terça-feira, dezembro 31, 2024

LIVROS EM 2024

 


1, No que respeita à actualidade geral, o ano de 2024 foi marcado pela continuidade. A guerra na Ucrânia continuou, a guerra entre Israel e o Hamas também continuou com o genocídio do povo palestiniano por parte de Israel. A guerra é estúpida, este genocídio praticado por quem sofreu há 80 anos um dos mais ignóbeis genocídios da história, é profundamente estupido e desumano. No entanto, não podemos culpar o povo judeu, mas o líder político do Estado de Israel, Benjamim Natanyahu. A vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, em Novembro, foi outro acontecimento que só a partir de Janeiro de 2025, quando Trump entra em funções, se poderá avaliar. Mas, este segundo mandato parece vir a ter uma diferença: a presença de Elon Musk na administração de Trump. Musk é um dos homens mais ricos do mundo, um excêntrico perigoso que sonha conquistar Marte, e que comprou a rede social Twitter e a transformou no X. Mas, ainda recentemente Musk apoiou a extrema-direita alemã da AfD, o que mostra que a extrema-direita que vai ganhando eleições um pouco por todo o mundo, tem do seu lado o homem mais rico do mundo. E isso torna o mundo mais perigoso do que nunca, porque desenha uma distopia (Musk está também, como outros multimilionários de Sillicon Valey, apostado na IA, e num estranho dispositivo para implantar na mente humana). Por cá, a nova AD ganhou, por escassa margem sobre o PS, as eleições legislativas, formando Luís Montenegro um governo PSD-CDS. Lucília Gago abandonou, por fim de mandato, a PGR e, de certa forma “deu” a António Costa o lugar de Presidente do Conselho Europeu.

2, 2024 foi um ano de tantos centenários que o V centenário do nascimento de Luís de Camões ia sendo esquecido. Do ponto de vista editorial, Isabel Rio Novo andava há já cinco anos a preparar uma biografia de Camões: Fortuna, Caso, Tempo e Sorte (Contraponto, 2024), um grosso volume de mais de 700 páginas resume a vida do autor d’ Os Lusíadas. Frederico Lourenço (que tem vindo a publicar uma tradução “laica” da Bíblia, traduzida a partir do grego) organizou uma antologia da poesia camoniana, Camões – Uma Antologia (Quetzal, 2024), onde metade do volume de cerca de 600 páginas é ocupado com comentários do professor da Universidade de Coimbra. Registe-se ainda a publicação do teatro de Camões, num volume com “prefácio, fixação de texto e notas” de Sérgio Guimarães de Sousa, editado pela Assírio & Alvim. Para quem quiser ler toda a obra de Camões, ela está publicada na E-Primatur, em três volumes, organizados por Maria Vitalina Leal de Matos. No campo mediático, Jorge Reis-Sá (que este ano publicou a reunião da sua poesia no volume Prado do Repouso – edição A Casa dos Ceifeiros), tem vindo a apresentar na RTP 3, o programa 1000xCamões, onde conversa com figuras de várias áreas sobre a poesia camoniana. A RTP 2 optou pela leitura dos 10 cantos de Os Lusíadas feita em outros tantos episódios. As comemorações vão estender-se até 2026 e têm um carácter político (como não podia deixar de ser, tratando-se de Camões): a nova ministra da cultura, Dalila Rodrigues, nomeou José António Bernardes, em substituição da anterior comissária, Isabel Marnoto. Para já, o governo AD destina 2,2 milhões de euros, para comemorar Camões, no OE para o ano de 2025.

3, Mas no que diz respeito a centenários, 2024 não foi só o de Camões. Dois importantes poetas portugueses nasceram há 100 anos: António Ramos Rosa e Alexandre O’ Neill. De O’ Neill a Assírio & Alvim republicou dois livros, Tempo de Fantasmas (primeira edição de 1951) e No Reino da Dinamarca (primeira edição 1958). Sobre Alexandre O’ Neill há ainda uma exposição, “No Reino de O’ Neill”, comissariada por Joana Meirim (que publicou o ensaio Uma Carta à Posteridade, Jorge de Sena e Alexandre O’ Neill – Imprensa Nacional, 2024) e que conta com um texto inédito de Adília Lopes intitulado “O’ Neill e a tia da aletria”. Quanto a António Ramos Rosa, poeta essencial da poesia portuguesa, mas também um teórico da própria poesia, alguém que publicou cerca de cem livros, caiu um absoluto silêncio e esquecimento sobre o seu centenário. A Assírio & Alvim tem vindo a publicar a sua obra, de que já foram publicados dois volumes (em 2018 e 2020), e existe uma antologia, Poesia Presente (Assírio & Alvim, org. de Maria Filipe Ramos Rosa, com prefácio de J. Tolentino Mendonça). Já sobre Franz Kafka, nome monstruoso da literatura mundial, não houve por cá esquecimentos editoriais. Destaque-se, entre as várias obras publicadas os Contos, Parábolas, Fragmentos (Relógio d’ Água, com tradução de António Sousa Ribeiro, ver lista) e o primeiro volume (O Artista da Fome, tradução de Bruno C. Duarte) de 3 com que a E-Primatur pretende publicar toda a prosa breve do autor de O Processo. E ainda o centenário do nascimento de Bernardo Santareno, talvez o melhor dramaturgo português do século XX.

