possibilidade de uma alteridade. Torna-se assim num paradoxo: agimos com mais pessoas e de forma mais fácil, mas essa acção já não é uma presença, é mediada por uma tecnologia que nos representa. A internet transformou-se de uma utopia comunicacional em algo que deu um enorme poder a quatro ou cinco empresas que podem ameaçar a nossa liberdade. A inteligência artificial é um dos mecanismos que mal-usados nos pode tornar escravos numa distopia.

3, Se durante quase duas décadas o Google foi o principal motor de busca de conteúdos na internet, com o Chat GPT isso pareceu alterar-se (a propósito recomendo o Duck Duck Go ao google). Já não se tratava de apresentar sites (a maioria pagos) mas de fazer uma pergunta a um sistema de IA. Ora, na versão 3.5, o chat GPT revelou-se pouco fidedigno. Quanto não tinha uma resposta inventava, o que os especialistas em IA chamaram, muito humanamente "alucinar". Isso quer dizer que, pelo menos na versão 3.5, o chat GPT mostrou-se menos fiável do que a Wikipédia, cujos artigos estão cheios de erros - humanos. E, de facto, a internet é uma rede cheia de informações falsas, duvidosas, inexactas, que as redes sociais expuseram ao limite. Ora, o chat GPT pretende ter toda a informação que circula online (além de uma montanha de livros que "leu"), o que equivale a ter bastante informação falsa. Então como vamos confiar na informação que nos é "dada" por uma inteligência artificial?

4, Outro problema que o aparecimento destes sistemas de IA coloca, é a criação artística. Para já a actual IA parece estar na sua infância, mas isso não impede alguma criatividade, precisamente uma criatividade ao nível infantil. O Chat GPT é bom a criar histórias para crianças, porque razão uma editora de livros infantis não poderá substituir os seus escritores de livros infantis pela inteligência artificial? E quando o a IA for capaz de escrever romances? Será que um dia um programa de IA irá escrever algo superior à capacidade criativa de um Joyce, um Proust, um Kafka, um Pessoa? E na pintura, na música, no cinema, na fotografia. Para já há experiências de jornais feitos por IA. A Inteligência artificial não é só uma ameaça a tarefas rotineiras, é uma ameaça também à Arte, aos artistas, e portanto aos humanos.

5, Numa carta aberta subscrita entre outros pelo criador da Openai e do Chat GPT, Sam Altman, e por um engenheiro da Google, percursor dos sistemas de IA apelava-se para uma regulamentação a nível governamental da IA. Caso isso não fosse feito poderíamos estar perante algo, tão catastrófico como a extinção da humanidade. A carta não foi tomada em conta pelos governos, e note-se que foi escrita e subscrita pelos criadores da IA. Antes, governos como o português, no âmbito do que chama "transição digital", já anunciou que as chamadas para o 112, a partir de 2025, serão atendidas por um sistema de IA.

6, Vivemos um tempo de ameaças e de aceleração técnica como nunca antes a humanidade tinha vivido. A IA é mais uma dessas ameaças, mas também nos pode ajudar a resolver vários problemas. Em rigor, não se sabe até que ponto a IA está desenvolvida, mas não é difícil imaginar até onde ela se pode desenvolver: até governar ou escravizar os humanos. Ou então, até uma fusão com os humanos (transhumanismo, cyborgs). Por isso é necessário tornar esta uma questão política premente. Mas os partidos políticos, os governos, a UE, parecem quererem ignorar o que se passa. A ameaça – mas também as suas possibilidades – ficam a pairar perante uma classe política e uma humanidade estúpida.

 


sexta-feira, junho 30, 2023

FRANZ KAFKA



 REFEEIÇÃO

    Quando eu encontro uma rapariga bonita e lhe rogo: «Tenha a gentileza de me acompanhar» e ela passa por mim sem uma palavra, é isto que ela me quer dizer:
    «Você não é nenhum Duque famoso, nenhum americano com perfil e pose de índio, de olhos fundos e misteriosos e uma pele temperada pelo ar das planícies e dos rios que nelas passam, não chegou aos sete mares nem nunca por eles navegou, onde quer que eles se encontrem, que eu não sei. Diga-me lá então porque é que uma rapariga bonita como eu haveria de ir com o senhor?»
    «Parece esquecer que nenhum automóvel a passeia em grandes voltas pela cidade; não vejo nenhum cavalheiro a rodar à sua volta, comprimindo por detrás a sua saia e murmurando-lhe benções ao ouvido; tem os seios bem seguros no corpete, mas suas coxas e ancas parecem compensar este aperto; tráz um vestido de tafetá, com uma saia plissada, que causou grande furor no Outono passado, e todavia ri-se - de tempos a tempos - atraindo o olhar do mundo.
    «Sim, temos ambos razão, mas para não sermos forçados a reconhecer o facto, não seria melhor seguirmos cada um para sua casa?»

in Contos de Franz Kafka, Cavalo de Ferro / Grande Reportagem, col. Nova Europa, Trad, de Nuno Batalha e Hugo Gomes, Lisboa, 2004, p. 147

quarta-feira, maio 31, 2023

FERNANDA BOTELHO

 


AS COORDENADAS LÍRICAS 

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.

A geométrica forma dos meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
- as minhas coordenadas.   

domingo, abril 30, 2023

Fernando Esquio

 


Vaiamos, irmana, vaiamos dormir
nas ribas do lago u eu andar vi
    a las aves meu amigo.

Vaiamos, irmana, vaiamos folgar
nas ribas do lago u eu vi andar
    a las aves meu amigo.

En nas ribas do lago u eu andar vi
seu arco nas maão as aves ferir
    a las aves meu amigo.

En nas ribas do lago u eu vi andar
seu arco na mano a las aves tirar
    a las aves meu amigo.