4, O Porto é hoje uma cidade descaracterizada. A culpa, como em muitas outras cidades europeias, é do turismo. Isso levou a uma especulação imobiliária que está a transformar a cidade, o que fez com que a Livraria Latina, fundada em 1942, e pertencente desde há vários anos ao grupo Leya, fechasse. A Livraria Latina situava-se no número 1 da Rua de Santa Catarina, uma artéria pedonal, de comércio de rua, das mais movimentadas do Porto. Foi uma das principais livrarias do Porto, juntamente com a saudosa Livraria Leitura e a Livraria Lello – que das três, e graças à arquitectura do edifício onde está, se tornou num lugar de peregrinação turística. Mais à frente, na mesma Rua de Santa Catarina, funcionava, desde há cerca de 25 anos, uma loja da FNAC que este ano fechou. Uma das características desta loja (replicada noutras), era funcionar como uma biblioteca: as pessoas iam à FNAC, escolhiam um livro e sentavam-se num dos sofás que por lá existia (se houvesse lugar). Algo replicado por algumas livrarias. A FNAC, quando apareceu em Portugal foi algo de novo: podiam-se comprar discos, filmes e livros no mesmo espaço. Nessa altura, a Internet dava os primeiros passos, e os computadores – mesmo portáteis – tinham uma gaveta para colocar o cd com disco ou filme. Hoje, curiosamente, é o livro que sobrevive aos cd’s de discos e filmes, substituídos por plataformas on-line. Portanto, o livro resiste, um objecto com séculos. Com séculos talvez se encontrem alguns exemplares de livros que fazem parte da Biblioteca Municipal do Porto. Este ano fechou para obras de alargamento, com um projecto de arquitectura de Eduardo Souto Moura. Prevê-se que reabra daqui a quatro ou cinco anos. Ora, tendo em conta que é a segunda maior biblioteca portuguesa, com depósito legal, que só lá se encontram livros e jornais essenciais para investigações académicas ou pessoais, é de lamentar que não se arranjasse uma solução em que a biblioteca continuasse a funcionar. Afinal Souto Moura não é um dos principais arquitectos mundiais?

5, Os prémios literários fazem naturalmente parte do mundo literário (já o podia dizer o senhor de La Palisse). Há prémios de dois tipos: os de reconhecimento de uma obra literária, e os que premeiam inéditos, ou seja, neste caso aspirantes a escritores ou escritores que procuram publicar uma obra e ter uma distinção. Entre os dois tipos de prémios há um fosso, com variantes. Mas, na generalidade os prémios literários servem para homenagear figuras da literatura (Camões, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís ou mesmo Ernesto Sampaio, no caso português). O Nobel da literatura foi este ano para a escritora sul-coreana Han Kang, de 53 anos (uma das mais jovens a receber o Nobel da literatura), o Prémio Camões foi para a poetisa brasileira Adélia Prado, o Prémio José Saramago (inéditos) foi para Francisco Mota Saraiva (que em 2023 tinha ganho o prémio literário revelação Agustina Bessa-Luís), o Vergílio Ferreira (inéditos) para António Garcia Barreto. Enfim, será longa a lista de premiados com os vários prémios que dão a possibilidade de publicar a obra a concurso, para além do autor em alguns casos também receber uma (pequena) importância pecuniária. No entanto, algo surpreende quanto ao prémio de Melhor Livro de Poesia atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores. Foi para o poeta Jorge Gomes Miranda (JGM) pelo livro Emoções Artificiais (2023, Gradiva). Em entrevista de JGM ao jornal Público ficamos a saber que se trata de um livro sobre a tecnologia, a Inteligência Artificial, a robótica. O autor, que iniciou a sua actividade como poeta em meados da década de 1990, diz na referida entrevista, “Esperemos que os robôs do futuro sejam mais humanos do que certos humanos”. Essa humanização dos robôs pode ser constatada nos poemas que estão disponíveis on-line. Será um livro tecnofílico, mais surpreendente por ser um livro de poesia que pelo tema abordado, que na ficção científica vem de longe, de Mary Shelley que em 1818 publicou Frankenstein. Que numa altura em que a realidade parece ultrapassar a ficção científica, sejamos acolhedores do que enforma o pós-humano, que não é senão o pior do humano, numa lógica capitalista, é algo, no mínimo, estranho. Ou ingénuo.

 Segue-se, abaixo, uma lista de livros; uns lidos, outros desejos de leitura.

POESIA

Adília Lopes – Dobra (Assírio & Alvim)

José Carlos Barros – Taludes Instáveis (Dom Quixote)

Ana Hatherly – Tisanas (Assírio & Alvim, org. Ana Marques Gastão)

Filipa Leal – Adrenalina (Assírio & Alvim)

Sebastião da Gama – O Inquieto Verbo do Mar – Poesia Reunida (Assírio & Alvim)

Marcos Foz – Enublado Dizes (Bestiário)

Nuno Moura – Cantos (Douda Correria)

T. S. Eliot – A Terra Devastada (Assírio & Alvim, trad. Jorge Vaz de Carvalho)

FICÇÃO

Ana Teresa Pereira – Como Numa História de William Irish (Relógio d’ Água)

Teresa Veiga – Vermelho Delicado (Tinta da China)

Stefan Zweig – Amok (Relógio d’ Água)

Knut Hamsun – Fome (Relógio d’ Água)

Thomas Bernhard – Antigos Mestres (comédia) (Documenta)

Jon Fosse – Uma Brancura Luminosa (Cavalo de Ferro)

Franz Kafka – Contos, Parábolas, Fragmentos (Relógio d’ Água)

NÃO-FICÇÃO

AA VV – História Global da Literatura Portuguesa (Temas e Debates)

AA VV – O Que Lêem os Escritores (Tinta da China)

AA VV – Adília Lopes: do Privado ao Político (Documenta)

Yuval Noah Harari – Nexus (Elsinore)

Maurice Nadeau – História do Surrealismo (Assírio & Alvim)

Wenceslau de Moraes – Paisagens da China e do Japão (Livros de Bordo)

António Marques – Paz (Edições 70)

Peter Singer – Libertação Animal, Hoje (Edições 70)

João Barrento – Os Infinitos Modos da Palavra – Caminhos e metamorfoses da poesia portuguesa contemporânea (Companhia das Ilhas)

sábado, novembro 30, 2024

A democracia na América de Trump e Elon Musk

 


1, De uma moeda lançada ao ar, ou saí cara ou coroa. Das eleições presidenciais norte americanas, disputadas no passado dia 5 entre Kamala Harris (partido Democrata) e Donald Trump (partido Republicano), ganhou Donald Trump, o candidato que foi presidente dos EUA entre 2016 e 2020. A vitória de Trump voltou a soar quase como um escândalo entre os milhares de jornalistas de países ocidentais que foram, insones, em gesto de vassalagem, cobrir o acontecimento na madrugada do dia 5 para 6. Trump é um perigo para o mundo? Sim, em determinadas matérias como as alterações climáticas é, de facto, um perigo, porque faz parte da “vanguarda” de extrema-direita negacionista que parece querer exterminar as democracias representativas liberais.

2, É longa no tempo a vassalagem da Europa em relação aos EUA. É certo que os Estados Unidos ajudaram a Europa a livrar-se do nazismo, durante a II Guerra Mundial. Mas os mesmos EUA lançaram duas bombas nucleares sobre Hiroxima e Nagasáqui. Não bastou lançarem uma bomba sobre Hiroxima, que terá morto cerca de 70 mil pessoas, para os americanos mostrarem ao mundo e ao Japão que detinham a arma mais mortífera que alguma vez existiu na história da Humanidade. Era necessário mais uma? Leo Szilard, um dos cientistas que esteve ligado ao desenvolvimento da bomba atómica afirmou: “Se tivessem sido os alemães a lançar bombas atómicas sobre [as] cidades ao invés de nós, teríamos considerado esse lançamento como um crime de guerra, e sentenciado à morte e enforcado os alemães considerados culpados desse crime no Tribunal de Nuremberg.” As duas bombas nucleares lançadas pelos EUA, que levaram à rendição do Japão e ao fim da II Guerra Mundial, mostram a cultura beligerante Norte-Americana, que permaneceu durante a chamada guerra fria. Intervenções na América Latina, promovendo regimes fascistas ou de extrema-direita, como o de Pinochet; intervenção directa na Asia, com a participação na guerra do Vietname, etc. E, não esquecer, já este século, a invasão do Iraque cujos motivos foram forjados pelo presidente George W. Bush, e que até tiveram a “bênção” do primeiro-ministro português da altura, Durão Barroso.

3, Afinal os EUA são o país dos westerns, dos cowboys nos seus duelos com revolveres, algo que o cinema de Hollywood retratou e mitificou, e com que várias gerações de europeus cresceram. Os EUA são o Império, como outrora na Roma imperial foram os romanos que andaram por várias regiões da Europa. Daí que quando o PCP chama imperialistas aos Estados Unidos acerte, ao contrário de outras posições de política externa deste partido centenário. O imperialismo, a dependência da Europa face aos EUA é total: na cultura – principalmente na cultura de massas –, na economia, na tecnologia (as grandes empresas de Silicon Valley), na investigação de ponta nas mais variadas áreas, na forma como manobram a política externa dos países que são seus aliados (evidentemente que a China e a Rússia estão do outro lado, numa espécie de nova guerra fria), no apoio que dão a Israel para levar a cabo um genocídio sobre os palestinianos da Faixa de Gaza. Sem dúvida que por isto e muito mais os EUA têm um passado – e presente – negro na História. Mas nada disso impede essa vassalagem pelo chamado “sonho americano” ou “american way of life”.

4, Mas a 5 de Novembro, os americanos voltaram a eleger Donald Trump como presidente dos EUA. Trump, o palhaço e a sua troupe. Alguns nomes desta troupe, desta nova administração, já são conhecidos. Linda McMahon, uma empresária de wrestling (luta livre), é apontada para secretária da Educação, o equivalente ao ministro da educação em Portugal. A escolha de Trump pode – e é – estupida, mas tem o seu sentido. A escola é um lugar de violência. A escola “antiga”, onde o professor exercia e violência da palmatória (entre outras), até à escola mais ou menos actual onde os alunos exercem violência uns sobre os outros, e por vezes, mesmo sobre os professores. Ora, como anedota nada melhor que uma magnata do wrestling para dirigir a educação nos EUA.