Seu arco na mano as aves ferir
e las que cantavam leixá-las guarir,
    a las aves, meu amigo.

Seu arco na mano a las aves tirar
e las que cantavam nom nas quer matar,
    a las aves, meu amigo.

In Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim/ Porto 2001, p. 735
Fernando Esquio foi um trovador galego, de quem se conservam nove composições: quatro cantigas de amigo, duas cantigas de amor e 3 cantigas de escárnio e mal-dizer. Terá vivido entre finais do século XIII e inícios do século XIV. 


sexta-feira, março 31, 2023

A NOVA CENSURA LITERÁRIA

 


1, O jornal Público tem nos últimos meses apresentado à venda, em algumas bancas, um livro por mês que foi objecto da censura do Estado Novo. A acompanhar o livro, em edição fac-simile, está um relatório do censor que apresenta as razões por que o livro deve ser censurado. Há quem pense que depois do 25 de Abril, a censura acabou. Na verdade, existem várias formas de censura, a começar pela auto-censura. Mas, nos tempos do PREC, terá vigorado uma espécie de censura com a nacionalização de quase toda a Imprensa, com o saneamento de jornalistas – como aconteceu no Diário de Notícias de que era director-adjunto José Saramago. No entanto, nesse período conturbado, não existiu um mecanismo oficial de censura, como aquele que foi um dos sustentáculos da ditadura. Além de existir liberdade em jornais como o Expresso ou o então criado, e depois desaparecido Jornal Novo, não consta que existisse uma censura editorial no que aos livros diz respeito. Esse terá sido, pelo contrário, um período de anti-censura na exibição cinematográfica, com filmes eróticos ou pornográficos, e provavelmente também nos costumes, no levantar de certas questões, desde formas de vida até às inevitáveis questões políticas. Depois do 25 de Novembro de 1975, algumas figuras que fizeram parte do Estado Novo regressaram à televisão, como o popular historiador José Hermano Saraiva. Ou seja, o que terá existido de censura, partiu de um “ar do tempo”, do espírito de uma época efervescente.

2, Recordo um diálogo, numa livraria, entre uma cliente e um livreiro, em volta de um livro de Mário Zambujal. A cliente pretendia que o livreiro assegurasse que aquele livro não continha passagens tristes ou que a incomodassem, ou seja, pretendia ler um livro sem o pathos que afecta a grande literatura, e mesmo géneros menores como o policial. Creio que Mário Zambujal será uma boa escolha para quem quer fugir aos vários pathos da literatura. Mas também o pode ser Eça de Queiroz. Tudo depende da sensibilidade do leitor. E o acto de leitura, pode ser interpretado como o espreitar um mundo muito próprio de uma outra sensibilidade: a do autor. Muitas vezes o autor escreve como se estivesse no divã de um psicanalista, dando azo às suas pulsões, ainda que expressas com uma linguagem que tenta ser inovadora. Nisto o leitor, que não é psicanalista, ressente-se daquilo que lê, a sua sensibilidade é afectada. É talvez por isso que existem poucos leitores, e os que existem lêm na sua maioria best-sellers de José Rodrigues dos Santos ou Dan Brown ou outro autor que estiver na moda. A leitura de determinadas obras exige um esforço, e uma dureza, que não se coaduna com a vida que as pessoas levam. Por isso, a um livro preferem ver uma telenovela, uma série, ou um blockbuster como a saga de 007. Algo que as entretenha da dureza da realidade (“Go, go, go, said the bird: human kind Cannot bear very much reality”. escreveu T. S. Eliot num dos versos de Quatro Quartetos). A literatura é por vezes cruel para com o leitor, para com a sua sensibilidade, que o autor na sua grandiloquência admite desprezar.

3, Já aqui referi alguns autores que terão a capacidade de escrever pensando num determinado – e alargado – público, ou se quisermos, terão uma literatura com menos pathos (Mário Zambujal, J. Rodrigues dos Santos, Dan Brown). A estes gostaria de acrescentar outros: Roald Dahl, Ian Fleming, Enid Blayton, Agatha Christie. Roald Dahl, foi um escritor britânico, autor de livros para crianças (e também para adultos). Ian Fleming foi um militar, jornalista e escritor britânico que escreveu romances de espionagem, tendo sido o criador do famoso agente James Bond, o 007. Os seus livros, escritos entre os anos 1950 e 1960 deram origem aos famosos filmes de James Bond. Quanto a Enid Blayton, ficou celebre pela série de livros de aventuras para um público juvenil, Os Cinco. Também estes tiveram adaptações audiovisuais. Agatha Christie, foi um dos grandes nomes do policial, criadora das personagens Hercule Poirot e Miss Marple. O que têm em comum estes quatro escritores para além do seu grande sucesso junto do público? Foram todos, nos últimos tempos, alvo de censura por parte das suas editoras. Essa censura foi feita com a ajuda de um grupo de pessoas, chamado “leitores de sensibilidade” (“sensitivity readers”). Sendo estes autores Best-Sellers, quer para um público infanto-juvenil, quer para um público interessado no romance policial e de espionagem, ou seja, para um público que prefere uma literatura mais ligeira, longe da grandiloquência literária, torna-se um pouco difícil perceber em quê estas obras feriram a sensibilidade destes leitores. A resposta estará num revisionismo woke, que chega agora à literatura. A questão que se coloca, depois da obra destes autores ter sido tocada pelos “leitores de sensibilidade” é saber até onde irá esse revisionismo completamente intolerável. Será que chegarão às grandes obras da literatura mundial? E mesmo que não cheguem, o facto de terem reescrito obras de 4 autores – que para muitos leitores estão entre os seus preferidos – é já demasiado grave.