5, Mas o grande apoio de Trump veio de um dos homens mais ricos e influentes do mundo: Elon Musk. Musk é dono da Tesla (que fabrica automóveis), da Space X (uma espécie de NASA, cuja ambição maior será ir a Marte), comprou o Twitter e rebaptizou-o de X, a rede social onde estão (quase) todos os políticos do mundo e jornalistas, para além de muita gente anónima. É ainda dono da tenebrosa Starlink, uma empresa que pretende criar um implante cerebral para conectar pessoas e computadores, e entre outras empresas, esteve na fundação da OpenAI, a criadora do Chat GPT. Tudo isto faz dele o segundo homem mais rico do mundo com cerca de 200 billiões de dólares (para fazer uma ideia deste número astronómico, o PIB de Portugal era em 2023 de 287 biliões de doláres e o de Marrocos de 141 biliões). Ora dinheiro é poder, e poder é muitas vezes dinheiro. Trump vai nomear Elon Musk para o cargo de chefia de um grupo de “eficiência governamental”. Trump e Musk, juntos, são a maior ameaça ao mundo. No mandato anterior Trump era um palhaço rico solitário, mas agora é Elon Musk que muito mais que Trump constituiu uma ameaça: pela primeira vez o homem mais rico de Silicon Valley entra na casa branca, e com ele as suas ideias algo tenebrosas. A aliança entre o poder político e o poder económico, ou mais concretamente o poder do olimpo de Silicon Valley, que representa por si só um novo e outro poder, que anda connosco nos nossos bolsos, plasmado neste caso na figura de Elon Musk, o proprietário do X, representa um exponenciar do poder que pode abafar o poder político tal como o conhecemos: baseado numa constituição, em separação de poderes, eleições livres, etc. Ou seja, a imperfeita mas na falta de melhor, democracia representativa. E, nos EUA, a velha democracia nunca esteve tão em perigo.

quinta-feira, outubro 31, 2024

Eduardo Prado Coelho: o último intelectual

 


Eduardo Prado Coelho (EPC) foi, principalmente nos anos 1980 e 1990 e ainda no início deste século, o intelectual por excelência. Sendo também professor universitário, não era, no entanto, um académico fechado na produção de papers para os seus pares. O seu mundo era muito mais cosmopolita que o mundo por vezes fechado e compartimentado da universidade. Era um mundo de vastos interesses: da literatura (contemplando a poesia, o romance, o ensaio), da política (sobre a qual fez análise, mas também participou através da escrita, da militância e de cargos que ocupou), do cinema ou das ciências da comunicação – área onde leccionou, mas também da polémica que por vezes alimentava, outras extinguia. Era, essencialmente, um ensaísta que encontrou nas páginas do jornal Público, durante 17 anos, um lugar de prazer para si e para os seus leitores. Porque EPC foi o que se pode considerar como o último intelectual (português): pelas temáticas que abordava, pela forma como se tornou numa autoridade que tanto falava com espantosa à-vontade sobre a poesia de determinado autor, como deslizava para um comentário político, ou contava uma história passada com a sua amiga Marguerite Duras. Em quase todas as suas intervenções, escritas ou orais (várias vezes era requisitado para falar de algo na televisão), acrescentava algo de novo. A sua crónica semanal – e também a diária –, no suplemento cultural do jornal Público acabou por se tornar única numa altura em que os jornais portugueses já não tinham suplementos literários que convocassem essa figura do intelectual para as suas páginas, como aconteceu noutras alturas com jornais como O Comércio do Porto ou O Primeiro de Janeiro (meados do século XX, para referir apenas dois jornais da cidade do Porto).

Filho do também professor universitário e ensaísta Jacinto Prado Coelho, Eduardo nasce em Lisboa em 1944. Em 1967 já o podemos encontrar a escrever recensões no Diário de Lisboa, e nesse ano organiza uma antologia de textos teóricos sobre o estruturalismo. O primeiro livro escrito pelo seu punho, O Reino Flutuante, é publicado em 1972. Durante o PREC filia-se no Partido Comunista, e publica o livro Hipóteses de Abril (1975); colabora com a RTP onde é autor de vários programas. Em 1982 publica a sua tese de doutoramento, Os Universos da Crítica, uma aplicação do conceito de paradigma de Thomas Kuhan aos estudos literários, e um ano mais tarde saí um livro sobre o cinema português: Vinte Anos de Cinema Português:1962-1982. Embora afirme, numa entrevista à RTP, em 2004, que gostaria de ter tempo para escrever romances, a sua incursão mais funda como criador literário será o diário que escreveu aquando da sua residência em Paris como adido cultural da embaixada portuguesa, Tudo o Que Não Escrevi (1992, 2 volumes).

Apesar de em 2004 ter publicado cinco livros – entre os quais uma antologia das crónicas que publicou quase diariamente no Público (Crónicas no Fio do Horizonte) – a obra de EPC tem vindo a ser publicada pela Imprensa Nacional desde 2010. Sob a organização de Margarida Lages, foram até 2023 publicados cinco volumes da Biblioteca Eduardo Prado Coelho. Desses cinco volumes, dois são reedições das obras: A Mecânica dos Fluídos (1984/2012) e Os Universos da Crítica (1982/2015); um outro – A Poesia Ensina a Cair (2010) – estava já preparado por EPC, antes deste falecer em 2007. Os dois volumes que podemos considerar organizados por Margarida Lages são Crónicas – Política e Cultura (2019) e Jogos Infinitos – Ensaio e Crítica (2023). É sobre este último volume que aqui escrevo algumas notas de leitura.

Importa, sobretudo para o leitor que não leu E. Prado Coelho, citar o autor na sua introdução a A Poesia Ensina a Cair: “Embora traga o meu nome associado ao estruturalismo, não tive nunca uma abordagem secamente estrutural. Sempre me deixei afectar por uma linguagem que não chegava a ser poema – por incapacidade minha –, mas que se instituía como crítica em que a poesia estava sempre presente.” Ora, esta citação resume bem o estilo de Prado Coelho: uma linguagem que vai do poético à teoria. É essa linguagem poética que permite seduzir o leitor, limpar a aridez da teoria. Pois por estes Jogos Infinitos – título e texto desde logo poético – passam nomes da filosofia, das ciências sociais e da literatura: José Miguel Silva, Filomena Silvado, Maria Filomena Molder, Blanchot, Deleuze, Derrida, Foucault, Silvina Rodrigues Lopes, Bernard Stiegler, Guy Debord, Kant, Agamben, Isabel Allegro Magalhães, Nietzsche, Vergílio Ferreira, João Barrento ou Sartre, entre outros. No final do livro existe um índice onomástico de cinco páginas. Ou temas como a crítica entre a ética e a estética, o jogo, a modernidade e a pós-modernidade, a fotografia, a “sociedade do espectáculo”, a técnica, Portugal, a tradução, a dor ou um ensaio, “situações de infinito” – cujo título será aproveitado para um outro livro –, que parte de uma frase de Vergílio Ferreira, “Da minha língua vê-se o mar”, para construir uma série de variações.

A organização de uma obra como a de Eduardo Prado Coelho pode ser uma tarefa quase ciclópica (o mesmo acontecendo com a de Eduardo Lourenço, que tem vindo a ser publicada pela Fundação Gulbenkian). No entanto, não se percebe que critérios presidem a essa organização e publicação. EPC escreveu centenas de crónicas no Público; escreveu mais de duas dezenas de livros, terá artigos publicados noutros jornais, em prefácios, em revistas académicas, etc. O critério da Biblioteca Eduardo Prado Coelho parece ser antológico – quer quanto aos textos quer quanto aos livros a reeditar. Mas será mesmo? Haverá um critério?

 A organização de Margarida Lages peca por alguns erros um pouco irritantes: na introdução escreve a organizadora que “(…) os textos se encontram na sua maioria publicados no jornal Público. Quando tal não acontece, a referência encontra-se no final de cada crónica ou artigo” (p. 8). Ora, não existe nenhuma indicação no final de textos que não foram publicados no Público. Também os textos não se encontram datados; as “notas de rodapé”, por vezes são escassas, outras vezes estão a mais. Ainda uma referência para a bibliografia que Margarida Lages decidiu incluir no final do volume e que não faz qualquer sentido, a não ser o querer uma legitimidade académica para uma obra que nada deve à academia, antes pelo contrário.  


segunda-feira, setembro 30, 2024

Os fugitivos


 

1, Sábado, 7 de setembro, de manhã, Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus. Cinco reclusos, 4 dos quais tidos como os mais perigosos desta prisão de alta segurança, fogem com a ajuda de duas escadas e três elementos que se encontravam no exterior. Fuga mediática – um dos fugitivos, um argentino, foi condenado no seu país por rapto e possível homicídio; fuga possibilitada pela inépcia dos guardas prisionais.

2, A partir deste facto temos várias abordagens que vão da político-sindical sobre o estatuto dos guardas prisionais às teorias de Foucault e Deleuze sobre as “sociedades disciplinares” (Foucault) e as “sociedades de controle” (Deleuze), ou ao questionamento das prisões como forma de a sociedade punir aqueles que fogem às suas regras (mais uma vez Foucault, principalmente em Vigiar e Punir, mas também Angela Davis), ou, ainda, um campo ficcional onde aparecem filmes e séries como Bonnie e Clyde (1967, realização de Arthur Penn) ou a série Prison Break (2005), ou na literatura, Jean Genet – o escritor criminoso, “a criança criminosa” –, ou um conto de Elisabeth Bishop (Prisão), ou um poema de Oscar Wilde…

3, O ex-ministro da cultura e de novo comentador político, Pedro Adão e Silva, escrevia a 10 de Setembro no Público, que “temos presos a mais e não guardas a menos”. E adiantava números: “entre os 47 países do Conselho da Europa, temos o valor mais elevado para a duração média de penas de prisão, com uns notáveis 30 meses (a média é de 12)”. Na verdade, se formos ver o que se tem passado nos últimos anos, o que encontramos é um excesso da aplicação da prisão preventiva. Como se fosse uma vingança por parte dos juízes por Portugal ter um dos códigos penais mais leves, pelo menos no que respeita ao limite de penas – 25 anos. Ora, para além destes números estatísticos, importa saber em que condições os presos cumprem a privação da liberdade nas prisões portuguesas. Porque nem sequer todos os condenados são culpados. Na edição em que o jornal Público noticiava a fuga dos cinco reclusos de Vale de Judeus, apresentava também uma grande reportagem com Diana Ríos Rengifo, uma indígena peruana que tem lutado pela preservação da Amazónia. Mas a sua luta foi interrompida em Portugal, quando foi encontrada na sua bagagem cocaína. Com uma criança de pouco meses, Diana passeia-se por uma ala da prisão de Santa Cruz do Bispo, onde estão outras mulheres e outras crianças. Não é o facto de ter sido mãe ou o de ter sido uma activista pela preservação da Amazónia que a tornam inocente do tráfico de droga, mas pelo documentário de 20 minutos realizado pelo Público, tudo leva a crer que Diana Ríos Rengifo é uma vítima, que não sabia nem tinha intenção de fazer tráfico de droga. A despenalização do consumo de estupefacientes, veio, de forma completamente justa, retirar muita gente das cadeias.

4, Residirá nestes fugitivos uma semente de mal, sobretudo no argentino? Talvez, mas essa questão levar-nos-ia para a complexa questão do mal. Mas o que se poderá dizer sobre a população que ocupa as 49 cadeias portuguesas? Vidas precárias? Vidas interrompidas? Vidas encerradas num labirinto – por vezes de desespero? O filósofo Giorgio Agamben recuperou a figura do direito romano arcaico do Homo Saccer, aquele que pode ser morto sem que o assassino seja castigado. É isso que também se passa nas prisões, quer por parte da falta de cuidado de guardas e outros funcionários para com os presos, quer por parte dos presos entre si. As prisões são o local por excelência do crime. Repare-se: se juntarmos um alargado grupo de homens (ou mulheres, embora a população prisional portuguesa seja maioritariamente feminina), onde está desde o incriminado, embora na realidade inocente; o preso preventivo; o preso homicida com personalidade violenta; o preso por corrupção ou de “colarinho branco”, etc, temos um caldo de violência. Essa violência também existe no outro lado, nos guardas prisionais e demais pessoal que faz parte da prisão como instituição. Na verdade, o mundo carcerário é um mundo do qual a sociedade, e sobretudo o poder político (tanto à direita como à esquerda), nada quer saber. Não importa que um preso mate outro, que por falta de cuidados médicos um preso venha a morrer, que um preso se suicide numa prisão onde talvez não exista um psicólogo. Nada disto importa, embora a filosofia em Portugal seja, ao contrário da dos Estados Unidos, de reinserção social da pessoa presa depois desta cumprir a pena – existe mesmo um Instituto de Reinserção Social.

5, Mas, na manhã daquele 7 de Setembro de 2024, os alarmes tocaram – na prisão de Vale de Judeus e pouco depois nas televisões. A fuga de presos de um Estabelecimento Prisional é algo que desencadeia todo um espectáculo – raro, por isso mesmo mais precioso. O director da Polícia Judiciária, tão solicito como um James Bond à portuguesa, veio logo dar uma conferência de Imprensa onde apresentou os rostos dos fugitivos, desfigurados por uma desumanidade que os pretendia colocar no lugar do monstro, e realçou que os fugitivos eram bastante perigosos. Repare-se e repita-se: perigosos, perigosos, perigosos… porque nunca é de mais realçar que andam cinco perigosos fugitivos a monte. Assim se faz a “instalação do medo” (título certeiro de um livro de Rui Zink). Fechem as janelas, tranquem bem as portas, mantenham-se em casa.

6, Mas existe uma questão real sobre as prisões. Michel Foucault, nos anos 1970 com o seu livro Vigiar e Punir – Nascimento das Prisões (ed. portuguesa Edições 70), também por essa altura com um activismo político sobre as prisões tornou a prisão um lugar a ser pensado pelas ciências humanas (pelo menos). Também a activista e filósofa Angela Davis, a partir de uma perspectiva da luta pelo direito dos negros nos Estados Unidos (onde a maioria da população prisional é negra), mas também de uma luta contra o capitalismo, tem questionado as prisões. O seu livro As Prisões Estão Obsoletas? (editado originalmente em 2003, com edição portuguesa da editora Antígona em 2022) coloca questões radicais. A fuga de Vale de Judeus teve pelo menos o mérito de colocar os holofotes sobre uma prisão e o universo prisional em Portugal. Daí a revelar a realidade desse universo vão alguns passos. Mas o questionar, para que servem as prisões? ou, como o título do livro de Angela Davis faz de modo talvez mais certeiro, As Prisões Estão Obsoletas?, é já algo de outra ordem, mais difícil de alcançar – porque implica pensar, sair de certezas pré-determinadas de uma cultura. Isso não obsta a que exista já um movimento anti-carcerário.

Ao cimo imagem divulgada pela GNR, com a cara dos 5 fugitivos. 

sábado, agosto 31, 2024

Rui Manuel Amaral

 


Um passarinho malicioso

Lazaros Leumorfis tinha o hábito de segurar a cabeça com as mãos porque acreditava que a qualquer momento esta podia desprender-se do pescoço e cair ao chão. Por isso, nunca se distraia da sua importante tarefa, segurando a cabeça com o maior zelo de que era capaz.

Mas fosse porque algum passarinho malicioso lhe soprava qualquer coisa ao ouvido, fosse por outro motivo que não procurei determinar, o certo é que houve um momento em que Lazaros se distraiu e largou a cabeça. Esta caiu instantaneamente ao chão, saltou duas ou três vezes com a elasticidade de uma bola de borracha, e rolou rua abaixo e em contramão, rumo à Place Dauphine, que brilhava lá ao longe.

Em que estado de espírito se encontrou Lazaros depois deste infeliz acontecimento, é algo que não nos atrevemos a imaginar. Diremos apenas que não se poupou a esforços para recuperar a cabeça, procurando-a por toda a parte, durante dias a fio. E de bom grado teria continuado a procurá-la se entretanto vários assuntos de maior importância o não tivessem chamado a outro lado.

In Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010, pp.  17-18


terça-feira, julho 30, 2024

A POLÍTICA NA AMÉRICA



1, Há certas pessoas em Portugal e no ocidente que têm uma grande admiração pela democracia americana. São políticos, jornalistas, professores de relações internacionais, etc. Enfim, a América, os Estados Unidos da América, são o Império (como o filósofo Toni Negri assinalou) ou “home of the brave”, numa feliz expressão de Laurie Anderson. Foi vendo filmes e séries americanas, cantando música feita nos EUA, vestindo jeans, ou mesmo lendo autores americanos que várias gerações cresceram, em Portugal e um pouco por todo o mundo, salvo as devidas excepções de países comunistas como a China. No fundo, vivemos, no aspecto económico e político, completamente dependentes dos Estados Unidos – e a União Europeia não conseguiu mudar esta situação, antes pelo contrário, como se pode ver na forma como EUA e UE têm alimentado a guerra na Ucrânia. Imbuídos na cultura americana esquecemos a sua principal característica: a violência. 

 2, Ora, o mês de Julho agora findo, foi particularmente turbulento e violento em relação à política americana. A 13 de julho, num comício, o ex-presidente Donald Trump, que procura pelo partido Republicano voltar a habitar a casa branca, foi alvo de uma tentativa de assassinato. Uma bala, disparada por um atirador de 20 anos, que não se sabe ainda como, estava no telhado de um edifício a poucos metros onde Trump discursava, passou de raspão pela orelha de Trump. Tornaram-se icónicas as imagens e fotografias de um Donald Trump, ladeado por elementos dos serviços secretos, com a cara ensanguentada, depois de procurar os sapatos, erguer o punho e gritar, “lutem, lutem, lutem”. Enfim, não passou de um arranhão, mas poderia ter sido algo grave. Ironia do chamado destino, o atirador (que foi morto pelos tais serviços secretos e que ainda hoje não se sabe como conseguiu subir a um telhado e não ser visto pelos serviços secretos) utilizava uma arma cuja comercialização sem restrições foi aprovada por Trump. 

3, Nada disto é novo na política americana: presidentes assassinados, candidatos a presidentes alvo de tentativas de assassinato, etc, etc. Parecia é que os Norte-Americanos já não estavam habituados – o último presidente alvo de uma tentativa de assassinato foi Ronald Reagan no início da década de 1980. Mas os USA, tinham até há pouco tempo um outro problema político: Joe Biden. Biden era o presidente candidato, pelo partido Democrata, a presidente nas próximas eleições de Novembro. Mas, tardiamente descobriu-se que os 81 anos de Biden lhe pesavam demasiado, o seu estado cognitivo e motor já não é o melhor, como ficou demonstrado num debate com Trump. De vários lados do partido Democrata surgiram pedidos para que Biden renunciasse; os financiadores da campanha ameaçaram não financiar, etc, etc, muito se discutiu o destino de candidatura democrata para enfrentar a republicana de Trump. Até que Biden, Isolado com covid, decide tomar a decisão que todo o mundo (urbi et orbi) esperava, renuncia a favor da sua vice-presidente Kamala Harris. E, de repente, a figura de Biden é substituída pela de Kamala Harris; Kamala em todos os ecrãs televisivos a ser saudada pelo casal Clinton, por Nancy Pelosi, e até pelos mais renitente casal Obama. A convenção dos democratas é só em meados de Agosto, mas já ninguém terá coragem de fazer frente ao balanço que a candidatura de Kamala leva. Os comentadores, que por todas as estações de tv do mundo têm andado atarefadíssimos a comentar as turbulências da política norte-americana, tentam agora adivinhar quem será o vice que kamala Harris escolherá para o seu “ticket”, e o quão decisivo isso será para “roubar” eleitorado a Trump e ganhar as eleições. 

4, Porque estas eleições têm bastante de decisivo em relação ao que será o mundo nos próximos quatro anos. Uma vitória de Kamala Harris implica a continuação da política de Biden, com a ideia de que a Ucrânia tem que ganhar a guerra à Rússia. Uma vitoria de Trump acabará com a guerra na Ucrânia, cuja escalada põe o mundo em perigo, quase à beira de uma III Guerra Mundial – a tal que não pode existir. Mas a vitória de Trump tem implicações claramente negativas, a começar pela negação das alterações climáticas. Enfim, estes candidatos(as), mesmo agora com Kamala Harris, parecem ser um erro de casting. Mas isso decorre da especificidade da democracia americana: são os eleitores republicanos e democratas que elegem em primárias o candidato de cada partido (algo que o partido Livre tem tentado fazer em Portugal, nem sempre com sucesso). 

5, O aristocrata Alexis de Tocqueville viajou pela América no início do século XIX – há cerca de 200 anos – e escreveu o clássico Da democracia na América. A democracia americana é já bastante antiga, tem coisas que são inovadoras – ainda – em relação a outras democracias, mas está anquilosada no seu passado. Se há algo que sempre me espantou, foi o seu bipartidarismo: ou se é democrata ou republicano. Para além duma filosofia pouco solidária que caracteriza o american way of live, os EUA interferiram na política de muitos países ao longo dos últimos cem anos – lembremos a invasão do Iraque promovida por George W. Bush, no início deste século. Ou seja, os EUA são o Império (político, económico, mas também cultural) ao qual a União Europeia – incluindo Portugal – presta vassalagem.

domingo, junho 30, 2024

Jaime Rocha

 


ARAUCÁRIA

Para Tarik Boubiya

As raízes descem
para a terra profunda,
mas o sol aguarda que os ramos
subam e caiam no mar,
como um barco secreto
que surge na praia.

Os poetas lêem sob as árvores
enquanto os gatos e os pássaros
continuam a sua estrada sem destino.

A chuva cai de novo
molhando a muralha adormecida.

A praia alonga-se em grandes 
passeios de mármore, desfeitos
pelos objectos e pelo vento.
E tudo à volta se concentra
num único lugar, uma zona concreta
onde os peixes e os cabazes descansam.

Há uma fervura nas ruas,
um aroma sagrado,
um grande parque de poesia.

(El Jidida, Marrocos, 2013)

Jaime Rocha, in Voo Rasante, Mariposa Azual, Lisboa, 2015, p. 70
Jaime Rocha, pseudónimo de Rui Ferreira e Sousa, nasceu na Nazaré em 1949. Jornalista de profissão, tem dividido a sua carreira literária entre ficção, poesia e dramaturgia. Tonho e as Almas (1984, ficção, Relógio d´ Água) e A Perfeição das Coisas (1988, poesia, Caminho) são os seus livros inaugurais. 

sexta-feira, maio 31, 2024

João Camilo

 


INDECISÃO

O excesso dos sentimentos - a perda,
o desejo - é nocivo para o poeta.
Por isso ele se distância de si mesmo,
depois observa-se da outra margem do rio;
tenta então dominar o fluir das palavras.

As paixões são necessárias ao surgir
da linguagem e à poesia; mas se queimam
a mente e o coração, perturbam o espírito do
poeta e ele cala-se. Sem medida nem
peso, sem limites marcados, perdemo-nos
na extensão do vazio. Para aquele
que se encontrou consigo mesmo o
amor que já não é, deixa de ser e não 
se transforma em nostalgia inútil; e o 
amor que ainda não cresceu imobiliza-se
na sua indecisão. 

Sozinho em casa, no refúgio do espírito,
o poeta aprende a respirar. Aguarda
a chegada da noite profunda e
recorda-se dos anos em que teve família
e foi feliz, há tanto, tanto tempo já.

João Camilo, Elogio do Silêncio, Casa do Sul Editora, 2005, pp. 75-76.
João Camilo nasceu em 1943. É desde 1975 autor de livros na área da ficção, ensaio e predominantemente poesia, onde o sujeito lírico se ocupa do quotidiano. Tem leccionado em várias universidades estrangeiras. Recentemente publicou o ensaio Reflexões Sobre a Poesia (edição Do lado esquerdo).

segunda-feira, abril 29, 2024

José Carlos Barros



O CRÍTICO LITERÁRIO VAI DE FÉRIAS À PROVINCIA

Da varanda do meu quarto
viam-se
em vez das aliterações 
o vale

e os pinheiros-bravos
a subir
o monte. Acordava-se assim
a olhar as coisas

concretas. Como se
afinal
além da literatura houvesse

mundo: casas,
pessoas, pássaros
que voam mesmo

José Carlos Barros, Taludes Instáveis - Poemas Escolhidos -, D, Quixote, 2024, p. 231
José Carlos Barros (Boticas, 1963), iniciou a sua actividade literária no suplemento DN Jovem, nos anos 1980, no Diário de Notícias (dessa altura data o seu primeiro livro de poesia, Pequenas Depressões (1984), em colaboração com Otília Monteiro Fernandes; em 2021 reuniu os poemas publicados no nesse suplemento sob o título Estação - os poemas do DN Jovem). Publicou 13 livros de poesia. Em 2009, estreou-se na ficção com o romance O Prazer e o Tédio, tendo em 2021 ganho o prémio Leya com a narrativa As Pessoas Invisíveis. Foi deputado à Assembleia da República pelo PSD na XIII legislatura, entre 2015 e 2019. 

 

domingo, março 31, 2024

Jorge Roque

 


3

Anónimo entre tantos, tão diferentes, tão iguais, apareceste, suponho, sem o quereres na película. Rosto jovem, precocemente envelhecido, lábios roxos de sangue sufocado nas artérias, defendias a revolução com o ardor de quem por tão fundo acreditar, mais fundo havia já perdido. Camisa aberta, gestos largos, mãos nervosas sempre a acender outro cigarro, olhar límpido a idear outro futuro, eras a imagem da derrota e não sabias. Todavia, repetias em cada frase da tua retórica revolucionária. Todavia, reafirmavas, contra cada sombra que avançava, o sol que em ti era verdade, a luz que haveria que vencer por mais que a marcha dos homens a esmagasse. Todavia, camarada, que bem podias ser eu a gritar a céus inúteis, tudo estava condenado desde o começo, nem tu nem eu o podíamos evitar. Todavia, camarada, esta a natureza humana que nem deus nem homens podem alterar. Mas não te esqueças, por pouco que durasse tivemos a nossa Torre Bela, erguemo-la com os braços da nossa crença plena, vimo-la ruir sob o peso dos gestos tão humanos. Não me olhes com esse desalento, Torre Bela que foi no pensamento, somente nele poderá sobreviver. Tinha de ruir, põem isso na cabeça, mas foi nosso cada gesto obstinado de a erguer. E nada foi em vão, camarada. Foi precisa a tua força. Foi precisa a força de cada um de nós. Até dos que, como eu, só viriam a vivê-lo uma década mais tarde. Até dos que não nasceram e nessa luta e nessa força se hão-de reconhecer. E mesmo derrocada, a Torre Bela apenas ruiu na circunstância que a sustentava. E das ruínas há-de erguer-se uma vez mais, muitas vezes mais ainda, para outras tantas derrocar indiferente ao nosso empenho. Assim é, camarada, esta a vida e a sua beleza difícil de entender. Não cismes, o que podia ter sido é uma porta fechada, mas o caminho segue para lá dos nossos passos. Aceita-te no rosto de quanto lutaste e falhaste. Aceita que morres e não é o fim. Então sorri a tua vida derrotada e cumprida.

Jorge Roque, “Evocação e epitáfio”, in País Rato, ed. Maldoror, 2023, pp. 34-35